Capítulo- VI. Visita.
“É preciso ter um caos dentro de si para gerar uma estrela dançante"
( Nietzsche)
Liliana
— Entra no carro, Liliana. — Edgar fala baixo, pálido, com o semblante assustado deixando evidente a preocupação que sente.
— Boa noite, Edgar. — a voz do homem sai rouca, causando uma confusão insana em minhas entranhas, trazendo um desconforto e, ao mesmo tempo, um temor sem motivo específico. Os olhos azuis, mais azuis do que me recordo, voam em minha direção.
— Estamos indo para Chapecó. Liliana quer passar o fim de semana lá. Minha irmã gosta do ambiente rural, mato, florestas, essas coisas.
" Oi? Como? Quando foi que eu disse isso?' — olho para meu irmão sem reação.
O homem movimenta a cabeça devagar, como se fosse um predador prestes a avançar sobre Edgar.
— Não pode. Temos uma reunião importante amanhã. — a voz do ruivo é fria, sem emoção, e seus olhos são ainda piores: vazios, como dois buracos feitos no gelo da Antártica.
Um arrepio sobe pela minha coluna e rapidamente se espalha pelo meu corpo. Estremeço involuntariamente.
— Senhor Murdoch, será rápido. A deixo e retorno.
O ruivo move a cabeça outra vez de uma forma medonha. Travo os dentes. Há algo de anormal acontecendo. Edgar ganha uma cor esverdeada, e o homem ruivo quase não pisca ao encarar meu irmão.
— Edgar, retorne. — o sujeito diz antes de virar as costas. A voz dele carrega um sotaque pesado. Apesar da estrutura corporal grande, seus passos são leves contra o asfalto, não ouço o barulho, a sola do sapato sequer faz qualquer estrídulo, por menor que seja.
Aproximo-me de Edgar enquanto o homem entra no carro e bate a porta.
— O que foi isso? — pergunto, totalmente perdida.
Edgar me destina um olhar carregado de pesar.
— Preciso retornar, Lili. Me perdoa.
— Mas por quê?
— Só me perdoa, minha irmã.
Os olhos de Edgar estão cheios de lágrimas. Sua voz não possui a mesma alegria de antes. Ele me puxa pela mão em direção ao nosso carro. Entro sem fazer perguntas; é evidente que o clima está péssimo.
Edgar manobra o veículo. Observo, apreensiva, o carro do homem ruivo seguir o nosso bem de perto, enquanto uma motocicleta dita a velocidade que podemos andar. Edgar segura o volante com mais força do que o necessário, os nós dos dedos estão esbranquiçados.
— Você está bem, Edgar? Está pálido, tenso. Por quê? — indago, tentando entender.
Meu irmão aperta os lábios e meneia a cabeça em movimentos sutis.
— Estou bem, Lili. — Edgar alça a minha mão e a leva até os lábios, beijando-a suavemente.
— Quem são eles, Edgar? — pergunto, tentando entender o que está acontecendo, cavando respostas para o monte de perguntas que brotam em minha mente.
— Ninguém, Lili. Assim que chegarmos, darei um jeito de retirar você de Curitiba.
— Por quê? — tenho um sobressalto ao ouvir os dizeres do meu irmão.
— É necessário. Antes nunca tivesse voltado...
As palavras chegam aos meus ouvidos como mágoa. Engulo em seco. Solto o ar devagar pela boca. Reparo na motocicleta que continua ditando o caminho e a velocidade. Pisco lentamente; o frio na barriga me dá uma sensação estranha.
Minutos depois, entramos na garagem subterrânea do nosso prédio. Olho pelo espelho retrovisor e vejo o carro do homem ruivo encostar na rua, no meio-fio da calçada.
Edgar estaciona e dá um soco no painel.
— Meu Deus! O que é isso?- me assusto com o rompante de cólera que meu irmão extravasa.
— Nada, Liliana! Deixe as malas aí e suba. Tente contato com a irmã Antônia.
Meus olhos se expandem.
— Hã? Com a irmã?
— Sim, precisa ir para o convento. Será por pouco tempo, não fará os votos, não será uma esposa de Cristo. É apenas um meio de te manter protegida.
— Protegida de quê, Edgar?
Meu irmão me lança um olhar cheio de mistério.
— Da maldade do mundo, Lili.
" Por que isso? "— penso, alarmada, enquanto desembarco. Edgar faz o mesmo, me acompanha, e andamos apressados até o elevador. Entramos juntos: ele quieto e visivelmente nervoso, eu mergulhada nesse mar de pontos de interrogação.
Ao chegarmos no apartamento, Edgar corre para o escritório. Sigo atrás.
