Hannah
Não conheço ninguém que se considere uma pessoa matutina e, bem, não sou diferente. Principalmente porque há um bom tempo não tenho motivos para acordar cedo. Mas hoje é uma exceção, porque minha mãe está em casa.
Quem acha que oito e meia da manhã é cedo demais para receber uma lição de moral nunca conheceu Elizabeth Granger.
— Posso saber até quando você pretende me ignorar? — Minha mãe me pergunta, olhando com desdém para o livro em minhas mãos.
Sentada em uma poltrona de veludo, só ergo o olhar em sua direção.
Eu prometera a mim mesma que não conversaria se ela me chamasse novamente. Suas atitudes recentes abalaram nossa relação, destruindo muito do que fomos um dia. Mas eu sei que não posso cumprir a promessa de igroná-la. Ela é minha mãe. Mesmo quando não me entende — o que tem acontecido com frequência —, ela ainda é minha mãe.
— Estou prestando atenção. — digo, abrindo um sorriso de escárnio. — Veja pelo lado bom, é apenas um livro. Se eu começar a beber, aí sim teremos um problema.
A expressão dela nem vacila. Por que deveria? Está no modo “desaprovação” desde o dia em que eu contei que fui aceita na academia de polícia e que não iria seguir seus passos e me tornar uma musicista.
Essa é a minha mãe. Sempre a um passo de me chamar para tocar piano ou ir ao teatro. Quando não está me incentivando a seguir meus sonhos, claro.
Acho que a essa altura da vida, ela deveria estar satisfeita. Afinal, enquanto eu combatia o crime o pior aconteceu comigo. Uma missão m*l sucedida e volto pra casa com uma perna irreparável. É inevitável não ficar tentando imaginar como hoje as coisas seriam diferentes se aquele dia não tivesse acontecido.
Bom, talvez eu esteja sendo meio melodramática. Ainda tenho minha perna. Mas, pela funcionalidade que tem agora, não posso afirmar que estou em vantagem.
Sempre que as lembranças se fazem presentes a angústia ameaça me sufocar. Faz um ano que isso aconteceu, mas ela não diminuiu. Talvez tenha até aumentado.
Mas tenho todos os dias que virão para ficar com pena de mim mesma. Agora foco minha atenção em descobrir quais são as reais intenções da minha mãe. Não é todo dia que a ilustre Elizabeth Granger tira um tempo para conversar com sua filha mais velha.
— Amélia me ligou — ela comenta. — Disse que sua fisioterapeuta deseja conversar comigo.
Balanço a cabeça, com pesar, e encaro o livro. Claro que esse seria o tópico da nossa conversa.
— Talvez ela queira discutir sobre como uma fisioterapia bem aplicada pode fazer com que eu retome uma vida normal.
— Não é… — Minha mãe perde a paciência e suspira, irritada.
Ela não grita. Elizabeth Granger nunca grita. Acho que ela prefere extravasar suas emoções mais intensas através da música e não através das palavras.
— Você realmente está reclamando?
Sinto o tom de escárnio em sua voz. De alguma forma, eu entendo. Do ponto de vista dela, sou só uma adolescente mimada presa no corpo de uma mulher adulta. Mas é melhor que ela me veja assim do que deixá-la descobrir a verdade… E a verdade é que eu não me importo com nada há muito tempo. E que torço para que tudo isso tenha fim logo.
Mas se minha mãe descobrir que morri por dentro, não vai se contentar em contratar fisioterapeutas e cuidadores para ficar de olho em mim. Vai me internar em alguma clinica privada.
Minha expressão-padrão de escárnio surge em meu rosto.
— Bom — digo, levantando e mancando até a estante para guardar o livro. — Talvez ela queria discutir sobre quanto está recebendo.
— Tenho certeza de que essa não vai ser a pauta da nossa conversa — minha mãe reage, cruzando os braços. — Nós duas sabemos que é sobre você que ela quer conversar. Sobre o fato de que vem se recusando a cooperar com o tratamento como já fez antes.
— E quando você vai entender isso, mãe? — Pergunto, guardando o livro, encostando o quadril na estante e me virando para encará-la. — Quando? — repito. — Acho que está mais do que claro que não vou me iludir com nenhum exercício funcional.
— Droga, Hannah…
— Você pode continuar trazendo-a para cá, mas eventualmente até ela vai perceber que sou uma causa perdida, não acha?
Ela continua de braços cruzados, agora sem me encarar. Está olhando para a janela, onde o céu pode ser vislumbrado através dos grandes edifícios da cidade, sob a luz do início da manhã.
Prefiro o fim da tarde, quando o sol está se pondo. Principalmente porque significa que o dia acabou. Pelo menos até que venha um novo dia. E ele sempre vem. Não importa o quanto eu torça para isso não acontecer.
