Capítulo-VIII. Véspera
“O profundo medo do abismo é o medo da própria alma.” ( Nietzsche)
Liliana
A imagem dele, imponente, de pé na porta do apartamento, não sai da minha mente. A imagem dele parado no meio da rua, com o olhar altivo e vazio, não fazia jus ao calor que senti quando suas mãos me seguraram perto do elevador. A forma enigmática como me olhava... os seus olhos… olhos raros, de um azul diferente…
Eles prendem e repelem com a mesma intensidade.
O ar foi arrancado dos meus pulmões no momento em que me vi com o corpo perto do dele, o impacto que esse homem causou ao simplesmente olhar para minha face.
A forma dura como falou sobre eu ter até domingo para aproveitar a companhia do meu irmão demonstrava ter algum poder sobre mim. Meu estômago se revirou ao me aproximar do calendário que está em cima da mesa de cabeceira.
Meu corpo esfria. Amanhã?! Meu Deus, é amanhã!
A voz dele ainda ressoa em minha mente: uma oitava baixa, tão grave que parecia nascer das profundezas do peito e se espalhar pelo ambiente como um trovão contido, firme e pesado. Cada palavra carregava um eco quente e sombrio, capaz de silenciar ouvidos e prender atenções.
Meu corpo treme ao olhar para as malas novas que foram entregues esta manhã na portaria, com um brasão impresso em suas frentes. São escuras, sóbrias, com detalhes cromados.
Não tive coragem de organizar nada, de abrir o guarda-roupas e pegar qualquer peça.
Me jogo na cama sem saber o que me espera do outro lado do Oceano Atlântico. É estranho que esse mar, que banha a costa brasileira, banhe também a costa escocesa de onde aquele ser c***l saiu.
Deixo a cama e o quarto. Vago pela casa vazia; o som de um trovão ecoa, fazendo com que um grito fino escape da minha garganta bem no momento em que meu celular toca em cima do sofá. Penso se tratar de Edgar. Meu irmão anda afundado em papéis; esses dias chegou pálido em casa, quase verde. Estranhei. Perguntei se estava bem e ele me respondeu que estava apenas cansado.
Não era para menos. O escocês estava pressionando Edgar.
Não acredito que meu irmão roubou pessoas e, pior que tudo, o que fez está me atingindo diretamente.
Caminho até o sofá e olho o visor; não reconheço o número, nem o código +44.
Estreito o olhar, tentando me recordar de alguém para quem eu tenha fornecido meu número. Um estalo em minha mente me traz Laís, minha amiga do internato. Meu coração salta; trocamos números em pedacinhos de papel em meio a uma despedida sofrida. No colégio interno, nunca nos foi permitido aparelhos eletrônicos, celulares muito menos. O que ganhei de presente de Edgar ficou guardado no apartamento. Nós, internas, tínhamos muitas responsabilidades; irmã Frida dizia que era necessário para não pensarmos em coisas indevidas ou indecorosas. Confesso que era massante e tedioso. Mas não tínhamos colher de chá e a rotina era a seguinte:
Oração comunitária três vezes ao dia, sendo obrigatório o silêncio absoluto durante a meditação após cada reza.
Memorização de salmos e trechos bíblicos, recitados em voz alta uma vez por semana diante da Madre Superiora.
Escrever um diário espiritual, entregue semanalmente às freiras, relatando pensamentos, reflexões e pecados cometidos em silêncio.
Responsabilidade com a limpeza: cada grupo de alunas era responsável por um setor (corredor, refeitório, capela, dormitório).
Trabalho manual obrigatório: bordar toalhas e lençóis usados no convento, costurar uniformes e produzir artesanatos que depois eram vendidos para arrecadar fundos.
Ajuda na cozinha: desde descascar legumes, varrer o refeitório, até lavar as panelas pesadas depois das refeições.
Cuidados pessoais dentro da regra: arrumar a cama diariamente de forma impecável, lavar e passar o próprio uniforme, manter cabelos limpos e sempre presos.
Jardinagem e horta: regar plantas, arrancar ervas daninhas, colher verduras e flores para ornamentar a capela.
Silêncio noturno: após o toque do sino, não era permitido conversar nos dormitórios, apenas rezar em silêncio antes de dormir.
Confissão mensal obrigatória, com relato sincero de pensamentos considerados impuros ou de pequenas desobediências.
Disciplina corporal: praticar postura correta ao andar, sentar e se apresentar diante das freiras, evitando gestos “vaidosos”.
Participação nos cânticos litúrgicos: ensaiar hinos católicos e entoá-los nas missas e celebrações internas.
Solidariedade interna: cada aluna mais velha deveria “apadrinhar” uma mais nova, auxiliando-a nas orações, nas tarefas e na adaptação à rotina.
Estudo do catecismo: leitura diária de trechos doutrinários, em vez de romances ou livros considerados “mundanos”.
Disciplina do olhar: era proibido olhar fixamente pela janela por muito tempo, considerado sinal de distração ou desejo pelo “mundo lá fora” e pelos homens que vinham fazer entregas ou serviços.
Responsabilidade com o sino: cada semana uma aluna era designada para tocar o sino que marcava as horas das atividades.
Se falar cansa, imagina fazer tudo isso todos os dias. Mesmo assim, construímos pontes e laços de amizade. Algumas preferiam ficar sozinhas, outras adoravam um grupinho para conversar.