Ele vasculha gavetas. Um vinco cresce no meio da sua testa.
— O que procura?
— Uma agenda com capa de couro marrom. Você a viu?
— Sim, na terceira gaveta. O que pretende?
— Buscar alguma proteção. Tem um grupo de exterm...
Ouvimos alguém bater à porta, são socos fortes, pancadas secas que ecoam pelo apartamento. Edgar estranha, já que o interfone não tocou. Sua expressão de desconfiança abranda. Ele deixa o escritório a passos largos. Continuo seguindo-o.
— É o síndico, pedi que me informasse caso o... — a frase fica suspensa no ar quando Edgar abre a porta.
Quem está parado à nossa frente é o ruivo dono de olhos misteriosos e vazios.
Meu sangue esfria de maneira inexplicável. Engulo em seco.
— Senhor Murdoch? O que faz... como subiu se...
— Edgar, não me convida para entrar? — a voz dele é baixa, impossível, sua aparência soturna arrepia meus ossos. Sua aura é lôbrega, sombria.
Instintivamente, dou dois passos para trás e esbarro na mesinha, fazendo uma escultura balançar.
Meu irmão olha para mim com impaciência em suas íris verdes.
— Pode entrar, senhor Murdoch.
O ruivo dá o primeiro passo para dentro do apartamento.
— Vossa morada é formosa e acolhedora. Comprastes todas as coisas com a pecúnia que furtastes de meu poder?
Não entendo o que quer dizer. O sujeito estranho usa um dialeto rebuscado demais para os tempos atuais.
Ele caminha com passos silenciosos, incompatíveis com seu peso. É alto, robusto. Eu, que não sou baixinha, me sinto pequena, delicada em sua presença.
— Liliana, vá para o quarto, por favor. — Edgar pede, tentando manter a calma, mas com o desespero estampado no rosto.
Estou prestes a sair quando a voz do homem soa como um trovão:
— A dama permanece.
O sobressalto me domina. Olho para Edgar, que parece ter perdido a voz de comando dentro da própria casa.
— Senhor Murdoch, por favor, não... — os olhos de Edgar marejam, seus lábios tremem.
— Irias ocultar a donzela de meu olhar?
— Não, senhor, tudo foi um m*l-entendido...
O ruivo, antes com os lábios em linha fina, sinal evidente de desagrado, abre um sorriso cadavérico.
— Pensais que creio em vossas palavras? Que ignoro vossas verdadeiras intenções? Ora, meu caro Edgar, acreditais que estais a tratar com quem?
Ele desliza a mão enluvada pelo encosto do sofá, lentamente, como se fosse uma afronta. Seus olhos se erguem para mim.
— A tenra idade da donzela?
Travo feito estátua, meus pés colados ao chão. A voz dele ressoa em um tom baixo, mas carrega uma ameaça quase imperceptível. A situação revela de maneira inequívoca que meu irmão se encontra em apuros com esse homem, e que o enredo se torna cada vez mais intricado.
— D-dezoito. — gaguejo, nervosa.
Seu olhar, profundo e penetrante, adornado por um toque de cinismo, desliza pelo meu corpo, demorando-se em meus s***s e, em seguida, nas coxas.
Sinto-me exposta diante dele, apesar de estar vestida com peças comportadas: calça jeans e blusa de mangas longas.
Os ponteiros do relógio parecem suspender-se, enquanto o barulho do mundo exterior se silencia. Diante do estranho, sinto um desconforto crescente, nervosismo e a respiração aprisionada em minha garganta. Sua presença é como um vórtice, drenando todo o ar ao redor, ou talvez seja o oposto: um magnetismo tão intenso que retira o que é vital para a sobrevivência de qualquer ser.
— Conversastes com vossa irmã? Informastes-a acerca do nosso sagrado pacto?
Meu espanto diante da palavra "pacto" é imenso, e mais ainda com o que Edgar deveria ter me revelado, mas ainda não o fez.
Meus olhos, antes voltados para o chão, erguem-se na direção de meu irmão, em busca de alguma explicação que justifique esse silêncio.
— Pacto?! — Mil besteiras cruzam minha mente, sendo a mais inquietante a possibilidade de que meu irmão tenha se afeiçoado a alguma seita obscura.
_ Ora, o que vejo! Não pronunciastes palavra, deixastes vossa irmã desprovida de luz diante de toda a verdade, Edgar. Por qual razão, eu vos pergunto?
— Preciso de mais tempo. — Edgar leva as mãos à cabeça em desespero.
O homem, trajando um terno extremamente alinhado e de aparência sofisticada, avança alguns passos até se posicionar diante de mim. Enquanto isso, Edgar alterna seu olhar exasperado entre nós dois, como se tentasse decifrar a tensão no ar.