— Contratei essa fisioterapeuta para ajudar você — minha mãe diz.
O problema é que ela realmente acredita que ter alguém dedicando seu tempo para tentar recuperar minha perna de alguma forma vai apagar o que aconteceu. Só não sei como fazer com que ela entenda que algumas coisas não podem ser consertadas ou apagadas. Minha perna, por exemplo.
— Mãe — afirmo, com a voz um pouco áspera —, eu estou bem.
Seus olhos castanhos, do mesmo tom dos meus, me perfuram.
— Você não está bem, Hannah — ela retruca. — m*l consegue andar. Não sai desse apartamento a não ser forçada. Só lê e fica aí deprimida…
— Prefiro "pensativa". É bem menos problemático.
— Para de fazer graça! Você perdeu esse direito depois de…
— Depois do quê? — Eu me endireito, tomando o cuidado de colocar todo o peso na perna direita para não cambalear. — Em que ponto perdi o direito de ser engraçadinha? Depois disso? — Aponto para a perna e fico estranhamente satisfeita quando minha mãe desvia o olhar.
— Não se trata da sua perna — ela diz, bruscamente. — É a forma como você lida com isso. Você sabe.
Sim, eu sei. Mas não acredito nem por um segundo que o fato de uma especialista vir aqui três vezes por semana para tentar me convencer a fazer fisioterapia vai consertar alguma coisa.
— Já tenho a Kathleen — resmungo.
— Sua irmã tem suas próprias responsabilidades. Ela não tem tempo para ficar em casa e garantir que você não faça nenhuma idiotice.
Volto para a poltrona de veludo, cansada demais para tentar esconder que manco.
— Eu poderia estar fazendo coisas bem piores que ficar longe do seu caminho, sabia? Quer mesmo que seus amigos da alta sociedade me vejam assim?
— A questão aqui não é essa. E foi você quem se exilou.
— Exato! Não quero ninguém olhando com pena para mim. Então durante sua conversa com minha fisioterapeuta, você pode dizer a ela que seus serviços não são mais necessários.
— Nós duas sabemos que isso não vai acontecer — ela afirma, assentindo com a cabeça uma única vez. — E para que saiba, não foi esse o único motivo da minha vinda aqui.
Fico surpresa ao ouvir o que minha mãe disse.
— Espera. Do que você está falando?
Ela levanta o dedo e seus olhos se endurecem. Então percebo que não estou mais falando com minha mãe, mas com Elizabeth Granger, a renomada compositora musical. A mulher que as revistas descrevem como gênio atemporal.
Por instinto, me preparo para o que está por vir. Levou vinte e oito anos, mas finalmente comecei a entender minha mãe. E algo me diz que ela está prestes a mudar de tática.
— Preciso te informar de algo. Uma velha amiga me pediu para ingressar sua filha no meio musical. Ela deve chegar do Brasil na próxima sexta para realizar o teste no teatro. O que significa que pelos próximos meses ela vai trabalhar comigo e morar nesse apartamento.
— Como é? — Pergunto, me levantando. Amo o fato de que, apesar do ferimento na perna, continuo alguns centímetros mais alta que ela.
Minha mãe me ignora e apenas continua:
— E eu realmente espero que você use do seu bom senso e seja educada. Caso contrário, vou ter que tomar medidas drásticas. E nós duas sabemos que você não está em condição de sair dessa casa.
O sarcasmo da minha mãe me faz ranger os dentes. Foi ela quem insistiu para que eu vendesse meu apartamento e me mudasse para o seu — o que mostra como ela não me conhece. Se minha mãe acha que a ideia de ser expulsa desse apartamento luxuoso tem alguma importância para mim, está totalmente enganada.
Ela me olha com uma certa expectativa, como se pensasse que vou concordar com seus termos só para poder continuar vivendo em meio ao conforto, desfrutando de coisas caras.
Sinto uma leve onda de satisfação porque, mais uma vez, estou prestes a desapontá-la.
— Talvez você esteja enganada — digo, soando tranquila. — Acho que já fiquei tempo demais aqui e está na hora de eu ir embora.
Ela pisca os olhos, surpresa.
— E para onde você vai?
— Vou dar um jeito.
E realmente tenho como fazer isso. Sei que não tenho muito dinheiro, mas com a pensão por invalidez e minhas economias, posso alugar um bom apartamento em algum lugar.
Ela estreita os olhos.
— Sejamos razoáveis, Hannah. Você sabe que não está em condição de viver sozinha, o que poderia ser diferente se aceitasse fazer a fisioterapia.
Dou de ombros.
— Não sou uma inválida. Posso muito bem conseguir me virar.
