Capítulo-VII. Apocalipse
" O m*l que nos acompanha é a verdadeira condenação de cada um."
Ragnar
Deixo a morada à qual ora me é concedido o privilégio de entrada. É assombroso quão levianos são os mortais ao permitirem que estranhos transpassem o limiar de seus lares, sem conhecer-lhes a verdadeira essência. Convidar alguém a adentrar a casa é, não raro, abrir as portas ao insondável e ao perigoso.
A caixa de metal desce, e ainda me encontro embebido no doce fulgor do olhar de minha dileta Elisabeth. Quantos séculos se esvaíram, e eu vaguei em tormento, buscando-lhe a presença? Subsistir sem a minha bem-amada foi suplício atroz.
O elevador detém-se no térreo. Avanço a passos contidos, passo pelo porteiro, que se mantém absorto em seu artefato de comunicação. Abandono o edifício, e antes de seguir, ergo meu olhar à sacada onde reside minha condessa.
— Senhor. — O motorista abre a porta do carro para que eu adentre.
Acomodo-me no banco traseiro ao lado do meu irmão.
— Como foi? — indaga, com descaso, enquanto sorve da bebida que preserva nossas carnes da secura do tempo.
— Funesto.- Usei da franqueza - Minha amada não reconhece quem sou.
Hunter passa a língua pelos lábios; seus dentes alvos apresentam uma cor similar ao carmim.
— Deverias saber, ó nobre irmão, que esta tua obstinação em reencontrar a doce Elisabeth não logrará triunfo. Ela jaz há séculos, e não há regresso para os que, transpostos os sombrios portões da morte, se perdem nas brumas do além.
Meu olhar recai sobre Hunter como manto de aço.
— Que me dizes a respeito da jovem que se apresenta? É a própria Elisabeth, dotada da mesma aparência e do mesmo olhar que eternamente habita meu ser. A cor de seus cabelos, quiçá, se revela em tom mais claro, mas é, indubitavelmente, a minha amada que ressurgiu das sombras do tempo. Ela veio ao meu encontro, como se o destino nos convocasse, para que juntos selássemos nossos destinos, entrelaçando nossas almas na tapeçaria da eternidade.
— Coincidência fútil, meu irmão. Apenas a eternidade a zombar de teu anelo. Não é tua condessa, Ragnar Murdoch, mas miragem que o tempo ousa conjurar.
Hunter emudece ante a severidade de meu semblante.
— Será minha. Dar-me-á herdeiro e comigo permanecerá por toda a eternidade. Hei de trazer à tona a lembrança de sua essência verdadeira. Um fragmento de sua alma, tão pura e luminosa, há de ter guardado as experiências que partilhamos, eternizadas pela magia que nos uniu. Nem o tempo, em sua marcha inexorável, logrará apagar tão sublime vínculo. Ela lembrará, reconhecerá, e a memória de quem sou lhe será devolvida, como estrelas a dançar em sua mente, conduzindo-a de volta ao nosso fado.
— E se tal não suceder? Que farás?
— Não sei. Em todos os séculos de minha existência, não sei o que fazer.
— Talvez, então, devesses seguir o plano primeiro: faz nascer o herdeiro, e depois devolve a donzela.
Pelo canto do olhar observo Hunter. Meu coração, endurecido nas trevas, recusa tal proceder. E todavia… e se ele tiver razão? E se não for minha Elisabeth, mas apenas um engano c***l?
Minha mente, zombeteira, arrasta-me por túnel do tempo. Sou lançado ao pretérito, aos dias em que meus caminhos eram claros, e o fim certo: deitar-me em sepultura junto aos meus, em descanso eterno.
Sou levado ao instante em que a vi pela primeira vez, tempo esse que retratei em pintura.
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Meu pai tosse, chamando-me à atenção. Ergo o olhar à senhora e à filha. Isobel é, de fato, formosa e jovem; seus cabelos loiros cintilam como ouro líquido. Mantém a compostura própria das donzelas: recatada, não ousa mirar um cavaleiro nos olhos, pois não é de bom porte.
Eu a estudava, minha prometida, e pensava nos presentes que minha mãe havia escolhido com graça: broches de ouro e prata, anéis de safira e rubi — pedras mais comuns, à época, que o diamante. Sedas do Oriente, vindas por rotas custosas. Dois cavalos de guerra e um falcão de caça — falcoaria, sinal de grandeza em meu tempo.
O tocher — o dote da família da noiva — trazia terras, moedas e objetos preciosos. Como dissera meu pai, a união firmaria nossa soberania. Nosso clã não carecia de poder, mas ramificações espalhadas pela Escócia nos tornariam ainda mais implacáveis contra os que ousassem cobiçar nossas terras. O casamento era negócio selado no sangue, que se perpetuaria ao gerar-se uma criança.
— É com júbilo que me apresento a vós, digna senhora, e a vossa filha, cujo resplendor é como o alvorecer do sol.
A senhora sorriu levemente, e Isobel ergueu o olhar por um instante. Nada senti. Nem o vento me tocou.
Foi então que passos apressados ecoaram, e uma figura surgiu: cabelos castanhos ao vento, flores nas mãos, sorriso radiante como manhã de primavera. A lâmina desse sorriso penetrou-me como espada. Estremeci.
Ela nos fitou, mas logo o sorriso se desfez, como nuvens a cobrir o sol. A senhora de Lennox lançou-lhe olhar de repreensão. A jovem, em vestido claro, caminhava de olhos baixos. Eu quase não respirava: bebia sua imagem.
