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2097 Words
Hannah O céu está mergulhando em escuridão e a brisa noturna só me deixa ainda mais reflexiva. Meus olhos se voltam para as luzes dos edifícios ganhando vida. Uma copia de Hamlet está esquecida sobre meu colo. Não sei quanto tempo passei no escritório, mas definitivamente não gastei esse tempo lendo. Gabriella havia saido do cômodo pisando fundo. E não posso dizer que nosso primeiro contato tenha sido positivo. Embora eu tenha ensaiado diversas vezes como causar uma boa primeira impressão, acabei estragando tudo com minhas grosseirias. Droga. Era uma tarefa simples, cumprimentar a garota e fazer com que ela se sentisse em casa. Tudo bem, não vamos exagerar. Mas eu tinha toda a intenção de não ser uma i****a. Ia mostrar a ela meu lado bom, meu lado civilizado. Mas foi só por os olhos nela para saber que eu não estava preparada. Porque essa musicista é simplesmente… linda. E vê-la apenas me lembrou dela. Me lembrou de tudo o que perdi e não posso mais recuperar. E o pior de tudo: me lembrou de quando eu era normal. Foi justamente para evitar situações assim que eu resolvi me isolar do mundo. Meus olhos se arregalam. A droga do ultimato. Dizer que minha mãe me encurralou é pouco, porque sei exatamente onde ela quer chegar com tudo isso. Ela não está só tentando me trazer de volta ao mundo real, está esfregando o mundo real na minha cara. Quase parece que estamos recriando um relacionamento de mãe e filha que está perdido no tempo e no espaço. Mas eu não sou uma pessoa idealista e sei que as coisas não são tão simples assim. Quando eu era adolescente, passava praticamente todas as minhas tardes no teatro. Numa dessas visitas, minha mãe resolveu me contar a história da sua trajetória de vida. Kathleen se juntou a nós e ficamos sentadas no escritório dela o dia inteiro, absorvendo conhecimento. Elizabeth me repreendeu mais uma vez porque eu andava relapsa com minhas aulas de prática instrumental, dizendo que para se alcançar a maestria era necessário muita dedicação e comprometimento. Mas meu pai me ensinara que era preciso respeitar o meu tempo, ele dizia que, se não sentíamos a alma na coisa, não devíamos continuar nos forçando a fazê-la. Eu sempre me lembro das tardes de ensaio. Lembro que Kathleen e eu m*l nos mexíamos nas poltronas, que a música fluía pelo teatro enquanto nossa mãe regia a orquestra. Depois do espetáculo, nós sempre a encontrávamos nos bastidores, com uma expressão de realização evidente no rosto. Minha mãe sempre nos abraçava e sorria. Não demorava para que meu pai se juntava a nós. Então saímos para comemorar em família. Aquela foi uma das últimas vezes que rimos juntas. Foi uma das últimas vezes em que fomos felizes juntas. Levo as mãos aos olhos enquanto a realidade da situação na qual me encontro faz minha cabeça doer. Então largo o livro sobre a mesa e caminho em direção à porta, mas sinto a panturrilha doer. Como se eu precisasse de algum lembrete da dor que me acompanha a mais de um ano. Ainda assim me forço a fazer uma expressão tranquila enquanto saio do escritório. Sigo pelo corredor o mais rápido que consigo, o que me recorda a época em que eu podia andar normalmente, e principalmente, podia correr. Essa era uma das minhas grandes paixões. Correr. Quando ainda integrava as forças especiais da Swat, eu corria todos os dias em volta da base. Mas desde minha ultima missão… bom, vamos dizer que as minhas chances de correr no futuro são iguais às que eu tenho de voar. Nunca imaginei que sentiria tanta falta de algo tão simples. Mas não dizem que a beleza da vida está na simplicidade das coisas? Bem, agora posso confirmar isso por experiência própria. Sendo sincera, a possibilidade de correr de novo é o único raio de esperança que eu me permito ter. Mas não é uma esperança de verdade, porque não posso me enganar pensando que isso pode se tornar realidade algum dia. Então as vezes me pego