Pego o aparelho entre os dedos.
—Alô? — minha voz sai fluída, cheia de imensa alegria. Finalmente iria ouvir a voz de Laís.
—Oi, Lass? Como estás?
Meu coração pula dentro do peito ao saber que não se trata de Laís, mas de Ragnar.
O aparelho escapa da minha mão, faz piruetas no ar e por muito pouco não se espatifa no piso.
Consigo pegá-lo no ar.
—O que você quer? — sou áspera, mesmo que minhas pernas estejam trêmulas.
O silêncio na linha é profundo. Penso que desligou, mas sou surpreendida:
—Anseio ardentemente por conhecer as vossas novas, ó nobre donzela.
Ele fala como uma múmia de trezentos anos. Mas que raios de linguajar é esse?
— Eu não anseio em compartilhar nada da minha vida contigo, senhor — sou atrevida; nem sei de onde está vindo tanta coragem.
Ele sorri, baixo, como se estivesse tripudiando da minha situação. A raiva em mim cresce.
— Porque não compra uma prostituta para você? Use o seu dinheiro. Monte um harém, tenha a cidade cheia de mensalinas, me esquece! — me rebelo contra o homem feito.
Estremeço de raiva, querendo jogar o celular contra a parede.
— Tu és o quinhão do pagamento de uma débeda; em teu caso, nenhuna escolha te assiste, nem mesmo vontade, ó nobre donzela.
A vontade de gritar se faz grande. Meus olhos ardem em lágrimas e revolta.
— Não serei a sua p**a, seu i****a! Não pense que vai colocar essas suas mãos podres em mim porque não vai. Sei muito bem o que velhos nojentos feito você deseja com meninas iguais a mim. Seu pervertido!
Berro a plenos pulmões.
Outro sorriso chega aos meus ouvidos, ele fazendo pouco caso de mim e dos meus sentimentos.
— Em minha posse serà quel eu julgar convénivel; e farei o que meu coração desejar, segundo minha vontade soberana. Este é o preço que deveis saldar, por teu irmão ousar delapidar minha feitoria e desonrar meu domínio. Irás deitar-te em minha cama, e receberás minhas sementas, e a mim concederás filho. Não tenteis ser astuta, donzella, com aquel que não conheceis, pois tal engano será-vos vã esperança.
—Quê? — estreitei minhas sobrancelhas, quase pedindo que traduzisse o que tinha dito. Porém não precisava de muito para que a minha mente entendesse que eu estava muito ferrada.
— Vá para o inferno, seu babaca! Escroto! — meus dentes batem com força a cada palavra cuspida com asco.
Um suor frio desce por minhas costas. A chuva cai pesada lá fora.
— Aquel que atravessou as alamedas do Purgatório não teme o seu próprio, porquanto nele se contém. Até amanhã, Lass.
A ligação fica muda. Jogo o celular no sofá, bem no momento em que Edgar passa pela porta, trazendo duas sacolas em mãos.
— O que houve, Liliana?
Olho em sua direção, com os lábios apertados em linha fina.
— Quer fingir que não sabe? Quando teus atos me revestem de agonia! Por Deus, Edgar, aquele homem teve o atrevimento de ligar para mim!
— Ragnar?
Estremeço à menção do nome.
— O próprio. O que ele fará de mim, Edgar? — indago, sentando-me pensativa.
— Me arrependo tanto de tudo o que fiz, Lili.
— Arrependimento não vai me tirar dessa confusão, Edgar. É amanhã. Ele teve o desplante de ligar para me lembrar, como se eu pudesse esquecer.
Meus olhos se voltam para meu irmão em busca de socorro.
— Me livra disso, Edgar. Faça alguma coisa!
Meu irmão levanta-se, exasperado.
— Não posso. Estamos sendo vigiados. Se tento tirar você deste apartamento, a polícia é acionada. Serei detido e você ficará à mercê de ninguém. Somos sozinhos, Liliana. Sem tios ou avós. Somos os últimos dois Freitas Navarro.
Minha boca amarga.
— Ele falou sobre filhos, Edgar. É isso mesmo? Vou ter que gerar uma criança para pagar essa dívida? Sabia dessa parte?
— Infelizmente sim. Vai gerar um herdeiro para o Murdoch e, com isso, garantimos a nossa integridade.
Olho para Edgar e não o reconheço.
— Você não pode estar falando sério. Estamos falando de duas vidas, Edgar: a minha e de alguém que não tem sequer alma. Como pode ser tão frio? — explodo, não consigo me controlar.
— Não faça caso, Lili. Tantas mulheres pelo mundo abortam, abandonam, pariem crianças e não estão se importando com elas, Liliana. Seja razoável, seu filho vai ser um herdeiro, rico, com um pai poderoso. Qual o m*l há?
— Eu não estou disposta a abrir as pernas para alguém que você roubou. Meus óvulos não têm preço, Edgar. Quem roubou foi você; quem tem que arcar com as consequências é você, e não eu.
— Não seja m*l-agradecida. Se eu não tivesse feito o que fiz, poderia estar morta, Liliana! p***a, procura entender.
— Eu preferiria estar morta, Edgar, do que sofrer a traição de ter um preço que você estipulou.Me sinto como um pedaço de carne exposta na vitrine para quem dar o maior lance.
Viro as costas, com lágrimas de raiva deixando meus olhos. Meu caminho parecia ter dono, e desvios não me são permitidos.