Gótico

2276 Words
Capítulo- XIII. Gótico " Emolduram-se os momentos em rabescos retorcidos que trazem beleza e um ar sombrio." Liliana O caminho foi silencioso. Ragnar se manteve concentrado em seu celular, enquanto eu escorava minha cabeça no vidro da janela e acompanhava as paisagens passando. Fiquei me indagando o que eu estaria fazendo nesse momento se estivesse no Brasil. Provavelmente estaria deitada na minha cama, segurando algum livro e lendo, ou então sentada à mesa da cozinha, tomando meu café sozinha e pensando no que poderia fazer para sanar o ócio da solidão. Tudo se tornou estranho depois que fui internada. Eu não tinha mais as amizades de antes. Todo mundo se afastou. Parecia que eu havia contraído algum tipo de peste do passado, algo que as pessoas do presente temem muito. Mas não era assim. Na realidade, eu era apenas uma adolescente de quinze anos sofrendo demais. Essa dor era tamanha que atingia o meu psicológico. Eu não possuía e nem possuo problemas mentais — o meu problema era da alma, do coração. Foram os meus pais que morreram de forma brutal, numa queda de avião, tendo seus corpos carbonizados. Foram eles, meus pais. Eu não tenho autorização interna para seguir em frente, e isso ninguém consegue entender. Tudo que eu escutei de muitas pessoas foi: “Vai passar.” Mas não passa. A saudade fica, permeia, ronda, e de vez em quando te dá uma alfinetada só para te fazer lembrar de que está por perto, de que é eterna, como se fosse uma sombra que vai te perseguir enquanto o coração bater. Edgar se tornou a minha única família. Embora meu irmão tenha feito muita coisa errada e me colocado no meio dessa confusão toda, eu não posso deixar de amá-lo. Seria como renegar o meu sangue. No entanto, isso não me priva de sentir raiva dele, de estar profundamente magoada. — Alguma vez ouviu falar sobre Falkland? — a voz de Ragnar me retira dos meus pensamentos. Olho em sua direção. O homem lança sobre mim o seu olhar penetrante. — Não. É para onde estamos indo? — indago, sem muita curiosidade. — Sim. As Terras Altas da Escócia abrigam diversas paisagens e, muito embora Inverness seja uma cidade, as Terras Altas são conhecidas por suas paisagens remotas e pelos vilarejos pequenos. — Ele praticamente faz um breve resumo de onde irei viver a partir de hoje. — Meu irmão comentou sobre um contrato. Quanto tempo? — sou direta. Quero saber o quanto terei de aguentar e o suportar. — Um ano. — Ragnar é seco em sua resposta. Respiro em agonia. “Um ano... Meu Deus, dai-me forças!” A conversa morre. O carro segue, e horas depois de cruzarmos a rodovia, entre casas e estabelecimentos, somos engolidos pela natureza. Não me contenho diante do cenário bonito que se descortina. Estico minha mão e aperto o braço do escocês. — Ragnar, aqui é...? — indago com os olhos espichados, querendo olhar absolutamente tudo. — As Terras Altas da Escócia. — responde, e eu abro um sorriso. Queria poder registrar, é belíssimo. Escuto a voz de Ragnar soar, mas não em meu idioma, e sim em outro. O carro diminui a velocidade, o vidro ao meu lado baixa e posso ver melhor a natureza. — Gosta do que vê, senhorita? — pergunta, sem rodeios. — Muito! É um cenário de imponência selvagem, onde a natureza se revela grandiosa e intocada. Como não gostar? Ragnar se aproxima. Só então percebo que ainda estou segurando o braço dele. Recolho rapidamente a mão, como se tivesse levado um choque. — Contemple ao longe a sombra azulada das montanhas — ele sussurra próximo ao meu ouvido. Sinto os b***s dos meus s***s ficarem rijos. — Não há a bela porcelana pura do azul do céu, mas mantos de neblina que se erguem como muralhas ancestrais, com picos irregulares que parecem guardar segredos antigos. Mais longe ainda, há os vales profundos, conhecidos como glens, que se estendem sinuosos, cortados por rios de águas geladas e cristalinas, que deslizam com força sobre pedras escuras, refletindo a luz do céu instável — ora cinzento, ora dourado. Seu hálito de menta fresca se torna uma carícia leve em minha pele. Olho em direção ao seu rosto, movendo a minha cabeça, e percebo nele uma certa palidez. Nossos lábios estão próximos, trocamos respirações. Brevemente, as narinas de Ragnar se inflam e então ele se afasta, retornando ao assento. Vejo-me tomada de súbito por um constrangimento. Viro a cabeça na direção da janela, e meus olhos dançam na paisagem. O vento sopra constante, trazendo consigo o perfume úmido da turfa e do brejo, misturado ao frescor do musgo. Num gesto