— Quantas vezes já lhe disse para portar-se com decência? — a mãe ralhou.
A donzela empalideceu, corpo rígido, cabelos emoldurando o rosto angélico.
— Perdoai minha falta, senhores. — Fez breve mesura.
Minha alma incendiou-se com sua voz. O sangue em minhas veias rugiu como rio em cheia. Eu a quis para mim, só para mim. Fiz-me poço de necessidade.
— Esta é Elizabeth Lennox, minha segunda filha.
Não mais ouvi. Tudo em mim se fixou nela.
— A tenra idade da donzela? — perguntei ao conde.
— Isobel conta dezoito primaveras. — Respondeu frio.
— E a mais moça? — Insisti, seco, impondo minha escolha.
O conde franziu o cenho.
— Audaz sois, cavaleiro. Viestes pela mão de Isobel, e ora quereis saber da pequena?
— Meu anseio é pela caçula, senhor. Desejo desposar Elizabeth.
Meu pai crispou o semblante, ergueu-se em reprovação. A senhora Lennox correu após Isobel, que se retirava aos prantos.
O conde cravou o olhar em mim. Não recuei. E, após breve silêncio, anuiu com menear de cabeça.
— Quinze anos, senhor. — respondeu Elizabeth, os olhos verdes cruzando os meus, tragando-me como terra que tudo reclama.
— Serás minha esposa, donzela.
Ela apenas curvou a cabeça em assentimento. Meu coração se contorceu.
— Elizabeth, retire-se. — O pai ordenou, e meu coração ficou inquieto.
A desejava ao alcance dos meus olhos. Odeie o conde de Lennox por tal ousadia.
Naquela época, diferente de hoje, a idade não era um impedimento para os casamentos arranjados, os lucros procediam os escrúpulos. Moça formada, pronta para conceber era logo desposada.
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Sou arrancado do meu passado quando o carro encosta na porta do hotel.
Desembarco, encostando a ponta da bengala no chão — um hábito que trouxe comigo da Idade Média. Ao longo da história, a bengala teve diferentes significados, dependendo do contexto cultural. Na Idade Média, era um símbolo de autoridade e poder, associada a líderes, nobres e figuras de prestígio. Carregar uma bengala indicava status e respeito. Hoje, no entanto, o olhar dos que não estão acostumados a vê-la nas mãos de um cavalheiro distinto não esconde: é um olhar que transparece respeito.
— Qual a data de nosso regresso? — ouço a voz baixa de Hunter.
— Domingo ao alvorecer.
Donzelas passam, cochichando e sorrindo atrevidas. O aroma de seus desejos nos alcança.
Entramos sem lhes dar atenção, não por falta de desejo de tê-las nos satisfazendo, mas por precaução. Passamos tempo demais fora do quarto. Tempo demais despertos
Nós não dormimos como os demais seres viventes desse planeta. Temos uma espécie de transe que se assemelha ao sono. Porém, se formos despertados de forma abrupta, atacamos aqueles que o fazem. É inevitável: um reflexo de proteção.
Há muitas crenças a cerca do que nós, seres provenientes das sombras, tememos ou não podemos tocar. Ledo engano. Água benta não nos fere nem expurga o m*l que nos habita. Alho não nos espanta e, se consumido, não nos mata nem causa severas dores estomacais. Se fosse assim, não poderíamos beber do sangue daqueles que utilizam do bulbo pertencente à família das liláceas.
A cruz não nos afugenta nem garante a proteção de quem a segura. Eu carrego uma cruz comigo, e pela cruz fui amaldiçoado. Estacas no coração matam qualquer ser, não apenas vampiros.
Nós somos vampiros, uma raça que vaga sem alma — e não com o coração parado dentro do peito, isso é ridículo. Um coração morto faz o corpo entrar em autólise, primeiro estágio da decomposição. No segundo estágio segue a putrefação, onde os gases liberados pela multiplicação de bactérias causam o inchaço do corpo, momento em que o odor é mais forte.
Não liberamos odores putridos, não nos decompomos porque, de uma maneira que desafia as leis da existência, estamos “vivos”. Coração bate, sangue circula, ar adentra nossos pulmões, nos alimentamos; entretanto, perdemos muito, como o sono, o calor normal para o corpo humano e, o pior de tudo, vemos muitos iniciarem uma vida e partirem no findar delas enquanto vamos perdurando ano após ano.
É um martírio querer encontrar a morte e não achar. É sofrível ver eras terem início e fim, tendo sempre que se adequar e resguardar a sua verdadeira identidade. Ter que de tempos em tempos renascer como outra pessoa.
Existe uma passagem da Bíblia que menciona que as pessoas desejarão a morte, mas não a encontrarão. Está em Apocalipse 9:6. O versículo diz: “Naqueles dias, os homens buscarão a morte e não a acharão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles.”
Esse trecho é frequentemente interpretado como uma descrição de tempos de grande aflição e sofrimento. Na visão de muitos, será no fim dos tempos, onde a humanidade será castigada por seus muitos pecados.
Mas o que muitos não entendem é que cada um vive o seu próprio Apocalipse, ignoram o fato de que a morte em questão pode ter diversas interpretações. No meu caso, o versículo é levado ao pé da letra. Procuro um fim que sei que jamais irei encontrar.