O ar no aposento de purificação ainda vibrava com a mesma tensão crua que havia surgido quando Clara rasgou o tecido do vestido, expondo a marca no seu ombro e oferecendo ao Alfa — num tom que parecia mistura de desafio e desespero — uma provocação que não deveria existir.
A água escorria pelo lavatório com um som constante, quase hipnótico, refletindo os dois no espelho como se fossem dois predadores prestes a avançar um sobre o outro.
Três segundos.
O tempo exato em que a ligação silenciosa entre eles nasceu — ou foi reavivada de algo muito mais antigo.
Mas antes que pudesse se aprofundar...
A porta foi escancarada.
Kauã entrou como uma tempestade de arrogância e autoridade imposta. A expressão dele não era de surpresa; era de raiva contida. De cálculo. De posse.
— Clara. Agora. — rosnou, a voz tão baixa que parecia vir de dentro do peito, não da garganta.
Ela congelou.
Não porque fosse submissa — mas porque estava treinada para reagir a ele assim. O corpo dela sabia antes da mente.
Paulo virou o rosto lentamente.
E não gostou do que viu.
Kauã não olhava a situação com choque moral. Não parecia preocupado, indignado, ultrajado. Ele olhava como alguém que tinha sido contrariado. Como se Clara fosse uma peça que estava onde não deveria estar.
Um objeto deslocado.
— Eu falei que você ficaria nos bastidores. — Kauã disse, ignorando completamente a presença do Alfa da matilha mais poderosa do território, como se estivesse acima de qualquer protocolo.
— E você não sabe obedecer nem isso?
Clara respirou fundo, recuando um único passo — mas Paulo viu.
Viu com clareza.
Era medo.
Legítimo.
Antigo.
Algo nele — algo instintivo, primitivo — respondeu a isso com uma fúria silenciosa.
— Ela não está sob a sua autoridade aqui. — Paulo disse, sem elevar a voz.
Mas o jeito que falou foi suficiente para Kauã empalidecer só por um segundo.
Kauã voltou-se para o Alfa com um sorriso tenso.
— Com todo o respeito, ela é parte da minha equipe. E foi designada para seguir as minhas ordens.
Paulo secou as mãos. Lentamente.
O silêncio virou aço.
— Está dispensado, beta.
Kauã engoliu seco.
— É uma questão interna da nossa matilha.
— Não dentro do meu território.
O olhar de Caio escureceu de um jeito que não precisava de palavras.
Clara percebeu.
Kauã percebeu.
E, ainda assim, Kauã ousou estender a mão para o braço dela.
— Vem.
O toque não chegou a acontecer.
Clara se antecipou — e se afastou.
Rápida. Precisa.
O instinto de sobrevivência falou mais alto.
Paulo notou isso também.
Notou tudo.
Kauã cerrou os dentes, mas manteve a máscara.
— Aguardarei lá fora, Clara.
O “aguardarei” soou como “cobrirei a sua falha com a minha autoridade”.
Mas havia ameaça.
Velada. Calculada.
E ela sentiu.
Quando ele saiu, o silêncio voltou — mas diferente, mais afiado, mais pessoal.
Clara soltou o ar lentamente, como se fosse a primeira respiração verdadeira em minutos.
Paulo a observava com um foco que beirava o perigoso.
— Ele fala com você como se fosse seu dono. — comentou.
Ela deu um sorriso torto, cansado.
— Ele acha que é.
— E você deixa?
Ela ergueu o rosto.
E pela primeira vez naquela noite, teve a coragem de enfrentar o Alfa sem máscara.
— Deixar e sobreviver nem sempre são opostos.
Paulo ficou em silêncio por um instante.
A resposta dela não era o que esperava.
Nem o que queria.
Ele deu um passo em direção a ela — e foi ali que ela tomou a sua decisão.
Clara agarrou as bordas rasgadas do vestido, puxando ainda mais o tecido, revelando o ombro com a pequena marca semicircular.
E o olhar dela mudou.
A postura mudou.
A respiração mudou.
Um convite.
Uma afronta.
Uma necessidade.
Ou tudo isso junto.
— Quer dar uma volta no feno do estábulo, Alfa? — perguntou, a voz mais firme do que ela sentia por dentro.
O silêncio que veio depois não foi de recusa.
Foi de choque.
Ela percebeu.
E sorriu.
— Não consegue se arriscar, Lobo Sombrio?
Esse era o primeiro sorriso verdadeiro dela em anos — e Caio sentiu isso.
Sentiu na pele.
No sangue.
Algo nele moveu.
