03

2742 Words
Gabriella Absorta em pensamentos, olho para os transeuntes que circulam pelo aeroporto. Não é minha primeira visita a Nova York, mas dessa vez estou na cidade para morar. O céu está ensolarado e a brisa calma da primavera me deixa ainda mais reflexiva. Meus olhos se voltam para o celular em minha mão. O último e-mail da Sra. Elizabeth Granger informava que eu devia procurar por alguém segurando um papel com meu nome. Como cresci no mundo dos motoristas particulares, essa não é uma das tarefas mais difíceis. Enquanto me desloco pelo aeroporto, procuro me colocar no estado mental adequado. Estou dando os passos iniciais para um futuro promissor, não há o que temer. O lugar está lotado de famílias viajando, pessoas se abraçando, chorando e rindo. Pessoas mergulhando na tão conhecida conexão humana. Algumas destas seguram placas com nomes no desembarque e, como prometido, um homem vestindo roupas pretas e usando um quepe de chofer, segura aquela que tem meu nome. — Srta. Rodrigues — ele diz quando me aproximo, assentindo. — Me chamo Brian Watson. Trouxe mais malas? Para minha sorte sou fluente em inglês. — Só isso — digo, apontando para minha mala de mão. — O resto vai direto para os Granger. — Muito bem. — Ele sorri de um jeito simpático — Vamos? Tranquilizada pela familiaridade de toda essa rotina, eu o sigo pelo aeroporto até um sedã de luxo. Brian abre a porta traseira para mim e só depois se acomoda atrás do volante. Ele verifica o retrovisor uma ultima vez e então saí. — Quanto tempo leva até Chelsa? — Pergunto, mesmo já sabendo. Fiz a lição de casa. Sei que a família Granger mora em um dos melhores bairros residenciais de Nova York. — Em média uns trinta minutos. Depende muito do trânsito. — Você costuma fazer o trajeto até o aeroporto com muita frequência? Brian fica em silêncio por um segundo, mas então diz. — Depende. A Sra. Granger e a Srta. Kathleen viajam muito por causa dos concertos musicais. Mas a Srta. Hannah… não sai muito de casa. Hannah A filha mais velha dos Granger. Estou morrendo de vontade de perguntar mais, só que tem algo no tom de Brian… Tensão? Tristeza? Sei que é alguma coisa, e não quero começar com o pé esquerdo presumindo errado. Eu me recosto contra o assento de couro confortável e observo a paisagem da primavera em Nova York. Sem dúvidas essa é uma das melhores épocas do ano para visitar a cidade. Tem algo estranhamente relaxante nas forma como as cerejeiras florescerem ao longo do caminho. Bom, é relaxante até eu começar a pensar no que realmente me espera. O e-mail da Sra. Granger dizia que não era necessário um currículo extenso. Ela estava procurando alguém que estivesse disposta a aprender, que visse na música muito mais que uma forma de arte, e que tivesse disposição para se mudar. Posso não ter feito por merecer essa oportunidade, mas posso mostrar para ela o quanto a música é importante para mim. Quanto a disposição para se mudar… Por favor. Eu pagaria para me levarem para longe de casa. Minha única reclamação é que o emprego não é em Londres ou qualquer lugar com uma grande distância territórial de tudo que estou deixando para trás. Apesar de ter conseguido o trabalho com a ajuda dos meus pais, tenho que adimitir que foi uma ótima oportunidade de sair do Rio de Janeiro. Uma fuga possível. Dito isso, não sei muito sobre a família Granger. Quer dizer, sei que Elizabeth Granger é uma renomada compositora e diretora musical. Atualmente ela dirige um concerto de sucesso em um dos mais importantes teatros da Broadway, onde sua filha mais nova, Kathleen, é a violinista principal. Também sei que o Sr. Granger morreu há alguns anos em circunstâncias trágicas. Mas quanto a filha mais velha? Não tenho ideia. Não porque não esteja curiosa. O Google teria me dito o que quero saber num piscar de olhos. Mas, honestamente, achei que não devia bisbilhotar a vida