Cassie Diaz
O som distante das vozes e risadas na ala principal me desperta.
O sol atravessa as cortinas do meu quarto e desenha faixas douradas sobre os lençóis amassados. Por alguns segundos, fico aqui, imóvel, tentando lembrar em qual momento a noite terminou. Tudo parece um borrão: risos falsos, perfumes misturados, mãos apressadas.
Sinto o corpo pesado, como se cada músculo estivesse reclamando de exaustão.
Foram quatro clientes. Dois deles repetiram e me usaram com uma vontade absurda. Não preciso pensar muito para entender por que estou dolorida.
Suspiro, alongo os braços e as pernas e sinto um leve estalo nos ombros.
A cama está quente, o travesseiro ainda tem o cheiro de perfume masculino que não consegui tirar de mim mesmo depois do banho, e por um instante, tudo o que quero é dormir mais.
Mas não posso.
Sento-me na beira da cama, fecho os olhos por um instante e deixo o silêncio preencher os espaços vazios da minha mente. Ainda há resquícios da raiva de ontem.
A lembrança dele: Rocco Narcici. Isso me persegue como uma sombra.
Levanto e caminho até o banheiro. O chão frio desperta meus pés, e o espelho me mostra a mesma imagem de sempre: cabelos desgrenhados, olheiras leves, mas a pele… impecável.
É o que sempre me disseram. Pele de porcelana.
Abro o chuveiro e deixo a água quente despertar e relaxar o corpo, levando embora o suor, o perfume barato e as lembranças indesejadas. Esfrego com o sabonete líquido caro que Liora traz de fora do país. Um dos poucos luxos que ela nos permite. Eu esfrego o meu corpo com precisão. Quero me sentir eu mesma.
Depois, escovo os dentes, lavo o rosto com o meu produto preferido, um gel que arde um pouco, mas deixa a pele limpa e passo o meu creme de sempre.
O segredo da minha pele.
A única coisa que sinto como realmente minha.
Não preciso de maquiagem. Nunca precisei. A pele é lisa, uniforme, sem manchas. A perfeição que me rendeu o posto de “joia rara” da casa. Quer dizer, uma delas.
Enrolo uma toalha no corpo e abro o armário.
Hoje quero conforto.
Escolho uma saia simples, de tecido leve, e uma blusa folgada, branca, que cai pelo ombro. Prendo parte do cabelo e escovo o resto com calma.
Quando me olho no espelho novamente, pareço uma versão mais humana de mim mesma. Sem brilho, sem salto, sem maquiagem. Apenas Cassie. Mas, ao me inclinar para o lado, noto algo no espelho.
Marcas no pescoço.
Vermelhas.
Meu estômago revira.
Lembranças rápidas passam de mãos, bocas, vozes. E, por cima de tudo, o olhar indiferente de Rocco.
A raiva volta com força.
Não foi o toque dos outros que me marcou. Foi o olhar dele que me queimou. Quer dizer, o olhar que não veio. A ausência dele.
A recusa.
Homem nenhum jamais me recusou. E ele... fingiu que eu nem existia.
Pra piorar, escolheu a Thaís.
Justamente ela.
Sim, ela é bonita. Alta, corpo de curvas perfeitas, cabelo negrö e longo, pele alva e lisa, cintura de fazer inveja.
Mas ela não é a mais desejada da casa.
Nunca foi.
E ontem, conseguiu o que todas queriam: ser a escolhida.
A escolhida do homem novo, misterioso, poderoso.
No La Nuit Rouge, isso significa mais do que uma simples noite.
Significa ser o centro do desejo.
A prova viva de que você é irresistível.
E eu?
Fui invisível.
Solto um resmungo inconformado, passo o creme no pescoço com força, tentando apagar as marcas e a lembrança.
Depois, calço uma sandália baixa e saio do quarto.
O corredor está silencioso, iluminado apenas pela luz natural que entra pelas janelas compridas. O som das vozes femininas me guia até a sala de jantar da mansão.
Esse lugar, durante o dia, parece outro mundo. Nada do glamour, nada das luzes vermelhas.
A mansão é imensa, com corredores largos, pisos brilhantes e janelas que mostram o jardim dos fundos. Nos fundos é onde vivemos de verdade. Os quartos são pequenos, mas privados. Cada uma tem o seu.
Há uma ala separada só para as roupas e maquiagens: o “vestiário das estrelas”, como Liora gosta de dizer.
Tudo é dividido com precisão. O luxo da noite nunca invade o cotidiano do dia.
Quando entro na sala de jantar, quase todas já estão à mesa.
Conversas abafadas, risadas baixas, o cheiro de café e pão fresco.
O silêncio se instala assim que me veem.
É sempre assim.
Pego meu prato, finjo que não percebo e começo a me servir: pão, porções de morango, uvas, iogurte natural e ovos mexidos. Um pouco de cada coisa. Nunca exagero.
O corpo é meu cartão de visitas, minha segurança, minha arma.
E eu o trato como tal.
Sento-me em um dos cantos da mesa e começo a comer.
Aos poucos, as conversas voltam, os risos surgem e o clima muda.
— Parabéns, Thaís. — Uma das meninas diz em voz alta. — Conseguiu o homem misterioso da noite.
Mastigo devagar, sentindo a raiva crescer. O tom é provocador. Intencional.
Thaís ri, satisfeita.
— É bom que as coisas mudem um pouco, não é? — Ela responde. — Mostra que há mais peças valiosas nessa casa.
O som da risada dela me arranha por dentro.
Mantenho o olhar no prato. Não vou dar o gostinho.
As outras entram na conversa.
— E como ele é, Thaís?
— É verdade que é lindo?
— O que você fez pra conseguir o que nenhuma outra conseguiu?
As risadas aumentam.
Minha garganta fecha.
Respiro fundo.
Conto até cinco.
Não vou me rebaixar.
Não vou me misturar com essas provocações baratas.
— Nossa! Aquele homem é... inacreditável. Insaciável.
O barulho, as vozes, as risadinhas continuam.
Fecho os olhos por um instante, termino o café e me levanto.
Dou dois passos e ouço, vinda de trás:
— O jeito é fugir quando não consegue o que quer.
Paro.
Viro lentamente, o coração batendo no pescoço.
Encaro a mesa inteira.
— Uma noite... — Digo, com a voz firme. — Não define a carreira de ninguém aqui.
E o tempo que eu tenho nessa casa mostra mais do que uma única noite.
Silêncio.
Depois, vem um certo riso de deboche pra mim.
— Está se mordendo de inveja, Cassie?
As risadas voltam, rápidas e ácidas.
Antes que eu possa responder, uma voz firme corta o ar:
— Chega!
Liora.
Ela está parada à porta, vestida com uma roupa de seda azul e um olhar que faria o infernö se calar.
— Esta casa não é um ringue. — Diz ela, com calma perigosa. — É um lugar de negócios. Todas vocês estão aqui para ganhar dinheiro, não para brigar por atenção. E todas aqui fazem o mesmo que é dar a bucetä por dinheiro...
Ninguém respira.
— Nenhuma de vocês é adolescente. — Ela continua. — Se eu ouvir mais uma provocação, as consequências serão sérias. Estão avisadas!
Silêncio absoluto.
As risadas morrem.
Liora lança um olhar rápido para mim. Firme, protetor. E ela sai da sala sem dizer mais nada.
Fico aqui, imóvel, queimando por dentro.
Tudo isso... por causa de um homem.
O primeiro que me rejeitou.
Deixo o prato sobre a pia, lavo cada peça com calma e as guardo no lugar.
As mãos tremem um pouco, mas não deixo transparecer.
Depois, saio pela porta dos fundos.
O jardim me recebe com o cheiro de flores e o calor suave do sol.
O ar é limpo, diferente do perfume pesado das noites.
Sento-me em um dos bancos de pedra, observando as flores balançando ao vento.
Pela primeira vez em horas, respiro de verdade.
As risadas da sala ainda ecoam na minha mente, misturadas às lembranças antigas. Porque, no fundo, nenhuma daquelas mulheres me odeia só por inveja. Elas me odeiam porque eu tenho algo que elas nunca terão: o olhar de Liora.
Ela me protege.
Sempre protegeu.
Me ensinou tudo o que sei. Como me vestir, me mover, olhar, falar.
Ela foi meu infernö e meu abrigo. Todas elas acham que foi fácil aprender tudo, mas só eu sei o que passei. Sentem inveja por nada.
Eu nunca deixei de lembrar quem fui.
Meu nome verdadeiro não existe mais.
Liora pagou por isso.
Pagou para me ter. E digo isso de forma literal, porque ela mudou o meu documento e me registrou.
Ela me comprou.
Lembro do envelope que meu pai recebeu naquela noite, anos atrás.
Três mil e quinhentos dólares. Esse foi o preço da minha vida naquela noite.
Desde então, cada centavo que recebo carrega esse número invisível.
Cada olhar, cada toque, cada noite.
Sou feita de números.
E aprendi a viver com isso.
Fecho os olhos e deixo o vento tocar o meu rosto.
Lembrar disso me mantém no chão.
Me lembra de onde vim.
E do que preciso conquistar.
Ouço passos leves atrás de mim.
Quando viro, Liora está ali, de braços cruzados, observando-me com aquele olhar sereno de quem entende o que não é dito.
— Está bem? — Ela pergunta.
Sorrio, mesmo cansada.
— Estou. Aquilo não foi nada.
Ela parece satisfeita com a resposta.
Estende a mão.
— Chegaram uns vestidos novos. Quero te mostrar.
Levanto, seguro a mão dela e caminhamos juntas de volta para dentro da mansão.
O sol ainda toca o jardim, mas eu já deixei o mundo lá fora.
Aqui dentro, a vida continua.
E, por mais que eu tente, a lembrança daquela rejeição continua presa em mim como um espinho.
Um dia, ele vai me olhar.
E quando olhar, não vai conseguir desviar e aquelas desgraçadäs vão engolir esse momento.