Decisões.

1461 Words
Três anos depois.... Março de 2024. Os meses foram passando como uma pena sendo levada pelo vento, planando faceira, despreocupada. Passaram três anos e com eles vários acontecimentos esquisitos: objetos que sumiam de um cômodo e apareciam em outro, janelas que estavam fechadas e apareciam abertas, cadeiras que sempre amanheciam fora do devido lugar. No entanto, os membros da família ignoravam veementemente esses detalhes, sequer tinham conhecimento de que partilhavam a casa com outro ser, um espiritual. Júnior não falou sobre o que viu naquela noite fantasmagórica do ano de dois mil e vinte e um, escondeu por medo de sofrer uma punição por parte dos seus progenitores; seus pais não acreditariam que ele viu as folhas do caderno mexendo-se sozinhas, por isso, quando foi indagado por qual razão saiu gritando e correndo, atribuiu o fator do medo a um morcego que adentrou na casa pela janela do quarto que estava aberta. Varuna tentava assustar os membros da família, queria e não queria que eles saíssem de sua propriedade. Na realidade, ele queria apenas quatro pessoas longe de suas terras, somente aceitava uma para companhia: Camila. Começou a ter apreço pela garota, olhava para ela com outro olhar, um mais cândido. Contudo, sabia que se os pais e irmãos partissem, ela iria com eles, não ficaria. Varuna ponderou tudo, repensou, andou pela fazenda, que estava (como ainda está) frutífera, cheia de cor e vida, como ele sempre ansiara. De muito longe, do ponto mais alto da propriedade, o seu favorito, mirou o imóvel que abrigava os Esteves, que abrigava a sua pequena Camila e chegou a uma decisão: não perturbar mais a família, não por eles em si, não por querer desistir do que se propôs a fazer: destruir quem lhe arrancou a vida; fazia por ela, pela menina que lhe penetrou o espírito com uma facilidade avassaladora. O espectro retornou para o quarto onde a garota dormia profundamente, observou-a por longos minutos, sempre incansável. Camila estinha mudado, não exibia mais aquela magreza estranha, seu cabelo estava maior e o rosto mais cheio. E ele estava acompanhando de perto essa linda metamorfose. A pequena ganhou alguns centímetros em sua estatura. Ele a acompanhava para todos os lados, na escola, na lida no campo de flores; inclusive quando a pequena conseguiu pilotar o trator, ele estava lá sentado ao seu lado, encantado com o vibrar de emoção que ela propagou entre sorrisos e gritos de felicidade, o fantasma sentiu, fechou os olhos e mergulhou naquilo, na mistura mais bem feita que já provou. Varuna perdia-se na simplicidade da menina que não se enfeitava em demasia, não cobria seu rosto com vários produtos, era crua, nua, real, muito real. Certa vez, depois de arar a terra para receber novas espécies de flores, Camila desceu do trator, encantada com a beleza do céu, o dia estava esplêndido, limpo. A pequena abriu os braços e respirou fundo, ela estava feliz, morava num lugar bonito, calmo, diferente do frenesi da cidade do Rio de Janeiro e sua violência alarmante. Sentiu dentro de si satisfação e gratidão, poucos tinham a oportunidade de buscar novos caminhos. Agradeceu internamente a Deus, abriu seus olhos e deu giros em torno de si, sorrindo, gargalhando de puro contentamento. O espírito ficou preso na cena, mais uma vez surpreendido, ela girava com seu vestido simples salpicado de pequenas flores, girava e girava, com suas botas grossas de borracha. " Linda!"- sua consciência propagou. Sim, absolutamente linda, de uma beleza natural, inenarrável, inigualável, rara. Camila estava se tornando preciosa para Varuna, sem dar-se conta disso. Nesse dia, o espectro se recolheu num galpão bem distante, onde a sucata da sua moto foi acomodada. Chorou sozinho, chorou ferido, chorou desolado, chorou agoniado, sentindo dor. Seu corpo não iria ser restituído, sua vida carnal também não, seria uma alma vagante. Na manhã da última semana do mês de março, Camila estava arrumada para ir à escola. Não era mais uma garotinha desalinhada, tornou-se uma moça linda, uma jovem no auge da juventude, tinha completado dezoito anos há poucos dias. Descortinava a vida para o mundo, uma nova dama, uma nova mulher com seus predicados. Não apenas isso, trazia a vida ao conhecimento do coração da moça o primeiro amor e todas as sortes de emoções que vêm com esse. Camila