Kauã caminhava com passos lentos, deliberados, como se cada passo dentro do covil do Leste fosse uma afirmação de poder. A mão dele permanecia firme no braço de Clara, guiando-a pelo corredor estreito que levava à sala de estudos. Não havia necessidade de arrastá-la; ele queria que ela sentisse o controle, a posse silenciosa que há anos exercia sobre todos ali.
A porta se abriu com um rangido suave. A sala estava iluminada apenas por duas lâmpadas de vidro âmbar presas às paredes rústicas. Livros alinhados em prateleiras altas, mapas territoriais espalhados sobre mesas de carvalho e, no centro, uma poltrona antiga, revestida com couro tingido de um preto esverdeado. Um espaço que exalava disciplina e ameaça.
Clara entrou primeiro. Kauã não disse nada — apenas observou enquanto ela caminhava até o centro da sala, o corpo rígido, os olhos avaliando cada detalhe do ambiente como se calculasse rotas de fuga. Ele sabia que ela faria isso. Sabia também que, mesmo tremendo por dentro, ela nunca mostraria completo medo.
A porta se fechou atrás deles.
— Você voltou a falar da Matilha do sul hoje — Kauã começou, aproximando-se de sua mesa, mas mantendo os olhos fixos nela. — Com uma convicção que não me agrada.
Clara ergueu o olhar, cansada, porém ainda afiando as palavras como lâminas.
— Não falei nada que fosse mentira — retrucou.
Kauã sorriu. Um sorriso enviesado, estreito, que nunca alcançava os olhos. Ele se encostou na beirada da mesa, cruzou os braços, e deixou que a tensão se instalasse no ar.
— Acredita mesmo que pode ameaçar a mim? Ao Leste? — Ele inclinou a cabeça, observando cada microexpressão dela. — Você é só uma loba com uma linhagem bonita demais para a própria segurança.
A frase bateu fundo nela, mas Clara manteve a postura. Seus dedos se apertaram na barra da blusa, mas ela não desviou o olhar.
O que Kauã não sabia — ou sabia bem demais — era o quanto aquelas palavras sempre a atravessavam. Ela odiava ser vista como um recurso, uma peça, um corpo útil. E Kauã, da maneira mais perversa possível, sempre a enxergou assim.
— Bonita ou não, não sou sua posse — Clara respondeu.
Ele empurrou a mesa levemente para frente, irritação surgindo em sua postura antes mesmo que se manifestasse em palavras.
— Ainda não — respondeu ele, com suavidade gelada. — Mas poderia ser.
“Poderia ser.”
Clara sentiu o estômago se contrair. Era a mesma ameaça velada de sempre, a mesma tentativa de cercá-la pelas fraquezas — especialmente pela avó e pela irmãzinha que ele mantinha sob vigilância constante.
Mas algo estava diferente naquele dia.
Kauã estava… inquieto.
Ele se aproximou devagar, como se aproximaria de um animal ferido, não para confortar, mas para observar a reação.
— Sabe o que mais me irrita em você? — murmurou. — Essa boca perigosa. Esse olhar que vive me desafiando, como se você tivesse escolha, como se não fosse quebrar como qualquer outra.
Clara se afastou um passo, e ele sorriu com o recuo. Não era o recuo que ele queria, mas era o suficiente para sentir que ainda tinha domínio sobre ela.
— E você sabe o que irrita em mim? — ela devolveu, chegando mais perto do que deveria. — O fato de você ser tão patético que confunde controle com afeto.
O olhar de Kauã escureceu.
Ele a segurou pelo queixo, firme, e ela imediatamente empurrou a mão dele.
— Não me toque — sibilou.
— Não se esqueça — disse ele, aproximando-se — que ainda posso te oferecer algo que você nunca teve.
As palavras dele vinham carregadas de uma arrogância quase infantil.
— Poder. Título. Segurança. Luna do Leste. E, acima de tudo… — Ele fez uma pausa dramática. — A chance de ver sua avó sempre que quiser.
A frase explodiu dentro dela.
A dor na expressão de Clara foi imediata, crua. Por um instante, o ar pareceu rarefeito na sala.
Kauã viu.
E sorriu.
