Partida

1503 Words
Capítulo-IX. Partida " Sair do meu pais me faz ser comparado a uma planta que foi arrancada da terra de onde nasceu e cresceu." Ragnar O tempo não dá tréguas à chuva, e isto não me é incômodo, antes pelo contrário. Os dias nublados, chuvosos e frios são os que mais aprazem ao meu espírito. O clima da Escócia é em regra temperado marítimo, marcado por verões frescos e invernos suaves. Muito recebe de chuva a terra, mormente nas regiões ocidentais e nas serranias, onde a tormenta se faz mais intensa. No estio, as temperaturas costumam vagar entre quinze e vinte graus, enquanto no inverno descem de zero a cinco, podendo em montes mais altos descer ainda mais. Os ventos reinantes vêm do oceano Atlântico, trazendo a umidade e a inconstância do céu. Muito mudou, e com isso também o clima. Lástima é, a meus olhos. Recordo que, em dias idos, quando sangue ardente me corria nas veias — no século XII — a Escócia era mais fria e mais úmida que os dias contemporâneos. Nesse tempo, a Europa sofria um resfriamento que chamam a Pequena Idade do Gelo, surgida ao termo da Idade Média. As transformações foram muitas: a vegetação diversa, as florestas mais cerradas cobrindo vastidões de terra. E vi morrer, pouco a pouco, as terras de semeadura crescendo e tomando posse sobre grandes extensões. As edificações, outrora erguidas para suportar o rigor, perderam serventia, e a modernidade de cada século nasceu, cresceu, dominou, morreu, e deu lugar a novas feições que se sucederam. Termino de vestir-me em silêncio, olhos postos na grande janela, vendo o céu — eterno companheiro — chorar. Apronto-me, tomo minha única mala e deixo o quarto do hotel. Desço ao salão e ali encontro Hunter. — Bom dia, que os deuses celtas vos guarde nesta manhã, irmão — saúdo, ao achegar-me. — Bom dia, que os deuses celtas vos guarde também, Ragnar. Estais pronto para tomar a donzela e partir em demanda da nobre Escócia? — Como não estaria. Meu peito, que há séculos anseia pela presença de minha dama. Meus olhos, quais lâminas de espada bem forjada, trespassam-me por não poderem repousar sobre tamanha formosura. Hunter fita-me com severidade. — Sossegai vosso coração, ó nobre irmão. Não vos deixeis levar pelo que é só corpo; talvez a alma não seja a mesma, e de tal diferença vos advenha dissabor futuro. — Ora! Não me venhais com tal faladura. Percebeis quão inoportuno vos mostrais? — Apenas a verdade vos falo, caro irmão. — Encerrastes vossa estada ou deixastes tal ofício ao encargo de nossos advogados e representantes? — Fiz eu mesmo, não vos apoquenteis. Iremos já de reto ao aeroporto? — Não, antes passarei a buscar Elizabeth — respondo, e Hunter prende-me os olhos por breves instantes. — Corrigi-vos, conde de Campbell. É Liliana, a donzela brasileira cuja aparência traz vislumbre de vossa condessa de Argyll. — É ela! Minha esposa rediviva! — digo, e sinto-me arder em cólera, pois Hunter me provoca com tamanho zelo. — Saberemos ao tempo devido, nobre irmão. Ei-mos de partir, deixando estas terras cálidas que à pele nos são agressivas. Hoje o céu agracia-nos com tempo ameno e chuva, que bem nos brinda no regresso. Não vedes como é desvelo de nossa eterna existência? — Um sopro de frescor às ardências a que estamos submetidos. Saímos caminhando juntos; as gentes em torno lançam-nos olhares curiosos, e seus cheiros chegam até nossos sentidos aguçados. Atrás de nós vêm os guardas: disfarce perfeito. Homens vulgares precisam doutros que lhes vigiem a segurança. Adentramos no veículo. — Segui à morada de Edgar — ordeno ao motorista. E seguimos em absoluto silêncio, apenas os rumores do mundo externo penetrando abafados no interior do veículo, fendendo a quietude. Minutos depois paramos à frente do prédio. — Como fizestes para adentrar ao apartamento? Sabeis bem que... — Fui por convite chamado, meu caro. Aguardai-me, que em breve retornarei Deixei o carro e caminhei passando pela portaria com a facilidade de uma sombra. Não fui impedido e muito menos minha entrada verificada. A poucos passos, entro na caixa de aço. Aciono o botão do andar em que o vil ladrão se resguarda com a minha noiva. Foi fácil obter o endereço do escroque, fichas de contratação servem para tal. Paro de frente para a porta, outra vez. Respiro profundamente, o cheiro dela me vem como flores silvestres que nascem em largos campos. Bato