Capítulo 6. Saindo do controle

781 Words
Já fazia alguns dias desde que Clarice havia despertado pela primeira vez.O quarto da UTI agora parecia menos hostil as máquinas ainda apitavam, mas o som já não soava como ameaça.Ela sentia o corpo cansado, as costelas doloridas, mas a dor se tornara suportável, quase familiar. Foi quando ele entrou.O som da porta deslizando suavemente e o farfalhar do jaleco branco denunciaram sua presença antes mesmo de Clarice erguer os olhos. Dr.Oliver FrankWood. — Bom dia, Clarice. — disse ele, aproximando-se com aquele tom profissional, mas calmo demais. — Bom dia, doutor. — respondeu, esboçando um sorriso breve. — Eu… queria te agradecer. Ele ergueu o olhar, surpreso. — Agradecer? — Por ter me salvado. — disse, simples, sincera. — Se não fosse por você, eu não estaria aqui. O silêncio que se seguiu foi pesado, estranho.aela esperava um “estava apenas fazendo meu trabalho” ou talvez um sorriso discreto, mas Oliver apenas a encarou.Os olhos dele, tão escuros e firmes, pareciam hesitar entre aceitar e recusar aquelas palavras. — Eu… — ele começou, mas a voz falhou. — Não precisa me agradecer, Clarice. Foi sorte. Circunstância. Ela franziu o cenho. — Sorte? Eu levei um tiro, doutor. Isso não soa muito como sorte. Oliver desviou o olhar, ajeitou as luvas, o jaleco.Havia algo tenso em seus movimentos como se a simples menção de tê-la salvado o incomodasse de alguma forma que nem ele sabia explicar. — O que quero dizer é… — ele tentou novamente, o tom mais baixo — não foi um mérito meu. Só fiz o que era preciso, você foi mais forte que eu, pode ter certeza. Clarice observou o rosto dele por alguns segundos, tentando decifrar aquele desconforto.Era o tipo de reação que não se esperava de um homem que salvara uma vida.Havia algo por trás um peso, uma lembrança, talvez culpa. — Mesmo assim… obrigada. — insistiu, suave. Ele apenas assentiu, rápido demais, e recuou um passo.Por um instante, Clarice teve a impressão de que ele queria sair dali.Mas então ele parou à beira da cama e a olhou de novo e o olhar não era mais de médico. Era de alguém que observava algo precioso, frágil… e perigoso. — Descanse, Clarice. — murmurou, a voz quase inaudível. — Você precisa. Ela o acompanhou com os olhos até que ele desaparecesse pela porta.E quando o silêncio voltou, um arrepio subiu por sua nuca, sem que soubesse exatamente o porquê.Algo naquele homem parecia quebrado e, de algum modo inquietante, ela sentia que aquele mesmo homem via o mesmo nela. Fechei a porta devagar, como se o simples som pudesse quebrar algo delicado no ar.O corredor estava vazio, iluminado demais. Aquele tipo de claridade fria que parece denunciar tudo o que você tenta esconder. A respiração vinha curta. As palavras dela ainda ecoavam: “Se não fosse por você, eu não estaria aqui.” Agradecimento. Algo tão simples e, ainda assim, doeu ouvi-lo. Passei a mão no rosto, tentando me recompor, mas o toque da luva me pareceu quase uma barreira entre mim e o mundo real.Ela me agradeceu.E, por um instante, eu quase disse que não deveria. Não, Clarice. Você não devia me agradecer por ter te mantido viva.Não quando o som do monitor cardíaco, a respiração falha, o sangue… tudo aquilo me levou de volta. De volta para ela. Fechei os olhos e vi outra cama. Outra mulher. O mesmo olhar azul ,mas mais frio, mais distante, e logo apagado para sempre. A lembrança queimou como álcool em ferida aberta. Clarice Beck. O nome era novo, mas o rosto… o rosto parecia o mesmo.A mesma curva no queixo, o mesmo tom alaranjado no cabelo quando a luz tocava.Mesmo as sardas, delicadas, espalhadas como pecados que o tempo se recusou a apagar. Mas não podia ser. Não podia. Afastei o pensamento e tentei me concentrar no som dos meus passos. Um, dois, três metrônomos de um raciocínio que eu tentava forçar a ser lógico.Era coincidência. Só isso.Pacientes vêm e vão. Rostos se repetem. A mente cria ilusões para preencher o vazio. Mas então lembrei do jeito que ela me olhou.Direto. Sem medo.Como se me conhecesse ou simplesmente se sentisse a vontade perto de mim. E por um segundo, juro que acreditei que conhecia. Encostei-me na parede fria da ala de emergência e respirei fundo.Precisava de distância. De profissionalismo. De controle. Mas quanto mais eu tentava afastar aquela mulher da cabeça, mais ela se infiltrava nos silêncios, nos corredores, até nas sombras do vidro que separava a UTI do resto do hospital. Clarice Beck. O nome soava como um eco de tudo que eu perdi.E o pior era saber… que talvez eu não quisesse mais esquecê-la.
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