— Aceite meus termos — completou ele, inclinando-se. — Torne-se minha Luna. E tudo será seu.
Clara apertou os dedos com tanta força que a pele quase rompeu. O medo que tentava esconder por trás dos olhos se transformou lentamente em algo mais afiado. Um calor incômodo subiu pelo peito. Um ódio que ela tentava manter enterrado, mas que o Leste insistia em escavar.
Ela ergueu o olhar novamente e deixou o veneno escorrer.
— Você está delirando, Verme.
A palavra cortou a sala.
E Kauã ficou imóvel.
Ele piscou, como se o insulto tivesse arrancado um pedaço de sua vaidade.
Clara sentiu a respiração pesada, acelerada, e em seus pensamentos, a lembrança mais dolorosa surgiu: a irmãzinha que amava como se fosse sangue da própria avó — embora não fosse de fato — trancada sob “cuidados especiais”, à mercê do humor de Kauã.
Sempre que ele olhava para Clara, parecia enxergar outra pessoa. Como se por trás daquela pele, por trás daqueles olhos, estivesse o fantasma de alguém ausente. Uma sombra que ela não conhecia, mas que alimentava uma obsessão doentia nele.
Clara sentiu a garganta fechar.
Kauã deu um passo ameaçador à frente.
Mas antes que pudesse dizer algo, a porta se abriu.
Sara entrou.
A expressão dela era um misto de surpresa, frustração e aquele brilho venenoso que Clara já conhecia desde a infância — quando lobos ricos olhavam lobos menos favorecidos como brinquedos quebrados.
— Kauã — Sara chamou a voz doce demais. — Precisamos conversar. Agora.
Ele não tirou os olhos de Clara.
— Pode esperar.
— Não — Sara rebateu, firme, o sorriso desaparecendo. — É sobre a reunião de jovens Lobos do Leste. Aquela que você mesmo aprovou.
Kauã franziu o cenho.
Clara percebeu a mudança sutil: Sara queria algo que envolvia ela.
E percebeu também que Sara a olhava exatamente como uma rival, olha outra — com raiva, sim, mas também com… insegurança.
Isso era novo.
Kauã finalmente assentiu.
Mas antes de sair, encarou Clara de perto, tão perto que o hálito dele tocou a sua bochecha.
— Pense no que eu disse — murmurou. — A oferta não ficará aberta por muito tempo.
Clara apertou os dentes, resistindo ao impulso de cuspir na direção dele.
Kauã saiu.
Sara ficou na porta por alguns segundos, analisando Clara de cima a baixo.
Um sorriso frio se formou no canto dos lábios dela.
— Vista algo bonito amanhã — disse Sara. — Vamos sair.
E desapareceu pelo corredor.
Na manhã seguinte, Clara estava exausta. Não dormiu mais do que duas horas. Os pensamentos se embaralhavam: o covil, Kauã, sua avó, sua irmã, a fronteira do Norte, Paulo…
Paulo.
Ela passou a mão nos lábios, irritada consigo mesma por lembrar da noite anterior — a intensidade, o instinto, o laço que seu corpo rejeitou, mas que ainda pulsava como uma queimadura sob a pele.
A aliada de Sara bateu à porta.
— Vamos — disse ela, com falsa simpatia. — Kauã pediu que eu te acompanhasse.
Clara não respondeu. Apenas respirou fundo e seguiu.
O “Bar de Ossos” era uma construção subterrânea feita com pilares de madeira escurecidos e iluminarias penduradas por correntes. Jovens lobos ricos do Leste caminhavam entre mesas baixas, taças de cristal, risadas exageradas e cheiro forte de álcool proibido para matilhas menores.
Os olhos se viraram todos para ela quando entrou.
— Nova aquisição do Leste? — alguém comentou.
— Parece delicada demais para sobreviver aqui — outro murmurou.
— Deve ser a favorita do Kauã.
Clara sentiu o impulso de recuar, mas manteve o pescoço erguido. A aliada de Sara a puxou para o centro do salão.
— Relaxe — disse ela, sorrindo falsamente. — Só queremos que você se integre.
Mas Clara sabia.
Sentia.
Sara queria que ela fosse exposta. Humilhada. Ou pior.