pessoal de alguém que carrega uma história trágica marcada na alma. Só que não consigo parar de pensar em como a voz de Brian soou triste ao falar de Hannah. Talvez seja hora de descobrir exatamente o que aconteceu. Pego o celular na bolsa e passo os olhos na infinidade de mensagens que esperam ser lidas. Algumas são dos meus pais, outras são de alguns amigos. Mas é a última mensagem que realmente me atinge. Rodrigo e eu não tivemos nenhum contato depois do que aconteceu com seu irmão. Mas ele ainda se importa o suficiente para me mandar um: Boa sorte, Gaby. Respondo aos meus pais, informando que cheguei bem e que está tudo certo. Não saberia o que dizer aos outros. Apesar do vôo do Rio de Janeiro para Nova York ter durado pouco mais de onze horas, não me sinto cansada. Pelo contrário, me sinto completamente desconectada da minha antiga vida. É perturbador, mas também libertador. Como se eu pudesse recomeçar de verdade. Volto, então, à tarefa de pesquisar a vida de Hannah Granger. Mas a internet está fraca, e antes que meu celular carregue os resultados, ela cai de vez. Que irônico, um dos países mais avançados do mundo, com problemas de conexão. Ou pode ser o universo conspirando para manter um certo mistério no ar. Sorrio diante de um pensamento tão lúdico. Guardo o telefone e me reclino no assento, deixando a mente livre. Meu estado mental fica alternando entre estragar tudo e fazer dar certo durante a maior parte do trajeto. Me endireito quando percebo os gigantescos edifícios e arranha-céus. Brian nota meu movimento. — São bem imponentes, não é mesmo? Ficam ainda mais bonitos a noite. Balanço a cabeça concordando, mas meio que gosto do reflexo do sol nas janelas espelhadas. Me lembram as paisagens urbanas dos cartões-postais. — Quanto falta? — Pergunto, sentindo a ansiedade se fazer presente. — Estamos chegando. O apartamento principal da família Granger fica no próximo edifício. Apartamento principal? Interessante. Porque tem gente rica e tem gente realmente rica. Não paro de pensar que minha pesquisa sobre a família Granger devia ter sido mais cuidadosa. Brian para em frente à um edifico. Na verdade, “edifício” é pouco. Esta mais para um luxuoso arranha-céu. Ainda estou boquiaberta quando ele dá a volta e abre a porta pra mim. O lugar não é nem minimalista nem ostensivo. A única vez que vi algo do tipo foi quando passamos o Natal em um hotel de luxo em Londres. — Você ja deve saber, mas a Sra. Granger prefere que você more com ela ao menos enquanto consegue se estabelecer. Mas, se não der certo, você tem alguns dos outros apartamentos da família a sua disposição. Lanço um olhar meio curioso para ele. Deve ter alguma coisa escondida por trás desse comentário. Por que não “daria certo”? Sigo Brian através do salão principal, fazendo meu melhor para não mostrar o quanto estou impressionada. Ele cumprimenta alguns funcionários e pegamos o elevador. Depois de atravessar o corredor, ele abre a porta de um dos apartamentos. Já estive em tantas casas bonitas que sou meio que imune aos luxos que o dinheiro pode comprar, mas não estou acostumada com esse tipo de beleza. Não tem nada da ostentação esnobe aqui. É um apartamento moderno. A sala é espaçosa e tem grandes janelas com vista para o horizonte. O piso é de madeira de lei escura e as paredes são de um tom acizentado. Na lateral do cômodo, há uma larga escada de madeira. Não há quase nenhuma decoração, a não ser por um tapete persa, o que funciona muito bem. Frescuras demais desviariam a atenção da beleza natural da madeira exposta. Acompanho Brian até uma cozinha equipada, onde uma mulher de meia-idade prepara algo no fogão e uma garota de cabelos loiros se encontra sentada em uma banqueta perto do balcão. Brian murmura alguma coisa para a mulher que se apresenta como Amélia, então se volta para a garota. — Srta. Rodrigues, esta é a