Capítulo-XVI. Enlace (P1)
" O casamento é uma longa tortura"
( Nietzsche)
Estou uma pilha de nervos. Não consegui dormir: a sensação de estar deslocada e tão distante da minha verdadeira casa me trouxe choro e desespero. Pior foi conviver com o medo de ter este espaço invadido e meu corpo violado com brutalidade. Estremeci a cada pensamento mais breve sobre isso. Fora o frio — por Deus, achei que ia congelar. Meus dentes bateram tanto que acreditei que fossem quebrar. Levantei-me e por pouco não sofri um acidente: o tapete deslizou sob meus pés.
Recobrei-me do susto, tentando situar-me naquele infortúnio. Olhei de um lado para o outro, perdida; corri até a janela. Fiz força para abri-la, mas ao olhar para baixo desisti da ideia de fugir usando a tal “Tereza”. Um golpe de vento frio atingiu meu rosto e me fez recuar; minhas costas bateram em algo duro e, pelo cheiro, eu soube quem era: Ragnar.
— Achei que o noivo não visse a noiva antes do casamento — quase fiz xixi de tanto nervoso. — Dizem que dá azar.
— Não creio nisso. São crendices forjadas para iludir os incautos — a voz dele soou baixa, perigosa, sombria.
Estremeci quando suas mãos deslizaram pelos meus braços até tocar as minhas. O gesto, apesar de delicado, trouxe-me uma sensação estranha.
De repente senti um aro deslizar pelo meu anelar esquerdo. Meus olhos voaram para a joia.
— Teu anel de compromisso — sussurrou.
Engoli em seco e olhei para cima, encontrando os olhos azuis do escocês.
— Precisa disso? — perguntei, observando a peça antiga, parecendo um bem de família que vai sendo passado de geração em geração.
— Sim. O anel de noivado do século XII, usado pelas condessas, era peça de grande elegância e simbolismo. Geralmente confeccionado em ouro ou prata, apresentava desenho intricado, com delicados gravados que refletiam a habilidade dos ourives da época. No centro costumava haver uma pedra preciosa, como rubi ou esmeralda, cercada por pequenas pérolas que simbolizavam pureza e riqueza. O formato frequentemente ovalado, com o aro mais largo na parte superior, conferia-lhe aspecto majestoso.
— O anel encerra em si significações de alta monta e gravidade; o portar de tão nobre joia não se limita a mero sinal de compromisso — que lhe tomei como minha — senão também manifesta demonstração de preeminência social, espelhando a dignidade e o lugar que ocupa no ordenamento e hierarquia da sociedade.”
Sorri, não resisti. Afastei-me de Ragnar. Parecia que estávamos em cena de teatro.
— Por favor, pare de falar assim — pedi, e olhei na direção da minha mala. Meu pensamento era só pegar um casaco quentinho.
O olhar que me destinou, apesar de severo, tinha uma certa incompreensão quanto ao meu pedido.
— Ragnar, você fala como se estivéssemos em séculos que já se foram. Parece um homem de mais de cem anos. Não precisa disso — disse. — Percebi, nesse curto intervalo, o quanto é culto e refinado.
Quase morri quando senti uma mão rápida puxar-me pela cintura de encontro ao corpo enorme de músculos rígidos. Olhei assustada para o homem.
— O que significa isso? — arfei com o contato íntimo. Entre nós não passava uma agulha. Minha respiração travou.
Olhando dentro dos meus olhos, os lábios dele moveram-se com suavidade:
"O, a mhaighdean bhinn, solas a bheathaich mo dhòchas gus an àm seo. Do shùilean, reultan a stiùir mi bho linn gu linn. Anns na gàirdeanan agad, an tìm a tha air a thiodhlacadh, dhìochuimhnich mi an saoghal. An-diugh, le sealladh uamhasach d’aghaidh, tha am fonn a chaidh a thosdachadh nam bhith a’ fuaimeachadh mar an abhainn a’ sruthadh anns a’ bheinn. Is e bàrdachd shìorraidh do bhith. Tha mi an-còmhnaidh ag iarraidh do thilleadh."
(Ó doce donzela, luz que alimentou minha esperança até este tempo. Teus olhos, estrelas que me guiaram de século em século. Em teus braços, em outros tempos que jaz em sepultura, esqueci o mundo. Hoje, com a avassaladora visão do teu rosto, a melodia que fora calada em meu ser ressoa como o rio que flui na montanha. Teu ser é a eterna poesia. Eternamente anseio por teu regresso.)
