Capítulo- XII. Desjejum
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem — uma corda sobre um abismo.”( Nietzsche)
Liliana
Foi estranho dormir no mesmo quarto que um homem, quando antes eu sempre chegava ao descanso merecido ao lado de meninas. No internato, os quartos eram enormes, dormíamos todas juntas, não existia quarto individual. E, bem, havia noites em que, depois que as irmãs saíam, ficávamos conversando. Falávamos de meninos e de como eles poderiam ser perigosos para a virtude de uma moça.
Eu estremecia com os relatos de algumas, um pouco mais velhas. Eram relatos picantes: como deixar o menino colocar a mão boba por baixo da saia ou por cima da blusa. Na minha defesa, nunca deixei.
Agora, saber que, do lado da minha cama, está um homem de carne e osso, mais velho, me deixa apavorada.
Fico quieta, de costas para Ragnar, e com as pálpebras espremidas.
Escuto o som da respiração do escocês, e minha pele arrepia.
Penso em Edgar, nas coisas feias que fez. Sinto vergonha. Nossos pais sempre nos educaram corretamente. Não acho certo se apropriar de bens alheios, e menos ainda envolver terceiros. No caso, eu.
— Você não dorme? — a voz de trovão ecoa pelo quarto, fazendo com que minhas mãos apertem ainda mais o cobertor.
Não respondo. Como ele sabe que não estou dormindo? É algum tipo de vidente? Só me faltava essa!
— Sei que está acordada. Sinto o cheiro do seu medo de onde estou.
Engulo em seco. Como assim sente o cheiro do meu medo? Medo tem cheiro? Cheiro de quê? Meu Deus, estou ficando louca. Ele está aplicando pressão psicológica em mim.
— Estou insone, nunca passou por isso? — sou grossa.
Na realidade, estou apavorada.
— Muitas luas vi nascer e perder-se com a claridade da estrela viva.
Que raios ele quer dizer com isso?!
Sentei na cama. Não adianta fingir, ele parece ter um sentido aguçado.
— Por que não tomou outra atitude em relação ao meu irmão? — está aqui a pergunta que me perturba.
Ragnar não se movimenta, continua deitado de costas para mim.
Ele é estranho, bem estranho.
— Alguns seres aprendem melhor quando sentem dor, mas uma dor invisível, sem cortes, que a olho nu não pode ser revelada.
— O que está fazendo é c***l e desumano.
— Defina melhor o que falas.
— Me submeter a... a... não consigo sequer dizer.
— A gerar uma criança? Isso é o mínimo, depois de anos de vosso irmão lesionar a minha empresa.
— Eu estou ciente do que Edgar fez, não precisa ficar repetindo.
— Seja sensata. Se te inflinge agonias não mencione sobre. A verdade lhe incomoda.
— Está ouvindo o que diz? Não tem noção e...
— Repouse. — ele diz com a voz baixa, o que me deixa com os nervos à flor da pele. Parece querer exercer domínio sobre o que devo ou não fazer.
— Você não manda em mim e...
— AGORA!!!
O grito ecoa. Estremeço, deito rápido, mais rápido que a velocidade da luz.
“Odeio esse homem, odeio!”
Não sei se por medo ou por sono, fecho meus olhos e me perco na terra dos sonhos.
Desperto com a sensação de estar sendo observada.
Abro os olhos e o escocês está próximo à janela, olhando na direção da minha cama. Não pisca, parece uma estátua .
Pisco algumas vezes, sento-me olhando para os lados, me situando de onde estou.
— Coloque vestes quentes, hoje o tempo está frio.
Ragnar finalmente se movimenta, sem fazer barulho. Ele possui passos leves, mesmo com a estrutura corporal pesada.
Não digo absolutamente nada. Ergo-me contra a minha vontade, pego na mala roupas quentes, moletom, sigo para o banheiro levando as peças e a minha necessaire.
São longos vinte minutos que passo para fazer a higiene pessoal. Na realidade, estou apenas atrasando o momento de ficar sozinha com o homem. Ele me dá calafrios.
Antes de sair, tomo uma lufada de ar e de coragem, deixo o banheiro, passo por Ragnar, vou em direção à minha mala, guardo as peças usadas e a necessaire, sento-me na poltrona próxima e calço os meus sapatos brancos.
