Tudo parecia claro em minha mente quando o dia finalmente amanheceu e eu ainda estava no sofá da sala: “agora você é adulta, ninguém mandará você para a cama”, “se não cozinhar, não come”, “se não comprar, não tem”, “sua casa, suas regras e sua faxina” e então, no começo da tarde de sexta-feira, enquanto eu caminhava no sol lentamente por entre as bancas de uma feira livre que ficava há dois quarteirões de distância, com um vestido leve e uma jaqueta de couro, eu tive uma surpresa daquelas que deixam a gente com as pernas bambas, o coração disparando e em dúvida se aquilo foi bom ou r**m:
- Martinez? – uma voz grave e um pouco rouca acompanhou o aroma já conhecido de madeiras com fundo alcoólico e toque cítrico: eu conhecia aquela voz, e a reconheceria em qualquer lugar do mundo, aquela voz era de Michael Murray.
- Murray – virei-me para o lado dele sorrindo.
- Não acredito que está aqui – ele aproximou-se e me abraçou apertado – não faz ideia do quanto eu fico feliz de te ver, nossa... Como estão as coisas? – ele perguntou animado.
- Bem – suspirei – também é bom te ver. Eu estou morando aqui perto – indiquei a direção do meu prédio, e eu nem sei porque eu fiz isso – na verdade, cheguei há umas três semanas, quis aproveitar para me ambientar antes do semestre iniciar...
- Optou por Harvard então? – Murray ficara sabendo que eu tinha opções, Spencer havia me dito que tinham conversado, e bem, Meredith sabia também...
- Sim – suspirei – é uma oportunidade quase que imperdível, né. E por sorte tive todo o apoio da mamãe e de todo mundo para tudo... Mas e você? Gostando do curso?
- É diferente do que eu havia imaginado – ele franzia a testa – mas sim, eu gosto, tem semanas que fica bem puxado, com os treinos e os jogos, mas estou gostando bastante...
- Que bom – disse com sinceridade, gostava de ver aquele cara feliz.
- Você disse que mora aqui perto? – ele parecia curioso.
- Sim – sorri sem jeito – em um estúdio em cima daquela cafeteria, na esquina da ponte, no último andar, ganhei uma “cobertura” e aí vim buscar umas companhias – indiquei uma sacola de feira com várias mudas.
- Nossa – ele sorriu – legal, e tem terra lá em cima? – ele parecia desacreditar do meu plano.
- Tem uns canteiros, o morador anterior tinha umas flores e tal, mas eu queria uns temperos, uns chás...
- Sabe que o inverno é bem complicado aqui em Boston, né? – ele riu.
- Sim – suspirei – mas pensei em aproveitar os canteiros para coisas maiores, e colocar essas miudezas em uma estufa.
- Certo – ele sorriu – acho que não vou te convencer do contrário, você parece realmente bem determinada quanto a isso – ele riu.
- Preciso ocupar minha cabeça um pouco – respondi sem pensar.
- Uhmm – ele aproximou-se um pouco – isso não me parece muito feliz.
- Estou bem – era mentira – só me acostumando.
- E o Spencer? Ainda em New York? – ele parecia curioso.
- Sim – encarei minha triste realidade – ele foi na terça...
- Sinto muito – ele pegou minha mão – sei que deve ser difícil.
Conversamos mais um pouco: e eu tentei, de verdade, não parecer uma menininha frágil e assustada, mas quando eu cheguei de volta ao meu apartamento, eu apenas sentei-me no chão ao lado da porta e chorei, chorei por que tinha saudades de Spencer, porque tinha saudades de Amelie, da Mia e do Peter, porque queria minha mãe, porque queria minha avó, porque sentia falta do Henry, da Brenda e do pequeno Thomas, porque queria estar perto do meu pai, da Sanchez e do Benjamin, da Guadalupe... E também, porque eu sentia falta de Murray, e isso me deixava confusa ainda. Eu queria todos de volta. Queria minha casa de volta. Queria a minha antiga vida de volta.
Spencer ligou no fim do dia, contei sobre o meu projeto de horta e ele disse que sabia que eu precisaria de algumas distrações. O início do semestre se aproximava, e eu resolvi, assim que encerrei minha ligação, que faria exatamente o que havia dito para a minha mãe que eu faria na noite anterior: eu iria até a book shop de Harvard, em Cambridge, pegaria os meus livros, que Mackenzie inclusive, me enviara um e-mail naquela tarde, me lembrando de como proceder, veria pessoas e não pareceria uma garota insegura. Tomei um banho demorado, vesti jeans, all star e jaqueta de couro sobre uma camiseta de banda. Entrei no carro e atravessei a ponte que me separava do meu futuro promissor. Fiz isso com o som ligado, volume máximo, janelas abertas, e sim, foi uma sensação libertadora.
Quando sai da book shop, fui até uma papelaria próxima onde eu adquiri alguns itens que ainda achava necessários: folhas A4, grafites, canetas e post its... Cambridge estava pulsando: Os não calouros já estavam em aulas, os calouros estavam de mudança, e no fim do meu passeio, eu ainda parei em uma simpática cafeteria antes de voltar. Pedi um combo de capuccino e misto quente, e comi distraída, enquanto olhava a lista de livros que eu tinha em mãos.
- Hoje é um bom dia para nos encontrarmos – Murray sentou em minha frente sorrindo.
- Tá brincando? – eu ri alto – Fazendo o que aqui?
- Eu vim encontrar um amigo que chegou hoje de volta – ele sorriu – ele provavelmente está atrasado – ele olhou em volta – e você?
- Vim comprar livros e materiais e aproveitei para tomar um café – indiquei.
- Certo – ele me encarou com seriedade – andou chorando.
- Não – eu respondi – não mesmo...
- Eu conheço essa expressão aí, olhos inchados, olhar fixo no vazio – ele sorriu com bondade – não sabe mentir para mim, Martinez.
- Um pouco – suspirei – as vezes acho tudo muito difícil.
- Você vai se acostumar – ele pegou minha mão sobre a mesa.
- Vou sim – suspirei novamente.
- Ah, ali vem ele – Murray sorriu quando um rapaz n***o, muito forte e com cabelos trançados aproximou-se da nossa mesa – Steve – ele abraçou o rapaz.
- E ai cara, tudo bem? – o rapaz também sorria.
- Steve – ele seguia abraçado ao rapaz – quero que conheça a Mariah Martinez, que veio de Los Angeles...
- A famosa Martinez? – ele se aproximou para me abraçar também – é um imenso prazer, Mariah.
- O prazer é meu – disse ainda sorrindo.
- O Steve é do segundo ano de direito, acho que vocês podem ter alguma aula juntos...
- Ah que legal – Steve disse – se precisar de alguma coisa, é só pedir meu contato pro Murray aqui que vai ser um imenso prazer te ajudar.
- Obrigada – sorri agradecida, queria aproveitar a situação para sair de fininho, mas percebi que Murray apenas enfiou a mão em um dos bolsos tirando uma chave.
- Aqui está, meu irmão – e entregou a chave para Steve – muito obrigada, viu?
- Ah, mano, não por isso – o rapaz sorria novamente – infelizmente, eu preciso ir, gente. Tenho que buscar minha gata no aeroporto. Foi um prazer Mariah.
Sorri novamente, sem nem saber o que dizer. Depois que Steve se foi, Murray me contou:
- Peguei a pick up dele emprestada ontem, precisava terminar minha mudança – ele sorriu – e com a moto é meio complicado.
- Claro – respondi sem jeito, não sabia bem como agir – você mora onde mesmo? – perguntei, já sabendo a resposta.
- Há uns dois quarteirões de você – ele disse
- Uhm, então, aceita uma carona? – perguntei.
- Não precisa se incomodar – ele sorriu tranquilo.
- Faço questão – e minha carência no nível máximo, ela também fazia questão.
- Então está bem – ele consentiu – aceito que me leve até o seu prédio, e de lá eu sigo a pé, pode ser?
Concordei com um aceno de cabeça e seguimos em um silêncio constrangedor até o meu carro, e esse silêncio durou quase todo o percurso. Quando cheguei no meu prédio, estacionando na minha vaga de garagem, pela rua lateral, Murray se contentou em se despedir de mim com um abraço apertado, e um brilho nos olhos, que pela claridade estranha do fim do dia, podiam parecer lágrimas. Aquele tinha sido, oficialmente, o dia dos encontros improváveis.