Logo um jovem lobo, claramente bêbado, tropeçou na direção dela. O hálito dele fedia a álcool de raiz selvagem.
— Ei… você… — Ele segurou o braço de Clara, apertando. — Já vi você antes? É bonita demais pra ficar sozinha.
Clara tentou puxar o braço, mas ele apertou mais forte.
O coração dela acelerou.
— Me solta.
— Calma aí, florzinha. Só quero conversar…
Ele tentou puxá-la pela cintura.
E então tudo parou.
Literalmente, como se o ar tivesse sido cortado ao meio.
Uma sombra atravessou o salão num movimento tão rápido que ninguém processou.
O jovem foi arremessado contra uma mesa com um estrondo seco.
Clara piscou, atônita.
E lá estava ele.
No território inimigo.
No lugar onde nenhum Alfa sensato ousaria pisar.
Paulo.
O Alfa Supremo.
Seu olhar caiu sobre ela como uma tempestade.
— Beta. — A voz dele era uma ordem velada. — Tire a mão desse lobo antes que eu a arranque.
O Beta surgiu atrás dele e arrastou o jovem pelos cabelos.
O salão inteiro ficou em silêncio.
Clara m*l conseguia respirar.
Não por medo.
Mas pelo reconhecimento.
Uma presença que ela sentiu antes mesmo de vê-lo.
Paulo avançou até ela sem pressa. Cada passo dele ecoava firme, pesado, como se marcasse território. O cheiro dele — madeira, tempestade e sangue — preencheu o ambiente.
Ele não tocou.
Mas ficou perto o suficiente para ela saber que poderia.
— Venha — disse, simplesmente.
Clara hesitou.
— Não estou indo a lugar nenhum com você.
Os olhos dele brilharam com algo que ela não conseguiu nomear.
— Você está — respondeu ele. — Agora.
E, antes que qualquer lobo do Leste pudesse intervir, Paulo a guiou por um corredor lateral até uma porta de madeira antiga. Empurrou-a levemente, revelando uma sala privada, escura, com móveis entalhados e velas apagadas.
Ele entrou depois dela.
A porta se fechou.
Por alguns segundos, só o som áspero da respiração dela preenchia o espaço.
— Por que está aqui? — Clara desafiou, a voz carregada de adrenalina.
Paulo sentou-se em uma cadeira robusta, de entalhes antigos, como um rei nórdico julgando uma prisioneira.
— Você fugiu — respondeu ele. — E eu não gosto quando as minhas presas desaparecem.
Clara engoliu em seco.
O coração dela batia tão rápido que parecia ecoar pela sala.
— Então é isso? Sou sua presa?
— Não? — Ele cruzou as pernas, imponente. — Prefere “minha loba”?
Clara sentiu o rosto aquecer. Não sabia se era raiva ou algo mais perigoso.
— Quem é você, afinal? — perguntou ela.
Paulo ergueu um canto da sobrancelha.
— Não sabe?
— Quero ouvir da sua boca.
Ele inclinou a cabeça, estudando-a com um interesse que beirava o desconfortável.
— Paulo Arendt. Alfa Supremo do Sul.
Clara sentiu o estômago despencar.
As histórias que ouviu.
Os boatos.
A reputação dele.
O Lobo c***l.
O Alfa que nunca errava.
O rei sem coroa.
Clara respirou fundo, tentando recuperar o equilíbrio.
— Então você é o famoso Alfa Sombrio — murmurou. — Faz sentido. Só um homem assim invade o território inimigo por causa de uma noite m*l resolvida.
O canto da boca dele subiu, lento.
— m*l resolvida?
Clara ignorou o calor que subiu pelo corpo.
— O que quer de mim?
— Quero respostas — disse Paulo, sem pestanejar. — Quero saber por que estava com Kauã. Quero saber por que fugiu. Quero saber quem é você de verdade.
Ela sorriu. Um sorriso carregado de provocação — e medo escondido.
— E por acaso… — ela aproximou-se alguns passos, encarando-o de cima — …você se apaixonou por mim tão rapidamente, Alfa?
O silêncio dele foi denso.
Carregado.
Perigoso.
Então, com um brilho quase animalesco nos olhos, Clara decidiu atacar:
— Quer outra rodada, meu Alfa?