brusco, Ragnar movimenta o corpo e fala algo para o motorista, que sobe o vidro da minha janela. O carro ganha velocidade. A paisagem, ora verdejante, ora árida, passa apressada como um borrão de tinta verde mesclada. O escocês modifica o rosto para um semblante impassível, austero. — Quanto tempo falta, Ragnar? — pergunto, cansada de estar sentada dentro do veículo. — Pouco. — responde com a voz grave. --- Minutos depois, estamos atravessando relevos marcados por estradas estreitas que serpenteiam entre colinas onduladas. O caminho começa por uma região onde o horizonte é bordado por campos cultivados e pequenas florestas de pinheiros e carvalhos. A cada curva, surgem vilarejos de casinhas de pedra e telhados íngremes, como se o tempo tivesse parado. É lindo! Solto um suspiro audível. À medida que nos aproximamos de Falkland, a estrada se torna mais pitoresca, margeada por muros de pedra cobertos de hera e pequenos riachos que cruzam pontes antigas. O vilarejo desponta então como uma joia escondida, com sua praça central dominada pelo Palácio de Falkland, cercado por jardins bem cuidados e ruas de paralelepípedo. O contraste entre a vastidão selvagem das Terras Altas e a delicadeza do vilarejo cria a sensação de ter atravessado um portal, onde o passado medieval da Escócia ainda respira em cada detalhe. O olhar de Ragnar sobre mim é intenso. Engulo em seco diante de tamanho magnetismo. — O que sabe sobre a Era Medieval, senhorita? — pergunta, após. minutos que se passaram, ter falado com propriedade sobre a terra onde vive. A questão me parece fora de contexto para o momento. — Creio que apenas o que todos sabem: Queda do Império Romano (476 d.C.), Feudalismo, Cristianização da Europa, a propagação do cristianismo, Cavaleiros Templários (1119-1312), Guerras e Cruzadas (1095-1291), Peste n***a (1347-1351) e Renascimento Cultural. Esses eventos moldaram não apenas a sociedade da época, mas também influenciaram o desenvolvimento futuro da Europa. Ele sorri, um sorriso cheio de deboche. Meu corpo arrepia, mesmo que preso no magnetismo de sua arcada dentária. Seus dentes são alvos como a neve, alinhados com extrema perfeição. Belíssimos. — Sua carência de conhecimento é absurda. Livros contam apenas o que desejam que outros saibam. Muito é escondido, para que caia no esquecimento, e assim moldam o povo de uma era, para que tudo se mantenha sob controle. Inocentes ou leigos? Não sei em qual conjunto melhor vocês se enquadram. Fecho o rosto para o arrogante. Antes não tivesse respondido; minha raiva por ele continuaria no mesmo patamar. Às vezes tenho a impressão de que Ragnar cheira a velhice. Depois de desviar a cabeça da minha direção e mirar para frente, se mantém imóvel como uma estátua. Sua voz cortante e desagradável não se faz mais presente, enquanto tento contemplar a paisagem pelo vidro. O que me vem em pensamento é que o escocês usa da sua aproximação para negociar comigo de uma maneira silenciosa. Passo a mão pelo meu rosto, retirando um fio de cabelo solto que me incomoda. Difícil é ignora-lo quando parece existir uma força invisível que puxa meus olhares em sua direção. Quando os olhos de Ragnar estão sobre mim, me examinando de cima a baixo, tenho uma sensação esquisita — nem agradável, nem desagradável, apenas estranha, uma mistura de frio e calor ao mesmo tempo, de vergonha e contentamento. Muitas vezes fico desajeitada; em outras, abaixo os olhos, fingindo que não o vejo, que não percebo seu olhar. As sensações que o olhar do escoces desperta em mim são muito parecidas com as que senti uma vez, aos treze anos, quando minha mãe me concedeu a licença de usar sapatos de salto pela primeira vez. Não eram saltos altos, coisa pouca. Ela sempre foi muito rígida acerca dessas questões. Fomos à igreja. Ao passar por um grupo de meninos, percebi o modo como era observada. Senti o rosto quente e as mãos frias, sem saber o motivo. Achei que estava passando vergonha. Segurei a mão da minha mãe e apertei, buscando sua atenção. Seus olhos pararam sobre mim e perguntei, passando a mão pelo vestido lilás que usava naquele dia, com bordados de florzinhas que combinavam perfeitamente com as sandálias de tiras e salto baixo: — Mamãe, como estou? Eu já havia feito essa pergunta incontáveis vezes antes de pisarmos na igreja. — Você está belíssima, minha filha. Meu sorriso ficou enorme, dominando completamente o rosto. — Você já é uma mocinha. Ouvir aquilo me causou uma dor enorme no peito. Eu não queria largar minhas bonecas. Amava