Srta. Granger. — Gabriella, por favor — digo com um sorriso. — Pode me chamar de Kathleen — a garota diz, apertando minha mão de maneira amistosa. Ela tem expressões suaves e aparenta ter minha idade. — Sem formalidades. Você é mais nova do que eu imaginava. — Comecei a faculdade cedo. — Isso explica por que minha mãe te selecionou. Ela só trabalha com pessoas realmente dedicadas. Apenas sorrio. Imagino que não tenha sido apenas por esse motivo que Elizabeth Granger me escolheu dentre tantos candidatos. — Você vai gostar daqui — Kathleen comenta, com um sorriso. — Principalmente quando começar a trabalhar no teatro. — Estou ansiosa para isso — digo. — Mas primeiro preciso conversar com a Sra. Granger. Ela está em casa? Brian e Kathleen trocam um rapido olhar, e eu me pergunto o que isso quer dizer. — Minha mãe está em Washington, mas deve chegar à noite. Você pode conversar com ela depois do jantar. — Tudo bem — digo, tentando não parecer confusa. — Bom, por que você não vai conhecer o apartamento enquanto preparam o seu quarto — diz Amélia, sorrindo. — Tenho certeza de que logo vai estar se sentindo em casa. Tenho quase certeza de que Brian balbucia algumas palavras bem baixinho, mas logo em seguida já está saindo pela porta. — Tem uma vista incrível da cidade — ela diz, indo até a geladeira para pegar alguns ingredientes. — Mas já vou avisando que fica perto do quarto da Hannah — diz Kathleen, gentil. E mais uma vez me pergunto o que isso quer dizer. — E onde está… hum, a Hannah? — Pergunto, tentando ao máximo não ser invasiva. A expressão sorridente de Kathleen vacila um pouco, e, por um segundo, penso que quer me alertar sobre alguma coisa, mas então o sorriso volta a seu rosto. — A julgar pelo horário, ela deve estar dormindo. — Mas são quase onze da manhã — comento. Kathleen se levanta da banqueta e quando acho que não vai me responder, ela apenas diz: — Vai lá conhecer o apartamento. Ele é bem maior do que parece. — Então ela murmura alguma coisa com Amélia e sai da cozinha. Sem opções, me pego fazendo um breve tour pelo apartamento, passando pela ampla área externa, sala principal, por um corredor com muitas portas e parando em frente à uma sala que lembra um escritório. Os móveis são todos de madeira e parecem peças únicas, por isso acredito que foram feitos sob encomenda, e não produzidos em larga escala e distribuídos para milhares de casas. Há uma grande mesa de mogno em frente à uma ampla janela. Na lateral está disposta uma estante com uma enorme variedade de livros. E na extremidade oposta tem uma poltrona de veludo. Parece um lugar confortável para se passar o tempo. Me aproximo da estante, onde estão dispostos edições em inglês, português e japonês. Incluindo uma magnífica coleção das obras de Shakespeare. Acabo pegando um exemplar em mãos. — Você deve ser Gabriella Rodrigues. Sem deixar transparecer meu susto inicial, viro e observo a mulher parada na porta. — E antes que pergunte, minha irmã me falou seu nome — ela acrescenta. Estou surpresa, porque Hannah Granger não é a reclusa com restrições físicas que eu estava imaginando. Ela é jovem. Tipo quase da minha idade. — O que está fazendo aqui? — Ela pergunta, entrando no escritório. Instintivamente, dou um passo para a trás. Então percebo que, apesar de dar a impressão geral de juventude e vitalidade, ela não se movimenta com agilidade. — Eu perguntei o que está fazendo aqui? — Ela repete, dessa vez com certa impaciência. Me pergunto por quantos horrores ela passou, porque apesar dos traços suaves ela parece bem amargurada. Eu provavelmente deveria responder à sua pergunta com palavras calmas e precisas. Nada me vem à mente, então fico em silêncio. — Ela não vai melhorar só porque você está encarando — ela diz, antes de se encostar na mesa e cruzar os braços. Ela manca um pouco, mas… Penso em ir até ela para ajudá-la de alguma forma, mas algo me