duas vezes. Aguardo. O tempo passa e ninguém vem abrir para mim. Irrito-me. Estou prestes a abrir quando a porta se move, um rostinho pequeno surge pela fresta, olhos vermelhos e pálpebras inchadas despontam pouco a pouco conforme a porta cede. Minha Elizabeth surge, vestida com calças, blusa de moletom e tênis. Tais trajes destoam de toda a beleza que possui, escondem sua feminilidade e distorcem sua delicadeza. — Senhor Murdoch, entre. — fala com dissabor e agonia. Dou um passo, cruzando o limiar. O silêncio me recebe. — A vós aguardo, donzela. Breve é o tempo que nos separa da partida, pois o firmamento não se mostra clemente ao voo. Apressai-vos e recolhei vossas malas. — Uau, que mandão! Bom dia para o senhor também. — ela cruza os braços, os fios presos em um penteado que deixa o rosto livre. Ela é fresca como uma flor recém-colhida, delicada como o mais raro cristal. Semi-cerro as pálpebras em sua direção, o tom de sarcasmo é absurdo. A menina se comporta sem polidez alguma. Escuto passos, e quem surge é o próprio larápio em carne e osso, com toda a soma de covardia que habita o seu corpo mortal. — Pelo que vejo, os escoceses também seguem à risca os horários. — Eis-me chegado, a tomar o que me pertence por destino e por direito. - sou conciso e direto. A menina vira o rosto, soltando o ar com força dos pulmões. — Nem quero acreditar que isso está acontecendo comigo. — ela sussurra, como se suas palavras fossem capazes de modificar o que já está decidido. Seu olhar me atinge com raiva e revolta, coisa que nunca vi nele nos tempos em que foi minha e caminhou ao meu lado. Alguma coisa endurece dentro do meu peito; a severidade ressurge como máscara em meu rosto. Aperto o maxilar. — Crede, ó menina: de hoje em diante sereis minha. Perdão não mora comigo. Se outrora vencia ao gume de minha espada, hoje rompo os fios com os dentes, qual fera indomável. A garota coloca as mãos na cintura. — Ameaça, senhor Murdoch? — Avisos humildes, para que a donzela não ultrapasse os confins da minha paciência, por minha honra. Edgar se põe à frente da irmã, retirando do meu campo de visão o objeto do meu ardente desejo e razão de sobrevida. — Antes de retirar a minha irmã de casa, quero garantias de que ela será devolvida em perfeitas condições físicas e mentais. Homens como você costumam matar primeiro a alma e depois o corpo. Sorrio com escárnio. — Quem vos julgais, homem vil, para demandar de mim garantias? Confundis-me, acaso, com criatura de vossa ignóbil estirpe? Edgar me olha com desprezo. Nisso, somos iguais: não suporto seres patéticos como ele. — Vinde a mim, donzela; os ponteiros do tempo avança e há longo caminho de voo que nos espera. De repente, a menina se atira a meus pés, as mãos trêmulas se unem em súplica. Lágrimas descem por seu rosto. — Não me leve, por favor, tenha benevolência. Sou vítima no meio disso. Que culpa tenho eu dos atos do meu irmão? Tende misericórdia, senhor! Seus olhos molhados são belíssimos, seus lábios trêmulos também. Um conjunto de pureza que não se perdeu no perdurar do tempo implacável. — Erguei-vos, ó donzela, e não me torneis a ter asco de vosso agir humilhante. Não vos mostreis qual vosso irmão: um covarde que foge ante o primeiro sinal do estandarte inimigo. Ela estreita o olhar, confusa. Edgar faz o mesmo. “Oh, messa! Essa minha mania de não me adequar aos vocábulos...” — Erguei-vos, ó senhorita, e tomai vossas malas; por minha honra, de minha parte nenhum recuo se fará. A menina obedece, contudo estremece ao se aproximar de mim. — Não vai colocar suas mãos imundas em mim, seu porco! — fala bravia. Viro-me nos calcanhares, acompanhando a pequena criatura que pega as alças das malas com brusquidão. Edgar se aproxima; os dois trocam um abraço de despedida. A menina passa pela porta, e em seguida faço o mesmo. — Um ano, Murdoch. Após isso, Liliana retorna. Está estabelecido no contrato. — sua voz soa fria e dura, da forma que deveria ter sido desde o início. Olho-o por cima do ombro, sigo pelo corredor sem lhe destinar resposta. A pequena aperta o botão do elevador repetidas vezes, lágrimas numerosas deixam seus olhos. As portas abrem-se e entramos. Quando me viro, Edgar está parado no corredor, olho em sua direção. O homem chora em silêncio. Eu também chorei quando me levaram Elizabeth.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD