Fuga

1529 Words
Capítulo-V. Fuga " A pior fuga é a do sofrimento que traumatiza e te mostra o rosto da solidão. " Liliana Meu irmão estava histérico, olhava para todos os lados como se os matos tivessem olhos ou a noite nos espionasse. — Entra no carro logo, Liliana, não temos tempo. — sussurrou entre os dentes. Olhei para Edgar com preocupação. Ele nunca havia agido daquela maneira, não nesse curto espaço de tempo em que tenho convivido com meu irmão. Nossa história de vida não é algo fácil de relembrar. Somos órfãos de pai e mãe, ele pela segunda vez de mãe. Quando minha mãe, Lilian, conheceu o pai de Edgar, Lúcio, a paixão uniu os dois. Lúcio vinha de uma perda que o fez andar pela escuridão da solidão por dois longos anos, com Edgar nos braços. Minha mãe acolheu os dois e, por mais que conste “Bárbara Fonseca” na certidão de nascimento do meu irmão, a única mãe que ele conheceu foi Lilian. Eu nasci dezessete anos depois, fruto do casamento entre Lúcio e Lilian. No entanto, aos meus quinze anos, apenas uma semana após meu aniversário de debutante, meus pais viajavam de Santa Catarina para o Rio Grande do Sul em um jato particular juntamente com o patrão do meu pai, que possuía negócios na região sul do Brasil. Meu pai gerenciava os negócios de Adolfo, um senhor de sessenta e sete anos. Eu soube da forma mais bruta e trágica: através de um noticiário extraordinário que entrou de repente na programação. Se eu fechar os olhos, ainda consigo ouvir a voz da repórter falando: > “Um jato executivo modelo Embraer Phenom 300 decolou na manhã de sexta-feira do Aeroporto Bacacheri, em Curitiba (PR), com destino a Porto Alegre (RS). A bordo estavam cinco pessoas: dois tripulantes e três passageiros, entre eles o empresário Adolfo Bittencourt. Pouco mais de 57 minutos após a decolagem, já sobrevoando o litoral de Santa Catarina, próximo à divisa com o Rio Grande do Sul, a aeronave enfrentou uma forte instabilidade climática. Relatórios de tráfego aéreo indicaram que havia formação de células de tempestade com granizo e turbulência severa na região de Torres, no extremo norte gaúcho. O piloto tentou alternar a rota para o interior, comunicando ao controle aéreo de Florianópolis uma manobra de desvio. No entanto, por motivos ainda investigados, a aeronave perdeu contato com o radar e com a torre. Minutos depois, moradores de pequenas comunidades rurais de Praia Grande (SC) relataram ter visto o jato voando baixo e em aparente dificuldade, seguido de um forte estrondo. O avião caiu em uma área de mata fechada da Serra do Faxinal, em Santa Catarina, a cerca de 20 quilômetros da divisa com o Rio Grande do Sul, sem conseguir completar o trajeto até Porto Alegre. Equipes de resgate foram mobilizadas imediatamente, mas o acesso difícil por estrada atrasou as buscas.” Eu gritei tanto, mas tanto... era o avião que levava meus pais. Depois disso, um apagão. Não me recordo de mais nada. Edgar disse que fiquei em choque, internada por dois dias. Se meu mundo já tinha colapsado, piorou quando resgataram os corpos e o velório foi de caixão fechado. Não pude dar o último adeus, não pude ver os rostos dos meus pais. Na época, Edgar havia conseguido uma promoção na empresa onde trabalhava. Não tinha tempo hábil para cuidar de uma menina que acordava gritando e chorando em plena madrugada. Nossa vida estava em ruínas: eu definhava e levava meu irmão junto comigo. Depois de algumas semanas, fui internada com anemia e desidratação, pois não queria comer. Não tinha forças para sair da cama e encarar os fatos duros e cruéis: eu estava sem meus pais. Então Edgar resolveu me matricular em um internato em Perdizes, São Paulo: o Colégio Santa Edvirgens – mantido pela Igreja Católica e gerido pelas irmãs religiosas. Aceitei sem protestar. Meu irmão dizia que eu precisava me afastar de tudo e do lugar onde as lembranças persistiam. Os anos foram passando. Edgar me visitava durante as férias de junho e, no Natal, me trazia para casa. A primeira vez que pisei no apartamento dos nossos pais, um ano após minha ida para São Paulo, estranhei a mudança. Tudo estava diferente: móveis, cores das paredes, objetos de decoração... absolutamente tudo. — Gostou? Fiz pensando em você, para que não pensasse mais sobre o ocorrido. — Esses móveis são caros? Como fez para pagá-los? — perguntei, ciente da mensalidade altíssima que Edgar pagava, além dos médicos e psicólogos que me acompanhavam. Eu pisei na terra da depressão. Tentei suicídio duas vezes. A primeira, amarrei o lençol na grade alta da janela do banheiro e fiquei pendurada pelo pescoço. Não morri porque uma das meninas entrou e gritou. Na segunda, roubei alguns frascos de medicação da bolsa do médico. Tomei todos, sem saber para que serviam. Acordei no hospital, com Edgar ao lado do leito, segurando um crucifixo. Meu irmão orava baixinho. Passei por todas as fases do luto: negação, raiva, depressão e aceitação. Não foi nada fácil. No período da raiva, eu descontava nas meninas, zombando delas por falarem de suas mães e pais enquanto os meus estavam debaixo da terra. Por fim, veio a aceitação, quando agradeci a Deus por ter tido os dois como meus pais. Aprendi que não estava só: Edgar era minha família. Aprendi a deixar o fluxo da vida seguir. Abrandei minha alma e meu coração. No entanto, quem parecia estar com o coração inquieto era Edgar. Ele anda estranho desde o dia em que fui ao escritório. Havíamos combinado de almoçar em algum restaurante próximo. Fazia poucos meses que eu havia regressado de São Paulo, dessa vez para ficar. Eu havia terminado o ensino médio e estava procurando uma área de interesse para ingressar na faculdade. Porém, Edgar se mostrou agitado ao me ver próxima daquele homem de olhos misteriosos. E, por Deus, minha carne estremeceu ao colidir com um corpo duro e imponente. Foi tudo muito rápido: quando percebi, mãos grandes seguravam firme minha cintura. Por reflexo, temendo uma queda, agarrei o tecido grosso do sobretudo dele. A vergonha me tomou. Um pedido de desculpas escapou dos meus lábios, frágil. O momento era ridiculamente vexatório, mas meu olfato se agradou — e muito — do perfume do homem. Me senti uma completa destrambelhada. Temendo uma reprimenda, meus olhos subiram devagar: queixo bem marcado, pele alva salpicada de sardas, boca firme de lábios rosados e desenhados. A altura dele me sobrepujava. Quando enfim encontrei seus olhos, senti um choque na alma. Não era um azul comum, mas um azul raro, gelado, vazio. Um olhar sem calor humano. Fiquei presa àquele olhar misterioso. A voz de Edgar me arrancou do torpor. Suas mãos praticamente me arrastaram para longe do desconhecido. Ele o encarava como se quisesse avançar em seu pescoço. Tentei espiar por trás de meu irmão, fascinada, e percebi que o estranho também me observava fixamente. Sem dúvida, era o homem mais lindo que já vi na vida. Presença impactante, olhar predador, fios ruivos penteados em um corte europeu. Pisquei, atordoada. Edgar me puxou pelo corredor. Quando chegamos à sala dele, estava soltando fumaça pelas narinas. Sua reação era desproporcional: gritava que eu deveria ficar longe daquele homem, que deveria ter avisado antes de ir à empresa. Suas palavras se misturavam em sons inaudíveis. Não explicou nada. Saímos da empresa e fomos direto para uma casa que ele tem na Avenida Rodesindo Pavan, na Praia do Estaleirinho, em Balneário Camboriú. Perguntei o motivo. Ele apenas respondeu que íamos nos mudar de país. Pediu que eu ficasse quieta. Isso foi há cinco dias. Achei que Edgar tivesse sido transferido pela empresa, mas agora sei que há algo muito mais perturbador nisso tudo. Seu comportamento é o de um fugitivo. — Não faça perguntas, Lili. Entra no carro. Obedeço, sem questionar. Edgar liga o motor e acelera pela madrugada de Santa Catarina. Olha a todo momento pelo retrovisor. — Coloca o cinto, Lili. — pede. Procuro o cinto quando, de repente, ele me faz uma pergunta que me deixa sem reação: — Já beijou algum menino, Lili? Travei, arregalando os olhos. — Que conversa é essa agora? — Um papo entre irmãos. Anda, me fala. — Dei alguns beijinhos num menino, quando as irmãs nos levaram para a missa de domingo. — Graças a Deus... aquele verme imundo não vai ter tudo... não vai ter nada. Come terra, filho da p**a, maldito! — Fala de quem? — perguntei assustada. — Ninguém. — Edgar sorriu, olhou para mim. — Vamos recomeçar em outro lugar, Lili. De repente, duas motos fecharam nosso carro. Edgar acelerou em desespero. Eu gritei, achando que sofreríamos um assalto. O barulho dos freios ecoou. Edgar girou o volante, parando o carro atravessado na pista. Atordoada, desci do carro, com o corpo trêmulo. Edgar fez o mesmo. Faróis anunciaram a aproximação de um veículo. A luz foi diminuindo gradativamente até revelar um modelo importado, imponente. A porta se abriu. E por ela desceu o homem com quem eu havia esbarrado na saída do elevador. Olhei para Edgar. Ele estava pálido. O que, afinal, está acontecendo?
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