imaginado que estou correndo. Porque é isso o que me resta, uma vez que minha perna não tem mais força para sustentar esse tipo de atividade física. Me desloco até a área externa da cobertura e então paro. Ela está ali. Gabriella está vestindo uma calça jeans, um moletom branco e seus cabelos negros estão levemente úmidos. Ela parece bem a vontade apoiada sobre a mureta de proteção. Hesito brevemente, parada no batente da porta, sabendo que minha vida está prestes a virar de cabeça para baixo. Mas nem adianta pensar em me retirar, com meu ritmo, ela vai me ver antes que eu saia. Me aproximo e apesar de notar minha presença, ela continua em silêncio. O vento está gélido e afiado, e ficamos caladas, observando os edifícios iluminados de Nova York. — Pensei que fosse para manter distância — ela diz bruscamente. Sobressaltada com o som da voz dela, volto minha atenção para o seu rosto. Penso em retrucar, mas lembro que vamos ficar presas juntas pelos próximos meses, é melhor ela se acostumar com a minha presença. E é melhor eu me acostumar com o olhar dela. — Você está quieta. Não conheço você há muito tempo, mas, pelo que vi, você não é assim, calada. Bem. Ela percebeu rápido. — Tem razão, não sou — digo vagamente. Me apoio sobre a mureta para tirar o peso da perna esquerda. — Estava apenas pensando sobre algumas questões. Não tenho vontade de explicar que passei a maior parte da tarde pensando em como eu fui uma grosseira com ela. E em como poderia consertar isso. — Talvez possamos conversar sobre isso aqui. — Ela diz, apontando entre nós duas. Use suas palavras, Hannah. Diga a ela que não é culpa dela o que está sentindo, mas puro pânico pela perspectiva de dividir seu apartamento com uma garota linda que, por acaso, também te faz recordar de tudo o que você perdeu. — Quero que você saiba — digo, passando a mão nos cabelos — que apesar daquele meu ligeiro ato criminal, não sou uma bárbara. Não tinha intenção de ser grosseira com você. Não estou acostumada a pedir desculpas por meus atos desagradáveis, então evito encará-la. — Olha, eu não estou aqui para interferir na sua vida — ela diz, séria. — Estou aqui para trabalhar com sua mãe. Estreito os olhos e fico a encarando. Ela estranha. — Por que está me olhando assim? Bato na perna. — Você deveria pegar leve com a inválida aqui. — Que talento você tem em incluir insultos em todas as frases – ela diz, ajeitando uma mecha de cabelo. — Me parece que você tem mais problemas na cabeça que na perna. Ela não tem ideia do quanto está certa, e não tenho nenhuma intenção de deixar que descubra isso. Eu me tornei uma especialista em afastar as pessoas, agindo da forma mais desagradável possível até levá-las ao limite. Mas com ela é diferente. Não só porque a regra imposta pela minha mãe me impede de mandá-la embora. Mas porque vou fazer o necessário para impedi-la de perceber o quanto estou morta por dentro. — Qual instrumento você toca? — Pergunto, ignorando seu comentário anterior. Gabriella parece surpresa, mas me responde. — Piano. — Você pode praticar duetos com a Kathleen. Ela toca violino. Ela parece pensativa por um momento, então diz: — Você nunca teve interesse em estudar música? — Quer saber? — Falo, como se tivesse acabado de me dar conta de algo. — Tive uma ótima ideia. E se a gente não tivesse essa conversa agora? Você volta para o seu momento de reflexão e eu volto para o escritório. — Meu momento de reflexão? Dou risada. — Não era isso que você estava fazendo? Ela fica quieta. E me pergunto se não fui longe demais. — Você realmente precisa trabalhar esse seu humor. Sua anciã. — Anciã? Quantos anos acha que eu tenho? — Você deve ter uns vinte e oito, mas em breve vai fazer cem. Estreito os olhos para ela. — Está falando isso por causa do meu humor? — Pergunto, odiando que tenha me feito baixar a guarda. Ela não só invade meu espaço pessoal, como tira sarro do meu passado e me acusa de ser uma velha como se estivéssemos discutindo