A voz da enfermeira quebrou o fio dos meus pensamentos.
— Doutor FrankWood? — chamou, hesitante, da porta do corredor.
Levantei o olhar, tentando esconder o incômodo que sempre me tomava quando alguém me tirava do silêncio.
— Sim?
— A paciente Clarice Beck… — ela hesitou, olhando o prontuário nas mãos — pediu pra vê-lo. Disse que precisava falar com o senhor.
O coração deu um salto involuntário.Demorei um instante antes de responder.
— Ela está acordada há muito tempo?
— Há uns dez minutos, talvez. Parece um pouco confusa.
Assenti, mais para mim mesmo do que para ela, e caminhei até o quarto.Cada passo parecia mais pesado que o anterior.
Quando entrei, Clarice estava sentada parcialmente, apoiada nos travesseiros.O cabelo ruivo caía desalinhado sobre os ombros, e os olhos ainda frágeis, mas vivos me encontraram assim que a porta se abriu.
— Doutor… — disse ela, com a voz rouca, — obrigada por vir.
— Está se sentindo bem? — perguntei, tentando manter o tom neutro.
Ela respirou fundo, olhando as próprias mãos.
— Eu… não sei. Tenho flashes, pedaços. A sensação de correr, o barulho… e depois, o escuro. — ergueu o olhar, inquieta. — Minha cabeça parece um filme quebrado.
Aproximei-me devagar.
— É normal, Clarice. Seu corpo passou por um trauma severo, e o cérebro reage assim. Com o tempo, tudo volta.
— Eu levei um tiro, não foi? — perguntou, sem rodeios.
Parei por um instante. O som do monitor de frequência cardíaca parecia mais alto do que antes.
— Sim. — respondi, firme. — Bem aí na região do abdômen como pode ver.
— Mas… como? Onde? O senhor sabe ?
— Isso… — hesitei. — Não sei ao certo. A polícia esteve aqui, mas até agora não há um relato completo.—Cruzei os braços, desviando o olhar por um segundo.— Quando chegou, seu estado era crítico. Eu só me concentrei em mantê-la viva.
Ela me observava em silêncio, e eu podia sentir o peso do olhar dela em mim inquisitivo, mas também vulnerável.
— Então não sabem quem atirou em mim?
Balancei a cabeça.
— Não.
Por um momento, o quarto ficou em silêncio.Clarice recostou-se, absorvendo as palavras, os olhos marejados de algo que não era bem tristeza era confusão, medo… talvez um pressentimento.
— É estranho — murmurou. — É como se eu sentisse que havia alguém comigo… alguém que eu devia lembrar.
— Pode ser uma memória fragmentada — disse calmamente. — Elas costumam voltar assim, em pedaços soltos.
Ela assentiu, mas continuou me encarando.
Havia algo em seu olhar uma mistura de reconhecimento e desconfiança que me deixou desconfortável.
Por um instante, senti como se ela estivesse tentando me ler.Como se buscasse em mim as respostas que faltavam nela.
— Descanse, Clarice — falei, dando um passo para trás. — Forçar a memória agora pode ser perigoso. Pode me chamar quando quiser.
Ela concordou, devagar, mas antes que eu saísse, sua voz me chamou novamente:
— Doutor…
Virei-me.
— Sim?
— Quando eu estava sonolenta … — ela hesitou. — Eu ouvi uma voz. Uma voz me chamando de carinho.
Meu sangue gelou.
Fiquei imóvel por um segundo longo demais, antes de conseguir disfarçar o impacto.
— Deve ter sido um sonho — murmurei, rápido demais. — Os sedativos costumam causar alucinações.
E saí antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
Mas no corredor, com as mãos tremendo, percebi que era tarde demais.Ela lembrava.
Mesmo que não soubesse o que, ainda assim… lembrava, será que ela reconheceu minha voz ?