O dia tinha sido longo, exaustivo e carregado de tensões. Hideo permanecia sozinho no seu escritório, rodeado de papéis, contratos e antigos registros da família. As horas passavam lentas, marcadas apenas pelo som monótono da caneta contra o papel e o ocasional estalar dos dedos, tensos, crispados pelo peso das decisões.
Seus amigos não o haviam perturbado entendendo o seu estado de espírito.
A responsabilidade de ser o novo Don da Yakuza impunha-se como uma armadura pesada, sufocante. Mas o que o corroía de verdade não era o cargo, nem a política suja que herdara — era a dor não resolvida. Se lembrar das palavras do pai ainda lhe doía terrivelmente.
A imagem da mãe, humilhada anos atrás pela amante do seu pai, surgia-lhe sempre com uma nitidez c***l. Lembrava-se das lágrimas silenciosas que ela nunca deixava cair na frente dos outros, mas que ele, menino atento, percebia a cada gesto contido, a cada olhar vazio. E agora, como uma ironia amarga do destino, lá estava ele: no topo de tudo aquilo que, em parte, tinha destruído a sua família.
E ainda havia o assassino do seu pai… livre. Impune. O pensamento latejava-lhe nas têmporas, alimentando uma raiva surda que parecia nunca esmorecer. Ele devia aquilo ao seu pai, mesmo que ele não merecesse ele faria justiça, ou a vingança.
Quando a noite finalmente caiu, Hideo não suportou mais o peso das paredes do escritório. Levantou-se, empurrou a cadeira com brusquidão e caminhou em direção ao seu quarto. Com cuidado ele retira de uma gaveta a velha flauta que tocava. Aquele instrumento, simples e elegante, sempre fora para ele um refúgio silencioso, um confidente mudo das emoções que não conseguia partilhar com ninguém.
Pegou-a com cuidado, como quem segura um relicário, e saiu para o jardim sem que ninguém percebesse.
A noite estava calma, o ar fresco e silencioso. Sob a luz fraca das lanternas, as pedras do caminho refletiam tons suaves, enquanto as árvores se moviam lentamente com a brisa. Hideo respirou fundo, enchendo os pulmões de um ar que parecia mais leve, mais honesto.
Levantou a flauta aos lábios e, com um sopro contido, deixou que a melodia começasse a fluir. Era um lamento delicado e profundo, como um rio calmo que escondesse nas suas águas uma força incontrolável. A música falava do que ele nunca dizia em voz alta: do luto, da mágoa, da solidão, da raiva, mas também de uma ternura secreta, quase esquecida.
Sem que percebesse, aos poucos, membros da família, soldados e até criados começaram a se aproximar, atraídos pelo som que parecia flutuar e preencher cada canto da propriedade. Um a um, surgiam à beira do jardim, parando em silêncio, respeitosos, como se a música fosse uma oração que não ousassem interromper.
Hideo permaneceu alheio a todos eles, os olhos fechados, completamente imerso na melodia. Cada nota era uma confissão, uma cicatriz aberta. Viu, na sua mente, a figura do pai caído, o sangue manchando o chão… viu também a mãe, afastando-se da amante com dignidade ferida… e, sobretudo, sentiu o vazio de ainda não ter conseguido fazer justiça.
Então, ao abrir os olhos, percebeu — com uma surpresa silenciosa — que não estava só. Todos ali, de pé, em silêncio absoluto, partilhavam daquela tristeza sem nome, daquela dor suspensa entre o passado e o futuro.
Por um breve instante, Hideo sentiu-se menos só. Guardou a flauta, respirou fundo e voltou para dentro da casa, deixando o jardim envolto no eco daquela melodia triste e encantadora, como um sussurro eterno do que ele não conseguia, ou não queria, esquecer.
Mei permaneceu na soleira da varanda, os olhos ligeiramente marejados, enquanto o som da última nota da flauta se desfazia no ar. Ao seu lado, Sayuri, ainda imobilizada pela beleza da melodia, respirava com dificuldade, como se o peito fosse pequeno demais para conter tudo o que sentia naquele momento.
Mei soltou um suspiro fundo, um daqueles que trazem anos de lembranças acumuladas.
— Ele sempre fez isso… — disse, com a voz suave, como quem fala de um segredo guardado a vida inteira.
Sayuri virou-se para ela, confusa, mas ansiosa por compreender mais sobre o homem com quem iria casar.
— Sempre tocou quando estava triste… — continuou Mei, olhando para o jardim, onde Hideo já se afastava em passos lentos. — Desde menino, ele se escondia… longe do olhar do pai. Haruki sempre achou… que música era fraqueza.
Sayuri franziu o cenho, apertando as mãos uma na outra. Era difícil para ela imaginar Hideo, tão firme e impenetrável, com medo ou vergonha de algo tão puro como a música.
— Ele fazia isso escondido? — perguntou, num sussurro incrédulo.
Mei sorriu, um sorriso triste, cheio de ternura e dor ao mesmo tempo.
— Sempre. — confirmou. — Vinha para o jardim, ou então subia no telhado, para que ninguém ouvisse. Só eu sabia… — os olhos brilharam, enquanto as memórias pareciam desfilar vivas à sua frente —. Quando me via triste, quando percebia que eu estava sufocada com tudo… ele pegava a flauta e tocava para mim. Nunca dizia uma palavra, nunca perguntava o que eu sentia… apenas tocava, e a dor parecia… menor.
Sayuri sentiu o nó apertar-se-lhe na garganta. Agora, percebia melhor aquele homem tão reservado e duro, que, no fundo, abrigava um coração marcado de afetos silenciados.
Mei suspirou novamente e então, com um olhar firme, mas doce, pousou a mão sobre o braço de Sayuri.
— Hoje… ele não se escondeu. — disse, com a voz embargada, mas carregada de uma satisfação discreta. — Hoje, ele tocou para quem quisesse ouvir. Sem medo, sem vergonha.
Sayuri assentiu, os olhos úmidos.
— Ele… mudou. — murmurou, quase como se não quisesse quebrar a magia daquele entendimento.
Mei sorriu mais uma vez, desta vez com um leve orgulho a iluminar-lhe o rosto cansado.
— Ele se libertou do pai. — afirmou com doçura e firmeza. — Está mostrando ao mundo que será diferente… que não vai esconder quem é.
As duas permaneceram em silêncio por um momento, olhando para o jardim agora mergulhado na quietude da noite.
— Ele é… tão forte. — disse Sayuri, num tom quase reverente.
— Não… — corrigiu. — Ele é humano. E é por isso que é forte.
Sayuri sorriu, emocionada, deixando que uma lágrima silenciosa escorresse pela face, enquanto sentia o peso e a beleza de tudo aquilo. Ao seu lado, Mei apertou-lhe a mão, numa cumplicidade silenciosa, como quem a acolhia não só como futura nora, mas como testemunha daquela nova fase de Hideo — mais livre, mais verdadeiro, mais ele.
Ao longe, o vento ainda parecia trazer o eco suave da melodia que ele deixara no ar… como uma promessa silenciosa de que, dali em diante, ele não esconderia mais quem era.