Mais tarde, o hospital já estava mergulhado naquele silêncio estéril das noites de terça-feira.A maioria dos corredores da ala cirúrgica dormia sob a luz pálida dos refletores.Eu caminhava devagar, com o som ritmado dos meus passos ecoando entre as portas fechadas.
Tinha dito a mim mesmo que só daria uma passada rápida para checar os sinais, um procedimento de rotina.Mas eu sabia que não era por isso que voltava.
Quando parei diante da UTI de Clarice, percebi pela primeira vez que o quarto não estava vazio.Através do vidro, vi três figuras ao redor da cama: o pai, a mãe e o namorado.
O rapaz Henry era o que mais chamava atenção. Tinha postura impecável, expressão serena… serena demais.
Abri a porta devagar.
Clarice virou o rosto na mesma hora.Por um instante, seus olhos pareceram aliviados em me ver.
— Doutor FrankWood — cumprimentou o pai, com um aceno respeitoso.
Assenti, educado, mas minha atenção estava em Clarice.
Ela tentava sorrir, mas o gesto era tenso, os dedos inquietos sobre o lençol.O olhar ia de um rosto ao outro, como se procurasse algo que não encontrava.
— Está tudo bem, Clarice? — perguntei, mantendo o tom profissional, mas sentindo o incômodo dela no ar.
— Sim… — respondeu, rápida demais. — Só estou um pouco cansada Dr, meu corpo ainda dói bastante.
Henry se inclinou e segurou sua mão.
O toque dele parecia mais uma encenação do que um gesto de afeto.
— O importante é que você está viva, minha pequena— disse ele, com um sorriso ensaiado. — Logo vai voltar pra casa.
Ela desviou o olhar.
O sorriso que forçou durou pouco apenas o tempo de disfarçar o desconforto.
Observei o movimento dos dois, a forma como ela recuava quase imperceptivelmente, e algo dentro de mim se contorceu.
Não era ciúme era instinto.
Algo não encaixava ali.
— Ela ainda precisa de repouso absoluto — falei, firme, quebrando o momento.— As visitas devem ser curtas. O sistema imunológico está fragilizado.
A mãe de Clarice assentiu com culpa, mas Henry apenas me olhou e havia algo naquele olhar que não gostei.Frio. Avaliador. Como se tentasse medir o que eu sabia.
— Claro, doutor — respondeu ele, e o sorriso não alcançou os olhos. — Só queríamos vê-la um pouco.
— Eu entendo — repliquei. — Mas o melhor pra ela agora é descanso.
Demoraram alguns minutos para se despedirem, promessas rápidas e gestos vazios.Quando saíram, o silêncio pareceu ganhar corpo novamente.
Fiquei parado ao lado do leito por um instante.Clarice evitava me encarar, mas eu podia sentir o desconforto ainda ali, pairando entre nós.
— Algo te incomoda ? — perguntei baixinho.
Ela hesitou antes de responder.
— Não… só… é estranho. Tudo parece tão distante. As pessoas falam comigo e eu não sei se devo acreditar no que dizem.
— Isso é comum — menti, sabendo que o problema não era a memória. — Logo tudo vai parecer mais claro.
Ela me olhou então e o olhar, embora cansado, trazia um pedido silencioso.Como se esperasse que eu dissesse algo que confirmasse o que sentia: que aquele mundo lá fora, o dos sorrisos e das visitas, era o mais perigoso.
Mas eu apenas disse:
— Descanse, Clarice.
E enquanto me afastava, ainda sentia os olhos dela me seguindo não como paciente olhando um médico, mas como alguém que, sem entender por quê, sente que só está segura quando estou por perto.