Não entendi absolutamente nada do que ele dissera, mas o meu coração acelerou de maneira inesperada. Talvez pela forma como sua voz saiu baixa e a intensidade com a qual me olhava. Alguma coisa me perturbou, senti uma energia percorrer meu corpo.
Empurrei Ragnar; ele soltou-me, girou nos calcanhares e, antes de sair, olhou por cima do ombro.
— Teu desjejum será neste aposento. Em seguida, seguirá a preparação para o enlace.
Estremeci, tomada por calafrios incontroláveis. Não queria tremer, contudo não tinha controle do meu corpo.
Fiquei minutos com os olhos presos na folha de madeira que o escocês tinha acabado de fechar. Meu olhar desviou-se para o anel no meu dedo: o metal pesando, a sensação de que usava uma anilha. Reparei melhor na peça: confeccionada em ouro, com desenho intricado, delicadas gravações que denunciavam a habilidade do ourives. No centro, um rubi se destacava; ao redor, pequenas pérolas o abraçavam. Ovalado, com aro mais largo na parte superior, conferia-lhe aspecto majestoso porém arcaico — não comum nos dias de hoje.
— Marcada, Liliana. Você está marcada por um sujeito que te vê como posse — falei para mim, num misto de revolta e despero — Ai. Que raiva! Que raiva!
Pensei no que poderia fazer; nada me ocorreu. De repente a porta abriu e duas funcionárias entraram. Não disseram uma só palavra: a primeira foi até a janela e a fechou, a segunda deixou uma bandeja sobre a cama. Entraram mudas e saíram do mesmo modo. Parecia que eu era um fantasma.
Custei a acreditar que fui ignorada com veemência.
Onde eu tinha ido parar? Onde?
Inconformada com toda a situação, porém sem saída para me safar de todo esse embaraço, peguei minha nécessaire na mala e fui ao banheiro. Tomei um banho quente, tentando aliviar a tensão. Acreditei que o colapso estava prestes a ocorrer. Com muito esforço, saí da banheira, vesti um roupão e voltei ao quarto. Ao abrir a porta deparei-me com uma mulher ruiva, de costas; ela observava algo que estava em cima da cama. Paralisei. Quem era e o que queria? Antes que minha boca desse sinal de palavra, a mulher virou-se em minha direção: olhos profundos, argutos, sombrios demais.
Engoli em seco.
— Realmente você é bem jovem — falou com sotaque carregado; aproximou-se, os olhos em evidente escrutínio.
— Perdão, a senhora é...? — perguntei, surpreendida pela i********e da confiança absurda que a ruiva demonstrava.
— Irmã de Ragnar, Lorys. Meu irmão pediu que eu viesse saber da senhorita. Não alimentou-se ; a bandeja está intocada — disse, olhando brevemente para o móvel onde a bandeja permanecia — possivelmente foi ela quem a moveu.
— Estava no banho e...
A mão pálida, com unhas vermelhas, ergueu-se no ar. Um gesto silêncio pedindo para que eu me cala-se.
— Cuide-se. Regressarei para ajudá-la com a vestimenta do enlace.
Senti-me uma peça sendo movida por mãos invisíveis.
A mulher saiu a passos delicados. Aproximei-me da cama e encarei a peça esticada sobre o lençol: minha veste de prisioneira. Tive vontade de rasgá-la em pedaços, mas tremia tanto que não havia forças em mim.
Apenas me deixei perder no desespero; sentei ao lado da roupa e chorei em soluços, perguntando em que momento Deus deixara de olhar por mim. Em que momento Seus ouvidos se fecharam para não escutar meus pedidos e súplicas por ajuda, para não sondar meu coração e sentir o quão pesado ele se encontrava — e ainda se encontra.
A raiva em mim não cabia, limpei meu rosto, mirando o metal brilhante posto em cima de uma espécie de aparador de madeira.
Caminhei até a bandeja e o que vi me trouxe alívio. Tinha frutas, leite um tipo de torrada e uma pequena xícara de café. Nada de alimento feito com sangue. Dei um grande gole no copo com leite, o líquido morno desceu aquecendo por onde passava.
Me perdi em pensamentos:" como seria a minha vida se eu não fosse o preço cobrado de uma dívida? "
Tive a sensação que jamais iria saber.
Agora estou aqui, olhando para o líquido branco como se ele fosse mostrar para mim o meu futuro. Minhas mãos m*l conseguem segurar o copo, ergo o meu olhar para uma parede que honesta um relógio antigo. Os ponteiros avançam incansável, enquanto agonizo por dentro.
Continua...