A altura do ruivo sobrepuja a minha. Me sinto indefesa diante do seu olhar duro e da sua presença perturbadora.
— Não necessitais de mais tempo. — sua voz rouca é grave, quase um sussurro. — Vosso irmão é um vil ladrão, que me furtou ao longo de anos.
— Hã?! — meus olhos se expandem.
Não quero crer no que ouço. Edgar jamais se rebaixaria a tal ato, e...
Meus olhos se descortinam, e começo a enxergar tudo com clareza; as peças finalmente se encaixam. Este homem , de olhar altivo, esnobe, é o chefe do meu irmão.
Minha boca se abre liberando um arfar pesado. O sujeito repara, seus olhos brilham, um sorriso cínico surge no canto da boca.
Estanco, e sinto tudo começar a girar em uma velocidade vertiginosa, como se meus pés quase perdessem a estabilidade.
Edgar me arranca da frente dele.
— Eu lhe imploro, Ragnar Murdoch, tenha piedade. — a súplica trêmula de Edgar faz meu estômago revirar.
"Ragnar, então é esse o nome dele."
Meu irmão, em nossas conversas raramente fala sobre aqueles que estão no topo da matriz que gerencia a cadeia de sucursais espalhadas pelo mundo, mencionando apenas que eram escoceses de grande renome e extremamente reservados em relação à vida privada. No entanto, era um tema que nunca despertou meu interesse, tampouco curiosidade.
— Aproveitai os derradeiros dias com vosso irmão. Às sete horas da manhã de domingo, estarei aqui para vos buscar.
Como?!
Meu corpo estremece, e minha carne vibra como se fosse se soltar dos ossos.
— Buscar para quê? — quase grito.
Edgar me olha com pesar, lágrimas caindo.
— Por favor, Ragnar, não faça isso. — meu irmão cai de joelhos aos pés do ruivo que ostenta um olhar implacável, carregado de desdém e impregnado de uma aura aristocrática que parece pesar no ar.
— Minha decisão é essa. Não cometa o erro de fugir outra vez. Minha paciência é limitada para vermes.- olhos vazios miram em mim - A senhorita permanecerá em lugar da quantia que vosso irmão despojou de minha empresa. Em suma, será este o pagamento.
— O quê?! — olho para Edgar, que chora de joelhos ao chão.
— Me diz que isso é mentira, por favor, Edgar! Fala que eu não sou uma nota promissória!- berro a plenos pulmões, meu coração indo parar nas solas dos pés, meu estômago ficando frio a cada minuto que se esvai.
Edgar move os olhos lacrimosos em minha direção; não são necessárias palavras, pois o silêncio que acompanha o sibilo de perdão é como uma facada cravada em minhas costas.
Sinto minha dignidade sendo subtraída, minha confiança traída, e minha vida entregue nas mãos de um desconhecido, tudo isso por meio da pessoa que prometeu, diante da cova de nossos pais, que cuidaria de mim.
Balanço a cabeça em negação, o choro ameaçando romper. Edgar se ergue e tenta uma aproximação, mas não permito.
— Você está me vendendo, Edgar! Alguma vez pensou em mim? Em como eu me sentiria?
— Me perdoa, Lili... tudo o que fiz foi pensando em nós. Não tive alternativa... nossos pais faleceram e...
— NÃO FALA DELES! ESTARIAM COM VERGONHA DO QUE VOCÊ FEZ!
_ O que você queria que eu fizesse, Liliana? Você estava doente, precisando de tratamento, tudos eles muito caros. Os profissionais que cuidaram de você eram os melhores. Acha que eles foram pagos com palavras bonitas?! Pois não foram! _ Edgar gesticula, exasperado.
— Eu não pedi por tratamento!
— Ah, não! Você definhava por puro prazer! As vezes que tentou se matar foram a rebeldia de uma adolescente mimada 'falando alto'! Você estava com problemas, p*rra! Problemas graves e psicológicos!
O estranho observa nossa briga, e o brilho em seu olhar revela o divertimento que está sentindo.
Com vergonha de ter minha i********e exposta e ferida por ter as cinzas do passado remexidas, corro em direção ao corredor, entro no meu quarto e bato a porta. Estou trêmula, aflita e, pior ainda, não consigo enxergar uma saída para esse problema. Meu choro sai abafado, e minhas mãos estão frias.
Afasto-me da porta, e então uma voz ressoa do outro lado da madeira:
_ Sete horas da manhã de domingo, estarei aqui para te levar comigo, 'lass'. _
Balanço a cabeça em negação, cobrindo a boca com a mão. Não quero ir, não quero ter minha vida roubada.