Recordações

1332 Words
Capítulo- IV. Recordação “O deserto cresce: ai de quem abriga desertos dentro de si.”( Nietzsche) Ragnar Dentro do carro, visualizo o rosto pequeno, as íris verdes expressivas. Mesmo sob o desconforto da temperatura que incomoda o meu corpo. O ar-condicionado está no máximo e, mesmo assim, sinto-me desconfortável; a sede aumenta. — Fome? — indaga Hunter. — Sede — corrijo-o. Meu irmão faz um leve menear de cabeça. — O vidente disse que você a encontraria. Parece que enfim ocorreu. Vai mesmo ter um filho com a menina? Olho para Hunter. — Sim, nosso tempo foi interrompido. — E se aquilo que viu for apenas uma casca, e não a essência? Faz séculos, Ragnar, e em todos eles sua busca foi infrutífera. Não estranha que, logo nessa situação delicada, surja alguém parecida fisicamente com Elisabeth? — Não. Ela será minha. Iremos continuar de onde fomos separados. — Como pode ter tanta certeza? Se se ela o rechaçar? Vimos que é uma menina, Ragnar . Sua idade é incompatível com a dela. Olho para Hunter, sem muita vontade de adentrar nesse assunto. — Não foi um problema antes não será agora. — Seus pensamentos também congelaram nas eras passadas? Tudo mudou o mundo deu suas inúmeras voltas, caro irmão. Lhe destino um olhar frio que o faz calar-se. Muito embora sua menção surta um efeito em mim. Sou carregado pelas lembranças, retirando ao ponto onde tudo teve início. Lembro como tudo aconteceu: Eu tinha chegado à idade madura para o casamento, tinha meus trinta anos. Em nossa casa, os Campbell buscavam aliança com outro clã. Recordo-me de ser chamado por meu pai em seu chamber, o que nos dias de hoje seria um escritório, mas sem a aparência dos contemporâneos. Abri a porta, sendo recebido pelo odor agradável da vela de cera de abelha, cuja chama amarelada, fraca e oscilante, projetava sombras na parede. A iluminação precária vinha das arandelas fixas nas paredes e do castiçal presente sob o tampo da mesa do meu pai. O olhar dele ergueu-se para mim, cansado; um cálice jazia próximo de sua mão. — Solicitou ao serf que eu me fizesse presente? — Sim, entre. Temos que tratar de um assunto importante. Eu sabia qual era o assunto: iriam me casar com alguma jovem de família influente. Entrei, encostei a porta e sentei-me em uma cadeira. — Sua idade está avançada. É o primogênito, carrega o meu sobrenome. Portanto, está decidido. Nossa família unirá forças com os Lennox, e Isobel será nossa noiva. Alguns podem questionar: “por que desposar uma moça tão jovem, filha de outro clã poderoso?” Mas escute com atenção: tudo aqui se trata de poder, prestígio e sobrevivência. Tinha ouvido falar dos Lennox e de seus prestígios. No entanto, não queria desposar ninguém. Eu via o casamento dos meus pais: ele sempre sentado atrás de uma mesa, com os olhos vazios e a mesma expressão cansada, e minha mãe sempre às voltas com os servos. Meu pai percebeu meu silêncio. — Primeiro, considere as terras. Os Lennox possuem vastas propriedades que se estendem por pontos estratégicos da Escócia Central. Aliar-nos a eles significa consolidar nossas fronteiras e garantir que nenhum inimigo se erguerá em nosso caminho sem enfrentar um muro unido. Cada colina, cada rio, cada vila que a família Lennox controla será, de certo modo, também nossa. — Segundo, a linhagem. Isobel não é apenas filha de um conde, mas herdeira de sangue Stewart, ligada por gerações à própria realeza escocesa. Ao casar-se com ela, não apenas firmamos uma aliança com outro clã, mas aproximamo-nos da corte, do favor do rei, e da honra que nosso nome merece. — Os Lennox possuem quantas fichas? — Duas, mas Isobel é a que nos foi concedida. — E não nos enganemos quanto à idade dela — jovem, sim, mas pura e moldável às tradições que definem um verdadeiro Campbell. Aprenderá nossos costumes, nossas responsabilidades, e dará à nossa casa filhos que