O celular da Érica tocou. Era o número da fazenda. A mulher passou um último olhar para a filha, enquanto a via jogando as roupas dentro da mala, quebrando cabides e até rasgando algumas roupas. Desgrudou o corpo apoiado na batente da porta dela, se virou, caminhou pelo corredor até o fundo da casa e atendeu ao telefone.
— Alô.
— Oi, Érica! — Era a dona Edna, avó de Daniela.
O estômago da mulher contraiu e lhe faltou ar por um tempo.
— Oi, dona Edna. Tudo bem?
— Tudo sim, minha querida. Me diga, o que aconteceu? O Luciano me disse que a Daniela sofreu um acidente.
Érica suspirou e olhou em volta. Abaixando ainda mais o tom de voz, continuou:
— Sim, dona Edna, mas está tudo bem com ela. Já foi liberada do hospital. Teve só um corte na cabeça, graças a Deus!
— Você quer trazer ela para Sorriso?
Érica passou mais um olhar em volta.
— Por favor. — Sua voz tremeu, entregando o que sentia. — Eu não sei o que ela vai se transformar se continuar aqui. Pelo menos aí ela não terá muita coisa o que fazer e vai poder refletir sobre a vida.
— É claro, minha querida. Deixe ela aqui conosco o tempo que for necessário.
— Um ano foi o que eu disse a ela, dona Edna. Vou incomodar muito vocês deixando ela um ano aí?
— De jeito nenhum! Tenho tanta saudade da minha menina que um ano é pouco tempo demais.
Érica riu. No final da primeira semana, a avó de Daniela vai querer devolvê-la imediatamente. Mas não deixou transparecer isso. Que Daniela seja o problema de outra pessoa nesse um ano. Só Deus sabia que ela precisava de uma folga das excessivas preocupações.
— Muito obrigada! Muito obrigada mesmo.
— E quando ela virá?
— Vou ver se acho uma passagem para hoje mesmo — mentiu. A passagem só de ida já estava comprada. — Dona Edna, eu não consigo colocar em palavras a minha gratidão.
— Somos família, Érica! Pode contar comigo para qualquer coisa.
A ligação não foi muito além dali e logo terminaram a ligação. Ficou combinado de Érica passar o número de Luciano para a Daniela avisá-lo quando chegaria.
Érica voltou à porta do quarto da filha e a pegou fechando a mala. Daniela passou um olhar para ela antes de colocar a mala com tudo no chão e suspirar.
— Todos os meses vou fazer um pix para você não depender da sua avó para comprar suas coisas. Não gaste atoa.
— Não quero seu dinheiro! — a menina protestou.
— Então vou dar esse dinheiro ao seu avô e se ele quiser te fazer o pix, então que o faça e você terá o dinheiro igual.
— Eu te odeio!
— Eu te amo também — Érica abriu um sorriso aflito no rosto.
Daniela passou por ela, a olhando de cima a baixo.
— Você nunca mais vai me ver na vida.
Uma ruga de preocupação brotou entre as sobrancelhas da mulher, mas ela balançou a cabeça. Daniela estaria segura na fazenda de sua avó em Sorriso, Mato Grosso.
Pelo seu próprio bem, Érica levou Daniela até o aeroporto e a acompanhou no check in e a levou até o limite que um acompanhante poderia ir. Viu a filha ir embora sem um adeus ou um abraço. Daniela sequer olhou para trás quando passou pelo portão e sumiu de vista.
Por fim, Érica pegou o celular, mandou um "Olá" para o Luciano e disse que conseguiu comprar a passagem para um voo que já estava para decolar e ainda disse o horário que a menina chegaria no aeroporto de Sinop – Mato Grosso.
DESCENDO DO AVIÃO no aeroporto de Sinop, Daniela levava consigo apenas uma bolsa pequena, enquanto as duas grandes malas desceriam em instantes. Seguiu o fluxo dos passageiros pela pista do avião e pelo pátio, semicerrando os olhos pelo sol ardido que se estendia quase no meio do céu.
Olhou à volta e gostaria de sentir ódio por estar ali, mas o céu azul repleto de nuvens alvas, contrastando com o verde que se estendia pelo horizonte plano até sumir de vista, do plantio de soja, a fazia sentir algo que só sentia quando ainda era criança e visitava a fazenda de sua avó com o seu pai. Era um tranquilo bom, uma simplicidade que sempre gostou.
Quando pegou o celular do bolso, viu centenas de mensagens. Era de um número desconhecido, mas a quantidade de mensagens a chamou atenção. Abriu e começou a ler. Era George mandando texto de outro celular. Ele dizia que estava bem e que esse negócio de ir em cana não iria adiante. Seu padrinho o livraria dessa e logo tudo ficaria bem.
Ela rolou as mensagens mais para baixo e diminuiu até os passos. Na mensagem abaixo ele disse que a Érica mandou uma mensagem para ele pelo advogado, avisando que Daniela estava indo embora para Mato Grosso. Ele sugeriu também uma coisa que a fazia manter uma ruga entre as sobrancelhas arqueadas.