o tempo. — Bom, entenda como quiser — ela diz, dando de ombros. Por alguma razão desconhecida me pego sorrindo. Gabriella Rodrigues é completamente diferente do que eu imaginei. — Você devia tentar sorrir mais. Vai perceber que é mais interessante. Por um segundo, penso em dizer que não preciso de ajuda para ser mais interessante. Então me lembro de que não sou mais Hannah Granger, capitã da unidade tática da Swat. Sou Hannah Granger, reclusa sem qualquer utilidade. Não consigo nem ser útil para mim mesma. m*l consigo andar. Inspiro o ar frio da noite para impedir que o desespero instalado na minha garganta saia na forma de um grito enraivecido. Se eu deixar que veja uma fração do que existe dentro de mim, ela vai exigir ficar em outro apartamento. Mas ela não tem culpa da minha situação. Ninguém têm. Então não posso simplesmente descontar todas as minhas frustações nela. — Há quanto tempo você toca? — Pergunto, quase engasgando com uma pergunta tão sem importância. Faz tanto tempo que não tenho uma conversa casual que é, ao mesmo tempo, pouco natural e estranhamente familiar. A vantagem é que distrai a minha cabeça de pensar em como ela é linda. — Desde a adolescência — ela responde, me puxando de volta para a conversa. — Quem diria? — Murmuro. — Desculpa se não sou um Beethoven. Sorrio de leve. — É o seu músico preferido, né? — Algum problema? — Ela reclama, parecendo exasperada. — Não me venha com aquela história de ser uma escolha previsível, porque eu realmente admiro os trabalhos dele. — Por mim tudo bem. Música não é meu forte. Mas sinto falta de exercer minha profissão. — Minha resposta é simples e muito mais reveladora do que eu gostaria. Fico esperando que tire uma com a minha cara. Que diga que tem coisas mais importantes na vida que ser policial, ou que me tranquilize afirmando que tem outras coisas interessantes que eu posso fazer. Mas ela só concorda, não com pena, mas reconhecendo o que eu falei. — Comecei a tocar piano para fugir — ela revela, depois de alguns segundos de silêncio. Olho para Gabriella, notando que seu nariz é levemente arrebitado e meio que bonitinho. — Fugir de quê? Ela me encara, e nossos olhares se cruzam em um momento de tensão. A mensagem é clara: Gabriella vai me contar seus segredos se eu contar a ela os meus. O que nunca vai acontecer. — Vi que você tem alguns exemplares de Shakespeare. — Ela comenta, olhando para os edifícios a nossa frente. Então coloca as mãos sobre a mureta. Dá para ver que a leve brisa em seus rosto provavelmente a faz se sentir bem depois de todas a agitação da mudança. — Tenho. — Respondo naturalmente. — Gosto muito dos trabalhos dele. Hamlet foi o primeiro que li, na quinta série. E ainda hoje é o meu preferido. — Gabriella parece um pouco surpresa com a minha declaração. — O quê foi? Ela faz uma pausa e sorri. Imagino que esteja rindo de si mesma, pois eu não fiz nada engraçado. — Deixa pra lá. Foi só um devaneio. — Duvido que isso seja verdade — Digo, olhando para o céu noturno. — Enfim, acho que você queria ficar sozinha. — O apartamento é seu. Pode ficar. Eu vou para o meu quarto. Ela passa por mim, mas então se vira. — Posso fazer uma última observação em troca desse papo relativamente amistoso? — Pergunta, andando de costas na direção da sala, de modo que continua voltada pra mim. — Não, obrigada. Gabriella me ignora e aponta para minha perna. — Você não me pareceu realmente incomodada durante esse tempo em que ficamos conversando. Abro a boca para retrucar, mas meu queixo cai quando percebo que… Ela está certa. Nem pensei na minha perna. — Boa noite, Granger — ela diz, sorrindo. E o sorriso dela faz reviver algo dentro de mim. — Boa noite, Rodrigues. Fico parada por alguns minutos, observando-a desaparecer dentro do apartamento. Então me viro e olho para a cidade, dizendo a mim mesma que estou aliviada por finalmente ter um momento de tranquilidade.
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