levarão adiante esta união de sangue e poder. — Por fim, lembrem-se: a Escócia é um país de alianças, intrigas e guerras silenciosas. O casamento não é apenas afeição; é estratégia. É a garantia de que nossos inimigos não nos subjulguem, que nossos aliados nos respeitem e que, no futuro, ninguém questione a força e o prestígio da Casa Campbell. Isobel será nossa noiva porque, em sua juventude e beleza, carrega não apenas a promessa de herdeiros, mas a promessa de supremacia. Que este casamento seja celebrado não por capricho, mas por dever, por honra e pelo futuro de nossa família. Aceitei. Nenhum filho vai contra os desejos de um pai, não naquela época. Em sete luas, partimos em viagem para a casa dos Lennox, levando presentes e para que eu finalmente conhecesse minha noiva. Ao chegarmos, fomos recebidos pelo pai, Malcolm Stewart, conde de Lennox. Enquanto os servos traziam bebidas para nos refrescar, aproximei-me da janela. Foi quando a vi, perdida no meio das cores do jardim. Meu coração saltou em meu peito. Ela parecia ter sentido que alguém a espiava, pois virou-se. Travei, olhando o rosto angelical. “Será ela?”, perguntei-me. Mas não estava enganado. Barulhos de passos vindo do interior da casa me fizeram desviar o olhar. Vi surgir duas pessoas: uma senhora bem vestida e distinta, e uma jovem de cabelos dourados e olhos azuis. Ela não me olhou diretamente. O cabelo preso em um penteado e o vestido leve cobriam seu corpo. — Conde de Argyll, estas são minha senhora, condessa de Lennox, e minha primogênita Isobel. Senti um baque dentro de mim: aquela era Isobel. Então, quem era a menina no jardim? Perguntei-me, atordoado, sem perceber que a procurava pela janela, prestando pouca atenção à minha futura noiva. --- — Pensativo, Ragnar? — Hunter me retirou do passado. — Sempre. — A noite chegará em breve. Vamos à caça? — Temos o que necessitamos. Pagamos bem ao mercado n***o. Não há mais necessidade de sair por aí arriscando nossas vidas. — Não me refiro a isso. E sim a outro tipo de caçada: mulher de sangue quente, corpo macio. Mantenho minha postura fria. — Onde? — Fiz uma pesquisa rápida. Há uma casa noturna em Balneário Camboriú, local discreto para quem busca privacidade. Penso que será um divertimento. — Sim. Aceito o convite. Em poucos minutos, entramos no hotel e seguimos cada um para a suíte que nos correspondia. — Às onze, Ragnar — diz Hunter antes de abrir a porta da suíte. Entro, retiro as luvas e o casaco pesado. Fecho as grossas cortinas que pedi para instalarem nas janelas. Faz tempo que a escuridão tornou-se minha essência, entranhada em minha carne. Acendo apenas a luz do abajur. Sigo até o brigobar, pego a embalagem onde está escrito “suco de uva”, embora o teor seja outro, bem diferente. Retiro a tampa e esvazio a embalagem em segundos. Vou até o banheiro, olho meu reflexo no espelho e sorrio para o monstro que me tornei. Até o azul dos meus olhos diverge das cores existentes naquela mesma tonalidade. Abro a torneira, observo a água escorrendo para o ralo. Pego um pouco com as mãos e molho o rosto. "Tanto mudou. Por quê? Por quê?" Sigo até a cama, sento e puxo o notebook. Abro, digito a senha para desbloquear a tela e navego pelas contas da sucursal, sabendo dos cortes que farei. Entre as planilhas, lembro dela, dos olhos nos meus, da forma como pareceu afetada e não soube esconder. O perfume dela ainda está em mim, o som do suave arquejo ecoando em meu ouvido. "Minha Elizabeth..." ___ A noite finalmente chega, e com ela os seres noturnos despem-se das suas fantasias, saem para contemplá-la. Hunter e eu seguimos para a casa noturna, eu preso com os meus pensamentos e Hunter observando as pessoas transitando como se fossem presas entre as patas de um felino. Não é totalmente uma inverdade se formos levar ao pé da letra.
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