O Resgate: Um calor que não era da lareira
Daniela Marçal
Eu deslizei por uns dez metros antes de perceber que o meu "botão de pânico" – a técnica de arado que Xavier me ensinou – era inútil contra a minha própria cabeça. Eu não conseguia pensar em "gravidade e músculos"; só conseguia pensar no beijo da noite passada e na sua proposta fria de "fusão".
A raiva me deu coragem, o que foi um erro colossal. Tentei imitar Olívia e fazer uma curva ousada. Não fiz.
O que aconteceu foi uma mistura humilhante de desequilíbrio e inércia. Eu não caí com graça; eu caí com a força total de um projeto que deu errado. O meu corpo rodou. Senti uma pontada aguda no tornozelo e uma onda de frio enquanto a neve me engolia. Minha respiração falhou, e por um momento, a ansiedade voltou com força total. Eu estava presa, sozinha, e com dor.
O pânico genuíno
— Daniela!
O grito não era o tom de comando de um CEO, nem o sussurro sedutor de um amante. Era puro pânico.
Levei segundos para ver Xavier a deslizar pela colina. Ele não estava "esquiando" como um mestre; ele estava quase caindo ele próprio, movido por uma urgência que rasgou a sua fachada de controle. Ele era rápido, mas desajeitado, a prova de que a sua pressa era emocional.
Ele se ajoelhou ao meu lado na neve, ignorando a sua própria roupa impecável. Os seus olhos azuis estavam arregalados, fixos no meu tornozelo.
— Onde dói? Me diz exatamente. Eu vou tirar você daqui.
Eu ainda estava ofegante. Olhei para o seu rosto. Não havia estratégia, não havia cláusula de contrato, não havia imprensa. Havia apenas preocupação, crua e desprotegida. Ele estava com medo.
— O tornozelo — consegui sussurrar. — Não consigo... não consigo mexer.
Ele tirou as luvas e tocou a minha bota de esqui com uma delicadeza que me chocou mais do que a dor.
— Não se preocupe. Eu vou tirar você. Respire fundo, Marçal. Estou aqui.
Ele usou a força inegável do seu corpo, mas com uma precisão cirúrgica. Ele me tirou dos esquis e, antes que eu pudesse protestar, me pegou no colo. O seu casimira cheirava a pinho e a homem caro, e eu me agarrei ao seu pescoço como se fosse a única tábua de salvação num mar gelado.
O trajeto de volta para o chalé foi uma névoa silenciosa. Eu estava vulnerável, dependente, e ele estava cumprindo a sua promessa de me proteger, mas de uma forma que quebrava o nosso contrato. Ele não estava fazendo isso pela fachada; estava fazendo por mim.
De volta ao calor, ele me colocou gentilmente no sofá, diante da lareira a gás, e correu para pegar os suprimentos. Quando voltou, ele não ligou para Olívia (que, felizmente, estava com a babysitter na hora), nem para os seus e-mails. Ele se concentrou em mim.
Ele cortou as minhas meias de lã com um canivete, com a mesma precisão que usava para fechar negócios. Eu observei as suas mãos grandes e fortes trabalhando no meu tornozelo inchado.
— Está muito frio — murmurei, tremendo mais pelo choque do que pelo frio.
Xavier parou a sua testa franzida em concentração. Ele se levantou, sem dizer uma palavra, e voltou com um roupão de cashmere grosso, me enrolando nele. Em seguida, ele tirou o seu próprio casaco e sentou-se na beirada do sofá, pegando gelo.
— Eu vou aplicar isso. Se doer, você me diz.
Eu observei a sua face, a proximidade era insustentável. Eu tive uma oportunidade.
— A imprensa não está vendo, Xavier. — A minha voz era fraca. — Você não precisa fingir.
Ele parou, o olhar azul, encontrando o meu, finalmente. O fogo dançava neles.
— Você acha que eu estou fingindo? — perguntou ele, a voz rouca. Não era uma pergunta de negócios. Era um desafio pessoal. — Eu te disse que você era minha responsabilidade, Daniela. Eu movi o mundo para te manter segura. E quando você se machuca, o meu sistema entra em colapso.
Ele aplicou o gelo, e a dor me fez prender a respiração.
— Por que você se importa tanto? Não está na cláusula do contrato o pânico autêntico. Por que, Xavier?
Os seus dedos estavam no meu tornozelo, e a nossa proximidade era tão densa que eu podia sentir o seu ritmo cardíaco. Ele se inclinou, e eu senti que ele ia me beijar de novo, mas ele não o fez. A sua resposta foi a mais devastadora de todas.
— Não confunda responsabilidade com afeição, Marçal. — A sua voz era baixa, um rosnado controlado. — O seu bem-estar é essencial para o sucesso da fusão. Você não é apenas minha "noiva de mentira". Você é uma peça essencial que eu preciso manter funcionalmente. Eu não vou perder o controle por sua causa.
Ele havia se fechado de novo, mas não antes de me dar a peça que faltava. Ele podia controlar o coração, mas não o seu instinto. Eu podia ser apenas uma "peça essencial", mas ele agiu como se fosse a peça mais importante que ele tinha.
Eu sorri, uma pequena e dolorosa vitória.
— Entendido, CEO. Eu prometo ser mais funcional de agora em diante.
Eu sabia que o contrato ainda estava valendo, um contrato que não existe além das palavras ditas, mas a rachadura no seu controle era real. Ele me daria a segurança, mas eu estava começando a sentir que a minha missão era dar-lhe algo que ele não podia ter: a humanidade que ele tentava negar. A "fusão" estava prestes a se tornar muito mais pessoal.
Ele me olhou com intensidade, Xavier estava naquela linha fina entre a razão e o coração. E eu, estava mais louca que nunca, pois estava testando o meu chefe. O homem que me tinha em suas mãos, mas quem estava o colocando à prova era eu.
Obrigada pelos comentários e bilhetes lunares 🥰