todas, inclusive cada uma tinha um nome. Mas, no fundo, sabia que, mais dia, menos dia, isso iria acontecer. Recordo desses doces momentos de anos atrás, quando eu era apenas uma pirralha e gostava muito de brincar de casinha, de fazer o “chazinho da tarde”. Picava folhas de caderno, fazia pequenas bolinhas — eram as ervilhas. Toda vez que chamava minha mãe para tomar chá comigo e minhas bonecas, ela dizia que ervilha não combinava com chá. Eu não me importava. Para mim, naquela época, o diferente era incrível. Agora, já quase adulta, penso: o diferente não é mais tão incrível assim. Foi assim, perdida em meus pensamentos, que começamos a cruzar o vilarejo, que apresentava uma arquitetura pitoresca. As edificações eram predominantemente de pedra, pelo que pude observar. Muitas casas tinham telhados de ardósia e fachadas coloridas, criando uma atmosfera acolhedora e charmosa. Meus olhos se desviaram para as ruas estreitas, muitas delas pavimentadas com paralelepípedos, o que contribuía para a atmosfera histórica. Parecia que havíamos atravessado um portal. Era como viajar no tempo, com vistas de construções antigas e o cenário rural ao redor. Avisto uma igreja de aparência histórica que acrescenta ainda mais caráter ao vilarejo, com vitrais e detalhes arquitetônicos que refletem a herança religiosa da região. No caminho, vi um cemitério às margens da estrada, com lápides antigas, muitas cobertas de musgo, cercadas por um muro baixo de pedras. Mórbido e bonito. — Sua casa é por aqui? — indago, nervosa. Saber que dividirei dias e noites com um completo desconhecido me atormenta. — Não, gosto de privacidade. Me calo, apenas espero. Passamos por Falkland e seguimos por um caminho deserto, sem casas, muito parecido com o trecho antes do vilarejo. Cerca de trinta minutos depois, descemos por um declive ladeado de árvores. O céu hoje não é azul, mas cinza. De repente, surge uma mansão à beira de um rio. Meu coração salta no peito. — Bem-vinda ao seu novo lar, senhorita. Detesto ouvir a voz de Ragnar. Detesto o modo como me puxa de volta à realidade. Meus olhos estão cravados na mansão que se ergue: um monumento à imponência e ao mistério, uma fusão entre a opulência aristocrática e o peso da arquitetura gótica. Vista de longe, sua silhueta recortada pelo céu enevoado lhe confere o ar de um castelo petrificado no tempo, como se tivesse sido arrancado de uma lenda sombria. As paredes externas são erguidas em pedra basáltica escurecida, com tons que variam entre o n***o profundo e o cinza úmido, cobertas em partes por heras que se agarram como veias vivas à estrutura. Da base brotam torres cilíndricas que se afunilam em agulhas pontiagudas, cada uma delas coroada por gárgulas de aspecto animalesco, eternamente vigilantes. As janelas são longas e estreitas, em formato ogival, adornadas por vitrais em tons de âmbar, púrpura e esmeralda. Imagino que, durante o dia, esses vitrais filtrem a luz fria em feixes quase espectrais, e à noite projetem reflexos fantasmagóricos quando iluminados por dentro. Meu corpo arrepia. Nas sacadas, varandas de ferro batido, com arabescos retorcidos, evocam tanto a delicadeza da arte quanto a brutalidade do metal que se dobra à força. O telhado, de ardósia escura, sustenta chaminés altas que deduzo expelem fumaça espessa nos dias de inverno, fazendo a casa parecer viva, como um organismo que respira. O frontão principal exibe uma rosácea em pedra entalhada, símbolo do poder e da tradição que sustentam a família dona da propriedade. A entrada, marcada por um portão duplo de carvalho n***o reforçado com ferro, abre-se para uma escadaria em semicírculo que conduz à porta principal: um arco gótico imenso, cravejado de símbolos em relevo, rodeado por colunas esculpidas em formato de espinhos e rosas murchas. O caminho que leva até ela é ladeado por estátuas de anjos sem rosto, corroídos pelo tempo e pela umidade, dando ao visitante a sensação de atravessar um limiar entre o mundo dos vivos e um domínio obscuro. Ao redor da mansão, um jardim selvagem, cercado por muros de pedra cobertos de musgo, assemelha-se mais a um cemitério em ruínas do que a um espaço de lazer. Árvores antigas, de galhos retorcidos, inclinam-se sobre a construção como se a protegessem — ou aprisionassem. Uma fortaleza gótica e majestosa, destinada a impor reverência e temor em todos que ousam contemplá-la. É assim que vejo o meu novo lar. Se lar é para ser doce, esse parece ser amargo.
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