"Um ano é muito tempo, bebê. O que você acha de fazermos o seguinte, para que continuemos juntos?"
Abaixo continha explicado um esquema de relacionamento que, segundo ele, viria a dar certo.
"Não! É claro que não" ela respondeu antes mesmo de ler o resto.
"Eu sei que vai ser difícil. Mas um ano sem nos vermos é muito tempo. Eu te amo e não quero que a gente acabe traindo um ao outro. Se o nosso namoro incluir, temporariamente, poder ficar com outras pessoas, a gente vai conseguir seguir em diante. Eu te amo, bebê, mas um ano é muito tempo! Pense bem nisso. Eu quero você e só você e por isso eu vou te esperar, mas existe esperar e esperar. Você vai me entender".
Ao ler o restante de sua insistência, ela começou a digitar.
"Eu não sei se vai ter internet na fazenda, por isso já vou te responder enquanto estou no aeroporto." Ela suspirou. "Não concordo nem um pouco. Você é meu, George! Se eu souber que alguém colocou a mão em você, arranco fora o que te faz homem, seu fdp! Ai de você, George Barish! Ai de você, seu turco vagabundo!" Mandou um emoji mandando um beijo com coração" "Beijos. Te amo, bb!".
Logo Daniela entrou no prédio do aeroporto e se dispersou do grupo que seguiu da pista de avião. Guardava o celular no bolso quando percebeu um homem alto vindo em sua direção. Daniela arqueou as sobrancelhas e o encarou, assim como ele fazia com ela.
— Você demorou — ele comentou.
— Oi? — Ela levou a cabeça para trás, estranhando por ele ter falado com ela. — Ahn... A gente se conhece?
— Nossa! — Ele riu e coçou a cabeça. — É sério?
Ela olhou para os lados, sem mexer a cabeça e mudou a bolsa para a outra mão.
— Cara, na boa. Não tem chances de a gente se conhecer. — Se apressou em passar por ele. — Então com licença.
— Daniela — ele disse, desta vez sério, o que fez a garota virar o corpo, com a testa franzida e as sobrancelhas arqueadas. — Sou o Luciano.
Sua boca abriu alguns centímetros e repentinamente ela riu, debochada. Chegou a se desconsertar, mas vendo-o sério ela levou uma mão até a boca e conteve o restante dos risos. De fato o sujeito tinha algumas feições semelhantes do pequeno Luciano que ela conheceu, mas ainda assim aquele Luciano e esse eram diferentes.
— Não. — O olhou de cima a baixo. — Não mesmo! O Luciano era um guri magrelo e feioso quando eu vim aqui da última vez. Sem chances de você ser o meu primo.
Ele pegou a bolsa da mão dela.
— Sou eu. — Ergueu e abaixou ambas as sobrancelhas uma vez ao afirmar.
— Não...! — Ela balançou a cabeça. Daniela já voltava a sorrir como uma criança.
Luciano ergueu então a manga da camiseta branca e mostrou uma cicatriz no braço direito. Daniela deu dois passos na direção dele. Seus corpos quase se encostaram e ela passou a mão na cicatriz do braço dele. Sentiu a pele quente de Luciano e a textura da cicatriz. Saberia reconhecer seu primo no meio de um milhão de outros corpos apenas por causa daquela cicatriz.
A moça ergueu a visão aos poucos e semicerrou os olhos. Ela só os estatelou pouco depois, com um sorriso no rosto.
— É você mesmo, Ninho! — Soltou uma risada. — Gente! — Deu um passo para trás e o olhou de cima abaixo e se fez um grande silêncio a partir de então.
— Você também não é a mesma de quando tinha onze anos.
Ela deu de ombro, se virando.
— Obrigada. — Tornou a ficar de frente ao primo e o observou. O rosto do rapaz era comprido como de sempre; a pele era amarela-bronzeada; o cabelo castanho claro num corte social; os olhos grandes e verdes das bordas acastanhadas; os lábios eram cheios e vermelhos; e o nariz afilado e encorpado.
Tinha a rusticidade de um homem do campo, mas a luxúria de um deus grego. Era a mistura de um ser celestial com um humano de carne e osso para se permitir os desejos carnais. A altura lhe ajudava a ter presença; os ombros largos e o corpo forte ainda mais. As veias latejantes nos braços eram evidentes, assim como a pose de garoto grande que sempre teve tudo o que queria.
— Você tá uma miragem, meu primo — Daniela comentou. No sorriso dela continha vontade.
No sorriso que cresceu no rosto do rapaz tinha algo também.
— Então... Vamos? — ele indagou.
— Preciso das minhas malas. — Ergueu a bolsa pequena que segurava. — Acha que uma garota se vira só com isso por um ano?
Daniela ameaçou sair andando, e o rapaz se virou para fazer o mesmo e se distanciou dela com passos preguiçosos. Mas após um passo, ela desistiu e conservou-se parada, reparando como a b***a redonda dele se mexia com o seu andado galã, naquela calça jeans azul clara.