— Despeja teu matutino café, que cumpre-nos de partir.
Fala manso, muito diferente do grito absurdo com o qual me fez estremecer.
Olho para a bandeja em cima da mesa.
Me aproximo com o estômago doendo.
Reconheço ovos mexidos, bacon, pão, tomate grelhado e uma carne estranha, preta, com a aparência de uma bexiga de mortadela.
Olho estranhando o prato.
— Mocela. — o homem diz ao se aproximar por trás das minhas costas. Arrepio inteira, meu coração dispara, indo parar na guela.
— O-o que é? — mais uma vez estou gaguejando feito uma i****a.
Sinto que ele se movimenta vagarosamente e, de repente, sua voz soa em meu ouvido.
— Sangue...
Meus olhos ficam enormes.
— S-sangue? — mais uma vez minha língua pesa e meu corpo treme, sendo percorrido por uma onda de eletricidade tamanha.
— Sim.
Ragnar se afasta, enquanto seguro firme no espaldar da cadeira, com medo de ser traída por minhas pernas.
Ele anda com desenvoltura para perto da janela, suas mãos abrem uma leve fresta da cortina.
— Os escoceses têm um café da manhã tradicional bastante robusto. Entre os itens mais comuns estão: Haggis, um prato feito de carne de carneiro, aveia e especiarias, cozido dentro do estômago do animal. Bacon, geralmente frito ou grelhado. Salsichas escocesas, mais grossas e temperadas. Ovos, frequentemente servidos fritos ou mexidos. Tomate grelhado, um acompanhamento popular. Pão, como o tattie scone (um tipo de panqueca de batata) ou toast. E o Black pudding (pudim preto), um tipo de morcela feita com sangue de porco, aveia e especiarias.
O homem olha por cima do ombro em minha direção.
— Sangue é energia, senhorita, não importa de onde venha.
Não segurei o embrulho no estômago. Corri para o banheiro, vomitando líquido biliar no tempo perfeito. Me foi ensinado, no internato, que se alimentar de sangue de qualquer animal é pecado. Além de nojento!
Quando termino de colocar o que não tenho para fora, ergo-me mais verde do que as folhas bordadas nas toalhas desse hotel.
— O que há, senhorita?
— Meu estômago embrulhou. Aquele pudim preto, por favor... eu não irei comer. Tem mais alguma coisa naquela mesa que leva sangue?
Pergunto lavando a boca. O gosto amargo em minha língua é fortíssimo.
Ragnar esboça um leve esgar de sorriso.
— As raízes religiosas que vos cegam certamente vos fizeram crer que o consumo de sangue é impuro e explicitamente proibido, pois assim dizeis em sagradas escrituras. Patético!
— Fui criada assim. Não tente mudar o que não pode. Não me alimento de nada à base de sangue. É nojento!
— Homessa! Guarde vossa língua e faça o desjejum.
— E você não vai comer? — perguntei por pura educação.
— Me alimentei há pouco. Sirva-se.
Sento-me à mesa e escolho o que comer. Isso inclui ficar longe da morcela. Nunca gostei de sangue. Uma vez, papai comprou chouriço. Comi uns pedacinhos e, quando soube do que era feito, sofri um m*l-estar absurdo. Tinha dez anos na época. Comer sangue ou algo que leva sangue não é para mim.
Me alimento aos poucos, meus olhos clínicos analisando as refeições.
Assim que finalizo o café, retorno ao banheiro para escovar os dentes, levo comigo meu kit de higiene pessoal.
Ao terminar e guardar meu kit, saímos pela porta rumo a algum lugar.
Ragnar vai à frente, seu perfume deixando um rastro no ar.
Anda com a postura de um aristocrata.
Enquanto isso, eu me sinto indo de encontro à minha condenação.
Entramos no elevador mudos. No entanto, estou aflita demais para ficar quieta.
— Onde vamos?
— Terras Altas, minha casa.
— É longe?
— Três horas de percurso.
— Ah...
O assunto morre. Ragnar pega o celular, visualiza algo.
Me vejo implorando a Deus que me envie algum socorro, que me tire para um lugar largo, onde esse escocês não consiga me alcançar.