Mas antes que pudesse avançar, a imagem de Kauã segurando o braço dela — como se tivesse direito — queimou na mente de Paulo.
E aquela interferência estragou o momento.
Ele abriu a boca para dizer algo — talvez uma ameaça, talvez um convite — mas Clara não esperou.
Virou as costas para ele e caminhou até a porta, descalça, deixando o silêncio para trás.
Paulo não era homem de deixar as coisas fugirem do seu alcance.
A voz dele veio baixa, grave:
— Seus dados de contato, loba da fronteira.
Clara parou.
De costas.
Imóvel.
E então:
— Procure, Alfa. Se for capaz.
E saiu.
Um Alfa não era recusado.
Nunca.
E foi exatamente por isso que Paulo sorriu — sozinho no aposento, de forma lenta, perigosa.
Ela tinha acabado de marcar o destino dele.
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O banquete estava em pleno caos.
Lobos bêbados, uivos, gritos, risadas.
Instintos soltos pela celebração da Lua de Sangue.
Paulo caminhou como uma sombra entre eles, ignorando saudações, cumprimentos e olhares curiosos.
Até que a voz de um dos cozinheiros o alcançou.
— Alfa! O bolo cerimonial foi… é… — o homem gaguejou, pálido. — Profanado.
Paulo nem precisou perguntar.
Viu imediatamente.
A superfície do bolo — algo que tinha anos de tradição, simbolismo e ritual — estava coberta por uma camada densa e arroxeada do molho de wolfsbane.
Tóxico.
Pungente.
Impossível de ignorar.
— Quem fez isso? — Caio rosnou.
— A loba da fronteira… Clara. Ela entrou na cozinha… derramou tudo… e saiu sorrindo…
Sorrindo.
Ele imaginou a cena com nitidez.
A rebeldia.
O absurdo.
A audácia.
E sentiu algo entre fúria e… fascinação.
Aquela mulher era um problema.
Um problema delicioso.
Sem pensar, ele seguiu o rastro dela — o perfume de loba assustada, adrenalina, e algo mais… algo que não tinha nome, mas chamava os seus instintos como um canto proibido.
A encontrou na fronteira.
O terreno onde ele costumava chamar de Reino das Trevas.
Ela estava parada ali, de costas, como uma estátua partida ao meio.
— Achou que podia fugir? — ele perguntou, mais para ele mesmo.
Mas ao se aproximar, algo aprisionou a sua atenção.
A cicatriz.
Profunda.
Antiga.
Cruel.
Ele tocou.
E ela se encolheu como alguém que esperava dor.
Não susto.
Não vergonha.
Reflexo condicionado.
Dor aprendida.
Ele congelou.
E pela primeira vez naquela noite, o Alfa hesitou.
— Quem fez isso? — perguntou, o tom denso como violência.
Ela não respondeu.
Não olhou para ele.
Apenas virou o rosto, mostrando parte do pescoço.
E disse novamente:
— Realmente não consegue me tomar, Alfa?
Aquilo rompeu qualquer contenção.
O que veio depois foi confuso, instintivo, intenso demais para qualquer dos dois processar racionalmente.
Toque duro.
Beijo cheio de raiva.
Pele contra pele.
Instinto contra instinto.
Raiva, desejo, medo, entrega — tudo misturado.
E no auge…
O laço tentou se formar.
A marca de companheiros destinados.
O vínculo mais profundo entre lobos.
Mas algo dentro dela — escondido, quebrado, ferido — rejeitou.
O corpo dela tremeu.
A dor se espalhou.
O vínculo se partiu.
E Paulo sentiu essa ruptura como se alguém tivesse enfiado a mão dentro dele e puxado algo essencial.
Clara apagou por alguns segundos — ou minutos — até abrir os olhos, já coberta por um dos casacos dele.
E foi então que viu.
Seu rádio de emergência.
Piscar. Piscar. Piscar.
Ela o agarrou com a mão trêmula.
99 chamadas perdidas.
O coração dela disparou.
E Paulo, vagamente imóvel atrás dela, percebeu que não estava lidando apenas com uma loba rebelde.
Estava lidando com alguém que fugia.
De algo tão grave que nem o corpo dela aceitava um vínculo de proteção.
Algo que tinha nome.
E provavelmente rosto.
Kauã.
E Paulo soube, sem sombra de dúvida, que nada naquela noite terminaria ali.
Não depois do que aconteceu entre eles.
Não depois das marcas reveladas.
Não depois do laço quebrado.
Clara não pertencia ao Alfa.
Ainda não.
Mas o destino tinha acabado de escolher.