Luciano se virou mais a frente, ao reparar não estar sendo seguido, e a moça nem procurou esconder o que notava até ali, só deu um sorriso e caminhou até ele pouco depois.
Pegaram as malas dela e na S10 Ranger preta dele saíram do aeroporto municipal de Sinop e seguiram até o município de Sorriso.
Carretas e caminhões passavam por eles e o vento forte das máquinas balançava a S10, assim como o som estridente dos motores. A vegetação os envolvia com plantações e mais plantações de sojas. Fazendas se estendiam pelo horizonte, forradas com tapetes verdes dos dois lados da estrada, até se perderem de vista. O ar quente, misturado aos carbonos dos escapamentos e da rica oxigenação da vegetação que os envolvia balanceava a respiração, não a tornando tão pesada.
— Que engraçado. Eu jurava que uma hora dessas eu estaria cansada de tanto banho de mar em Santos, não em Mato Grosso, indo para a casa da vó. Quando acordei hoje às 05:00 da manhã pra ir para Santos, não esperava mesmo isso.
— A vida é cheia de reviravoltas.
Daniela não disse nada, só arregalou os olhos assentiu com a cabeça.
— Então... — Daniela suspirou, olhando para ele. — Como anda a sua vida?
— A mesma. — Ele deu uma rápida olhada para ela. — O que mudou foi que eu terminei os estudos anos atrás e mudei fixamente da casa de Sorriso da vó, para a fazenda. E a sua?
— Ah... Você sabe! Uma hora aqui, outra ali. Nunca moro exatamente num lugar só. Às vezes vou pro Rio, fico um ou dois meses, depois volto pra São Paulo onde moro... Morava — se corrigiu. — Eu morava em dois lugares diferentes: com a minha mãe e com o George, meu... — Suspirou. — Meu...
— Namorado? — ele verificou.
Ela tamborilou os dedos na porta do carro. Depois olhou para ele e viu que Luciano a olhava.
— É... — respondeu, não sabendo ao certo se a resposta ainda deveria ser essa. Namoro liberal era algo complicado dela entender. Ser s****a com ele era uma coisa. Poder ser com outros era outra. E outra ainda pior era imaginar ele sendo s****o com outras. Ela pegou o celular e clicou no botão de power, para ver se ele tinha respondido ela de volta. Nada.
— E o acidente, foi hoje mesmo?
Ela assentiu uma vez com a cabeça.
— Foi.
— Como que aconteceu? — Daniela se fez pensativa por alguns segundos e Luciano a olhou repetidas vezes. — Se não quiser responder tudo bem.
— Não! — Ela riu, sem graça. Flashes do carro girando vieram com tudo na sua cabeça e depois outro carro próximo demais e sem tempo de sair da frente apareceu na sua visão e então tudo girou e girou e ela apagou. — Não dá nada responder. — Agitou de leve a cabeça, mais para afastar os pensamentos que para afirmar o que falara.
— Então como foi?
Ela deu uma conferida no rosto dele, que agora prestava atenção na estrada.
— Eu e os meus amigos tava indo pra Santos, ficar no barco do meu pai alguns dias. A gente tinha acabado de descobrir que passamos do terceirão. — Encolheu os ombros. — Aí a gente foi... E tudo tava perfeito. Pelo menos até a m***a de uma capivara atravessar o asfalto e o George desviar dela num impulso.
— Hmm.
— Mas tenho certeza que você já ouviu a versão mais comprida e cheia de detalhes da minha mãe.
Daniela riu.
— Na verdade não. — Luciano olhou para ela e deu um sorriso. — A vó contou por cima o que aconteceu e só me avisou que eu tinha que te buscar no aeroporto. E eu também não quis ouvir a versão da sua mãe. Cada um tem a sua.
— "Tinha". — Ela citou o que ele disse, fazendo uma expressão como se estivesse encrencada. — Ai! — Ele olhou para ela. — Eu tirei você de algum compromisso hoje?
— Não, não — se retratou. — Eu só iria pra praia com os meus amigos. Coisa que faço todo dia. Nada demais.
— Seus amigos? — Daniela arqueou as sobrancelhas cheias. — Tem alguém na casa da vó?
— Não. — Ele riu. — Dependendo do quão cansada você tá, amanhã eu te mostro o que tem de diferente desde que você veio pra cá da última vez.
Ela respirou fundo e alcançou o celular do bolso da calça jeans.
— Vou adorar ver o que tem de diferente amanhã. Pelo visto vou ter que aprender a dividir diversão por dias, já que vou ficar aqui até o final do ano que vem.
Luciano se fez calado acima daquilo, o que transformou num silêncio chato pelo resto do caminho.
Cerca de uma hora depois saíram de curso e, da estrada asfaltada, pegaram uma de chão. Longos minutos se arrastaram com baques e tremedeiras naquele caminho desregular e empoeirado já familiarizado a Daniela. Tinha muitas plantações de sojas, milho e algodão por ali. A via era a mistura de uma terra amarela e marrom meio barrosa repleta de ravinas.