estava no último ano do ensino médio, e na classe havia um rapaz pelo qual seus olhos castanhos se interessaram, mais tanto que era coisa natural as gemas procurarem sozinhas pelo rapaz. Varuna percebeu, sentiu e isso o feriu, teve ódio dela, ódio da menina e mais ainda do rapaz, que estava querendo o que era do espectro, Camila era dele, não podia chegar um encarnado e levar a mulher que ele, mesmo sem corpo físico, acompanhou incansavelmente o seu desabrochar. O destino não podia lhe ser mais c***l, mais mesquinho, ele já não tinha nada, tinham lhe arrancado tudo. Não iria perdê-la, não permitiria isso. Marcelo nem desconfiava que era alvo de um olhar maligno. O jovem de dezenove anos girava a caneta entre os dedos, enquanto dava olhadas furtivas em Camila. Ele notava e muito a menina, que lhe agradava, e queria tentar uma aproximação. Chamaria a moça para sair, talvez para tomar um sorvete, dar um passeio na praça da cidade, falar do quanto ela o atraía e beijá-la. Esperava que Camila não fosse puritana, dessas que, para dar um mísero beijo, requerem a autorização ou aprovação dos pais. Marcelo tinha lá sua beleza: cabelos cacheados, pele bem morena e olhos escuros. No fim da aula, o jovem cercou Camila, foi educado e começou perguntando sobre o trabalho de história. A menina se atrapalhou toda durante a explicação, estava nervosa, e também não seria diferente, pois estava de frente para o garoto que fazia seu coração disparar. Varuna estava ao lado dela e também ouviu os batimentos descompassados do órgão, irritou-se, deu um tapa nos livros que o menino trazia nas mãos. O material caiu e folhas foram espalhadas, folhas do dito trabalho. Marcelo não entendeu como aquilo ocorreu. _ Senti como se tivesse levado um tapa! - disse, de olhos arregalados, mirando a menina. _ Sério! Deve ser só impressão sua. Quem poderia ter dado o tapa? Só estamos nós dois no bicicletário - proferiu, olhando para o seu meio de locomoção. Marcelo começou a recolher o seu material, no entanto, quando Camila fez menção de ajudar o colega de classe, um vento surgiu do nada e levou as folhas para longe. _ Tá amarrado! - gritou o jovem, protegendo os olhos da camada de terra que o vendaval levantou. Camila também vedou os olhos com as mãos. Assim como surgiu, vindo do nada, também sumiu, o vento cessou. A moça retirou as mãos dos olhos e viu a desorganização de papéis espalhados. Queria ajudar Marcelo, no entanto, estava no limite do horário. _ Preciso ir, meus pais ficarão preocupados. Até amanhã. - despediu-se sem querer ir, sua voz saiu lamentosa. _ Não tem problema, nos falamos amanhã. Quero te chamar para sair qualquer dia desses! - vociferou de longe o rapaz que recolhia folha por folha. A alegria retornou em Camila, que sorriu abertamente para Marcelo. Varuna entrou em fúria, os sorrisos dela eram dele, somente dele; ela não os deveria dar para outro homem, carnal ou não carnal. O espectro olhou fixamente para a menina, que teve um súbito arrepio. O sorriso mingou, sentiu que era observada, mas não via ninguém por lá, apenas Marcelo, que sequer a olhava. _ Obrigada pelo convite, amanhã podemos conversar sobre? - perguntou, segurando firme a alça da mochila. _ Claro! Local e hora! Depois me forneça o número do seu celular? - pediu o jovem, voltando-se para a moça . _ Sim! - respondeu a menina com o coração aos pulos e mãos frias. O fantasma detestou a demonstração afetada da sua carnal obsessão. Condenou a jovem. Camila partiu sozinha, Varuna foi para outro lugar, era o momento de descontar sua ira em um dos seus algozes, seria a última noite de um deles respirando. O espírito perturbado queria um tempo longe da garota ou iria lhe provocar um grande susto, queria arrebentar com a casa inteira, mostrar que a atitude dela não o agradava. Foi assim que o espectro decidiu fazer conexão com Camila, em sua concepção era o momento dela tomar conhecimento dele, da sua existência, desprovida de matéria, na vida dela. Varuna queria um bom retorno por parte da moça, contava com isso, não queria que ela perdesse o juízo ou ficasse amedrontada. Esperava com toda sua essência espiritual que a jovem não o rechaçasse, não saberia lidar com isso. Seria o seu primeiro contato com alguém do mundo dos vivos, ele sendo um espectro e ela uma carnal.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD