Dois dias depois
O hospital continuava imerso em seu clima cinzento.Os corredores estavam mais silenciosos, o ar mais denso como se o tempo ali dentro tivesse desacelerado, preso entre um suspiro e outro.
Clarice ainda dormia.O corpo frágil repousava entre cabos e máquinas, a pele pálida sob o brilho frio das lâmpadas. Eu a visitava em silêncio, sem necessidade de motivo clínico, apenas para certificar-me de que ela continuava ali. Respirando. Existindo.
E cada vez que eu a via, era como olhar para um abismo.Um abismo que me devolvia o rosto da mulher que eu amei e perdi mas com algo novo, indefinível, que me puxava para dentro dele.
No segundo dia, vieram os insistentes.Os Beck chegaram juntos: o pai rígido, a mãe abatida, os olhos inchados de chorar.E atrás deles, Henry sempre impecável, sempre calmo.Ele não parecia sofrer; parecia aguardar.
— Doutor, por favor, — implorou a mãe — queremos ver nossa filha, só por um minuto.
Fechei a prancheta devagar.
— Ela ainda está muito vulnerável. O risco de infecção é alto. A UTI não está autorizando visitas neste momento.
O pai suspirou, impotente.
Henry apenas arqueou uma sobrancelha.
— Com todo respeito, doutor — disse ele —, a família tem direito de vê-la.
— Direito? — minha voz soou mais fria do que eu pretendia. — O direito de um paciente é viver. E, neste caso, eu sou o responsável por garantir isso.
Henry me encarou por um instante, e naquele olhar silencioso havia algo que me incomodou profundamente uma mistura de cálculo e desprezo.Ele não parecia preocupado com Clarice. Parecia irritado comigo.
— Voltaremos amanhã — disse o pai, tentando encerrar o embate. — Obrigado, doutor.
A mãe chorou baixinho, e eles se foram.
Mas Henry ficou um pouco mais, demorando-se no corredor.
— Amanhã volto e espero poder ver minha mulher — Henry diz num tom baixo, provocador ou talvez ameaçador.
Não respondi. Apenas o encarei até que ele recuasse.E quando finalmente se afastou, percebi que minha mão estava cerrada com força ao redor do meu corpo.
Horas depois, o turno noturno caiu sobre o hospital.As luzes diminuíram, e o silêncio voltou a dominar o andar da UTI.Eu entrei no quarto dela sem avisar ninguém.Fiquei ao lado do leito, observando cada respiração, cada tremor sutil nas pálpebras.Ela começava a reagir.Os dedos se moviam, o peito subia de forma mais irregular.
Sentei-me na poltrona ao lado e esperei.
Eu sabia que não deveria estar ali. Sabia que existiam limites.
Mas havia uma lógica doentia ou talvez inevitável em querer ser o primeiro rosto que ela veria ao acordar.O primeiro som, o primeiro olhar, a primeira presença.A lembrança inicial.
Se o destino tinha me devolvido minha esposa ou o que restava dela, então eu não deixaria ninguém roubar esse momento de mim.E enquanto o bip suave do monitor marcava o compasso da madrugada, eu fiz algo que não fazia há anos:
esperei alguém acordar.
O som veio antes do movimento.Um suspiro fraco, um gemido quase imperceptível.Levantei o olhar do prontuário e vi os dedos dela se moverem devagar, como quem luta contra o peso de um sonho.
— Clarice… — murmurei, aproximando-me. — Está tudo bem. Você está segura.
As pálpebras tremeram, e então ela abriu os olhos.Por um instante, o mundo pareceu se dissolver no azul claro daquele olhar.Confuso, turvo pela medicação, mas ainda assim… vivo.
Ela tentou falar, a voz rouca, frágil.
— …Oliver?
O som do meu nome escapando de sua boca fez o ar prender no meu peito, ardeu ouvi-la pronunciando meu nome.Aproximei-me mais, as palavras demorando a sair.
— Como… sabe o meu nome, Clarice?
Clarice piscou devagar, o olhar perdido entre as luzes da UTI e o rosto que pairava sobre ela.
— Está no… jaleco… — murmurou, e um pequeno sorriso cansado desenhou-se em seus lábios.
Fiquei em silêncio por um segundo, e então sorri também um sorriso contido, involuntário, quase… humano.
— É verdade. — respondi baixinho. — Está sim.
Ela respirou fundo, e o som dos monitores pareceu se acalmar junto com ela.Fiquei observando o movimento do peito, lento, ritmado, enquanto a sonolência voltava a dominá-la.
— Você passou por uma cirurgia longa — expliquei, mantendo o tom calmo, quase um sussurro. — O ferimento foi grave, mas está se recuperando bem. Precisa descansar, Clarice. O corpo precisa de tempo agora.
Ela apenas assentiu, com esforço.Os olhos azuis já se fechavam de novo, o peso dos medicamentos arrastando-a de volta para o sono.
— Obrigada… — sussurrou.
Aquele “obrigada” veio suave, sincero e antes que ela apagasse completamente, ela escutou, sem que ela tivesse certeza se realmente ouviu ou apenas imaginou ter ouvido aquilo.
"Carinho…”
O som foi tão leve que podia ter sido o vento.Mas quando ela afundou no escuro do sono, sentiu o coração reagir como se alguém realmente tivesse dito aquilo, bem perto de seu ouvido.E, na cadeira ao lado do leito, Dr Oliver FrankWood permanecia imóvel, observando-a dormir.O olhar sereno demais para alguém que deveria estar apenas aliviado.Como se, no fundo, aquele “carinho” fosse exatamente o que ele desejava falar.