— E sua irmã? — Ela diz, séria. — Como acha que ela vai reagir diante dessa decisão?
Viro-me para a estante de livros. Minha mãe sabe que acabou de atingir meu ponto fraco. Não é o pensamento de sair de casa que faz meu coração acelerar. Posso me virar. Mas não posso preocupar ainda mais minha irmã. Porque nós duas sabemos que a ideia de eu morar sozinha pode ser… perigosa.
Pensar que minha mãe acha que não passo de uma egoísta me deixa incomodada. Eu adoraria falar para ela a verdade. Que a única razão para continuar tentando é pela minha irmã.
Mas permaneço em silêncio e continuo vivendo as suas custas. Mesmo que me torne apenas uma encostada aos olhos dela.
— Você vai mesmo ser egoísta ao ponto de sair de casa só porque vamos receber uma hóspede? — Ela questiona, se aproximando.
— Não foi você que acabou de me impor isso? Vamos ser sinceras, acho que sua filha patética e ex-agente especial não é uma companhia agradável há muito tempo.
As palavras “agente especial” pairam entre nós, e, por um segundo, acho que peguei pesado, porque se meu ponto fraco é minha irmã, o ponto fraco dela é o sacrifício que eu fiz por esta cidade.
Mas Elizabeth Granger é orgulhosa demais para se deixar abalar. Ela apenas me encara antes de recuar alguns passos.
— Estou falando sério, Hannah. Ter mais alguém morando nesse apartamento pode ser bom para você.
— Como é? O que você quer com tudo isso, afinal? — Pergunto bruscamente, encarando-a.
Ela solta o ar devagar.
— Quero que tente, Hannah. Que tente recuperar sua agilidade, se adaptar diante das mudanças físicas. Entendo por que no começo você quis se manter reclusa, mas já se passou um ano. Chega. Você tem que se recompor.
— Em resumo — digo, cruzando os braços na frente do corpo — você acha que conviver com essa garota de alguma forma vai me curar. Quem está sendo egoista agora?
Ela fecha os olhos por meio segundo.
— Pense por esse lado, vou suspender suas sessões de fisioterapia pelos próximos meses e você pode continuar morando aqui. A única coisa que precisa fazer e se permitir tentar.
Sinto um aperto no peito. Por um segundo acho que é raiva e tenho vontade de gritar com minha mãe por não me entender. Mas não digo nada, porque isso não é sobre mim. E com certeza não é sobre uma pobre garota que está vindo trabalhar com uma das maiores compositoras musicais do Estados Unidos e nas suas horas vagas deve consertar meu mundo inteiro. Isso é sobre minha mãe e a tentativa dela de tentar se redimir com sua filha aleijada.
Não preciso do dinheiro da minha mãe. Mas não posso falhar com minha irmã.
— Então, se eu me portar corretamente nos próximos meses, posso continuar morando aqui? Sem a interferência da minha fisioterapeuta?
Ela me encara, e pela primeira vez não parece brava. Só parece triste.
— Isso. Sem fisioterapia.
Inspiro fundo. É uma situação horrível, e pela milésima vez acredito que a melhor opção seja sair de casa.
Mas não tenho como não atrapalhar a vida da minha irmã sem permanecer aqui. Se fosse só uma questão prática e cotidiana, eu simplesmente poderia fazer minhas malas e ir embora. Mas com o concerto se aproximando, não posso preocupar Kathleen com meus problemas. Posso suportar isso por um tempo.
— Tudo bem — digo. — Vou tentar me recompor.
Seus olhos continuam parados fixamente sobre os meus por alguns segundos, enquanto ela avalia minha decisão.
— Ótimo. Assunto encerrado. Mas se eu souber que você foi desagradável com a garota uma única vez, vamos precisar ter uma conversa.
E então, como se tudo estivesse resolvido e ela não se importasse em ter interferindo na vida patética que eu levo, minha mãe vai para a porta.
— Tenho um concerto em Washington. Brian vai me levar ao aeroporto. Se tudo der certo, estou de volta no fim de semana.
Apoio as duas mãos na mesa, olhando para a estante de livros.
— É. A gente se vê.
Minha mãe para na porta, e eu viro para ela.
— Ei — falo, antes que ela desapareça por mais dois dias, ou uma semana, ou até que a culpa a obrigue a vir para casa e ver como estou. — Essa garota que está para chegar… E se eu me comportar, mas, ela não gostar… do nosso país?
Ambas sabemos que não estou falando do nosso país. O problema é que é preciso muito mais que uma excelente oportunidade profissional para que alguém consiga conviver com a minha presença. O problema é unicamente eu.
Minha mãe fica em silêncio por alguns segundos.
— Bom… eu realmente espero que ela goste dos Estados Unidos.