Capítulo- IV. Recordação
“O deserto cresce: ai de quem abriga desertos dentro de si.”( Nietzsche)
Ragnar
Dentro do carro, visualizo o rosto pequeno, as íris verdes expressivas. Mesmo sob o desconforto da temperatura que incomoda o meu corpo.
O ar-condicionado está no máximo e, mesmo assim, sinto-me desconfortável; a sede aumenta.
— Fome? — indaga Hunter.
— Sede — corrijo-o.
Meu irmão faz um leve menear de cabeça.
— O vidente disse que você a encontraria. Parece que enfim ocorreu. Vai mesmo ter um filho com a menina?
Olho para Hunter.
— Sim, nosso tempo foi interrompido.
— E se aquilo que viu for apenas uma casca, e não a essência? Faz séculos, Ragnar, e em todos eles sua busca foi infrutífera. Não estranha que, logo nessa situação delicada, surja alguém parecida fisicamente com Elisabeth?
— Não. Ela será minha. Iremos continuar de onde fomos separados.
— Como pode ter tanta certeza? Se se ela o rechaçar? Vimos que é uma menina, Ragnar . Sua idade é incompatível com a dela.
Olho para Hunter, sem muita vontade de adentrar nesse assunto.
— Não foi um problema antes não será agora.
— Seus pensamentos também congelaram nas eras passadas? Tudo mudou o mundo deu suas inúmeras voltas, caro irmão.
Lhe destino um olhar frio que o faz calar-se. Muito embora sua menção surta um efeito em mim. Sou carregado pelas lembranças, retirando ao ponto onde tudo teve início.
Lembro como tudo aconteceu:
Eu tinha chegado à idade madura para o casamento, tinha meus trinta anos. Em nossa casa, os Campbell buscavam aliança com outro clã. Recordo-me de ser chamado por meu pai em seu chamber, o que nos dias de hoje seria um escritório, mas sem a aparência dos contemporâneos.
Abri a porta, sendo recebido pelo odor agradável da vela de cera de abelha, cuja chama amarelada, fraca e oscilante, projetava sombras na parede. A iluminação precária vinha das arandelas fixas nas paredes e do castiçal presente sob o tampo da mesa do meu pai. O olhar dele ergueu-se para mim, cansado; um cálice jazia próximo de sua mão.
— Solicitou ao serf que eu me fizesse presente?
— Sim, entre. Temos que tratar de um assunto importante.
Eu sabia qual era o assunto: iriam me casar com alguma jovem de família influente. Entrei, encostei a porta e sentei-me em uma cadeira.
— Sua idade está avançada. É o primogênito, carrega o meu sobrenome. Portanto, está decidido. Nossa família unirá forças com os Lennox, e Isobel será nossa noiva. Alguns podem questionar: “por que desposar uma moça tão jovem, filha de outro clã poderoso?” Mas escute com atenção: tudo aqui se trata de poder, prestígio e sobrevivência.
Tinha ouvido falar dos Lennox e de seus prestígios. No entanto, não queria desposar ninguém. Eu via o casamento dos meus pais: ele sempre sentado atrás de uma mesa, com os olhos vazios e a mesma expressão cansada, e minha mãe sempre às voltas com os servos.
Meu pai percebeu meu silêncio.
— Primeiro, considere as terras. Os Lennox possuem vastas propriedades que se estendem por pontos estratégicos da Escócia Central. Aliar-nos a eles significa consolidar nossas fronteiras e garantir que nenhum inimigo se erguerá em nosso caminho sem enfrentar um muro unido. Cada colina, cada rio, cada vila que a família Lennox controla será, de certo modo, também nossa.
— Segundo, a linhagem. Isobel não é apenas filha de um conde, mas herdeira de sangue Stewart, ligada por gerações à própria realeza escocesa. Ao casar-se com ela, não apenas firmamos uma aliança com outro clã, mas aproximamo-nos da corte, do favor do rei, e da honra que nosso nome merece.
— Os Lennox possuem quantas fichas?
— Duas, mas Isobel é a que nos foi concedida.
— E não nos enganemos quanto à idade dela — jovem, sim, mas pura e moldável às tradições que definem um verdadeiro Campbell. Aprenderá nossos costumes, nossas responsabilidades, e dará à nossa casa filhos que levarão adiante esta união de sangue e poder.