impede de fazer isso. Não acho que ela queira ser tratada como uma inválida. — Como é? — Pergunto, colocando o livro de volta na estante. — Minha perna, ela não vai melhorar só porque você está encarando — ela diz, sua expressão está séria. Eu deveria me retirar diante da grosseria. Mas, em vez disso, me aproximo. Não me lembro de ter visto uma mulher como essa antes. Olhando assim, ela é praticamente perfeita. Seus cabelos castanho-claros, estão soltos, e ela veste uma camisa de mangas compridas branca e calça jeans desbotada. Segura um celular na mão direita. — Deixa eu adivinhar? Você estava esperando alguém em uma cadeira de rodas? — Ela pergunta, abruptamente. Na verdade, não. Mas imaginei que ela fosse mais debilitada fisicamente. Dou mais um passo para a frente, e noto como ela fica tensa à medida que me aproximo. Eu teria pena se não suspeitasse de que está usando o ferimento para justificar o fato de que é uma grosseira. — Quando você terminar esse jogo, talvez possamos jogar algum jogo de tabuleiro. O que acha da ideia? — Digo, simpática, ainda olhando para seus olhos. — Seria ótimo — ela retruca, no mesmo tom agradável. — Jogos de tabuleiro não exigem duas pernas funcionais. Sinto uma pontada de pena. Talvez eu esteja sendo dura demais com ela. E preciso me lembrar que esta é sua casa e eu não passo de uma hóspede temporária. Ou melhor, eu não passo de alguém que vai trabalhar com a mãe dela. Antes que eu perceba, minha mão já está sobre o ombro dela. Sei que Hannah não estava esperando que eu fosse tocá-la, porque leva alguns segundos para que ela tire meu braço. Por um momento, eu espero que ela se afaste ou me empurre. Em vez disso, ela me encara, deixando que eu veja direito a forma como seus olhos castanhos não revelam nada — nem mesmo cautela —, quase parte meu coração. É como se ela tivesse erguido uma barreira pessoal que a afasta de tudo. Nós nos olhamos por alguns segundos e eu sinto o coração um pouco abalado quando Hannah se concentra em mim. — Acho que você deveria ir — Ela diz, desviando o olhar. Por instinto dou alguns passos para trás antes que ela me ataque verbalmente. — Sua família têm uma bela coleção de livros — digo, como se ela não tivesse me expulsado do escritório. Por um momento, vejo em seus olhos que está intrigada. Mas quando penso que ela vai revidar com alguma grosseira, sua expressão se torna mais suave. — A coleção é minha. — Ela diz. — Apesar de viver no mundo da arte, Elizabeth não gosta muito de ler. E Kathleen não tem muito tempo livre para fazer isso. — Você pode me recomendar algo? — Pergunto, em voz baixa, sem tirar os olhos dela. A surpresa passa por seus traços lindos, seus olhos continuam fixos nos meus até que, muito lentamente, ela abaixa a cabeça e passa as mãos pelos cabelos. Perco a concentração enquanto observo seus fios caírem de volta perfeitamente. — Olha, eu realmente não quero fazer isso — ela diz, voltando a me encarar. Mas sua expressão agora só parece… cansada. — Vamos ser claras: você vai viver neste apartamento a partir de hoje e eu não posso fazer nada quanto a isso. Então respeite o meu espaço e eu prometo que não cruzo o seu caminho. Eu me sinto estranhamente incomodada pela forma como ela falou isso. Mas não estou aqui para causar problemas e tampouco tenho alguma coisa haver com a forma como ela leva a sua vida. — Tudo bem — digo, sem desviar o olhar. — Ótimo, então você já pode se retirar — Hannah diz, quase sem mexer a boca. Adoto um olhar condescendente. — Claro, já estou saindo. Caminho até a porta, mas antes de sair me viro uma última em sua direção e digo: — Você deveria conferir se na sua coleção tem algum livro de auto-ajuda. Eu me afasto de sua expressão enraivecida confiante de que ganhei a batalha, mas a um custo muito alto. Porque posso ter pegado pesado demais.
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