— Por fim, lembrem-se: a Escócia é um país de alianças, intrigas e guerras silenciosas. O casamento não é apenas afeição; é estratégia. É a garantia de que nossos inimigos não nos subjulguem, que nossos aliados nos respeitem e que, no futuro, ninguém questione a força e o prestígio da Casa Campbell. Isobel será nossa noiva porque, em sua juventude e beleza, carrega não apenas a promessa de herdeiros, mas a promessa de supremacia. Que este casamento seja celebrado não por capricho, mas por dever, por honra e pelo futuro de nossa família.
Aceitei. Nenhum filho vai contra os desejos de um pai, não naquela época.
Em sete luas, partimos em viagem para a casa dos Lennox, levando presentes e para que eu finalmente conhecesse minha noiva.
Ao chegarmos, fomos recebidos pelo pai, Malcolm Stewart, conde de Lennox. Enquanto os servos traziam bebidas para nos refrescar, aproximei-me da janela. Foi quando a vi, perdida no meio das cores do jardim. Meu coração saltou em meu peito. Ela parecia ter sentido que alguém a espiava, pois virou-se. Travei, olhando o rosto angelical. “Será ela?”, perguntei-me. Mas não estava enganado.
Barulhos de passos vindo do interior da casa me fizeram desviar o olhar. Vi surgir duas pessoas: uma senhora bem vestida e distinta, e uma jovem de cabelos dourados e olhos azuis. Ela não me olhou diretamente. O cabelo preso em um penteado e o vestido leve cobriam seu corpo.
— Conde de Argyll, estas são minha senhora, condessa de Lennox, e minha primogênita Isobel.
Senti um baque dentro de mim: aquela era Isobel. Então, quem era a menina no jardim? Perguntei-me, atordoado, sem perceber que a procurava pela janela, prestando pouca atenção à minha futura noiva.
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— Pensativo, Ragnar? — Hunter me retirou do passado.
— Sempre.
— A noite chegará em breve. Vamos à caça?
— Temos o que necessitamos. Pagamos bem ao mercado n***o. Não há mais necessidade de sair por aí arriscando nossas vidas.
— Não me refiro a isso. E sim a outro tipo de caçada: mulher de sangue quente, corpo macio.
Mantenho minha postura fria.
— Onde?
— Fiz uma pesquisa rápida. Há uma casa noturna em Balneário Camboriú, local discreto para quem busca privacidade.
Penso que será um divertimento.
— Sim. Aceito o convite.
Em poucos minutos, entramos no hotel e seguimos cada um para a suíte que nos correspondia.
— Às onze, Ragnar — diz Hunter antes de abrir a porta da suíte.
Entro, retiro as luvas e o casaco pesado. Fecho as grossas cortinas que pedi para instalarem nas janelas. Faz tempo que a escuridão tornou-se minha essência, entranhada em minha carne. Acendo apenas a luz do abajur.
Sigo até o brigobar, pego a embalagem onde está escrito “suco de uva”, embora o teor seja outro, bem diferente. Retiro a tampa e esvazio a embalagem em segundos.
Vou até o banheiro, olho meu reflexo no espelho e sorrio para o monstro que me tornei. Até o azul dos meus olhos diverge das cores existentes naquela mesma tonalidade.
Abro a torneira, observo a água escorrendo para o ralo. Pego um pouco com as mãos e molho o rosto.
"Tanto mudou. Por quê? Por quê?"
Sigo até a cama, sento e puxo o notebook. Abro, digito a senha para desbloquear a tela e navego pelas contas da sucursal, sabendo dos cortes que farei. Entre as planilhas, lembro dela, dos olhos nos meus, da forma como pareceu afetada e não soube esconder. O perfume dela ainda está em mim, o som do suave arquejo ecoando em meu ouvido.
"Minha Elizabeth..."
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A noite finalmente chega, e com ela os seres noturnos despem-se das suas fantasias, saem para contemplá-la.
Hunter e eu seguimos para a casa noturna, eu preso com os meus pensamentos e Hunter observando as pessoas transitando como se fossem presas entre as patas de um felino.
Não é totalmente uma inverdade se formos levar ao pé da letra.