6 - Liz

2476 Words
Sete da manhã. O despertador tocou, Alice gritou do outro quarto que tava sem meia, o Yan praguejou no banheiro, o vô Treva ligou o rádio no volume de feira, e a Liz se perguntou, como fazia toda manhã: por que ninguém nessa casa sabia sair em silêncio? Levantou com o cabelo desgrenhado, a cara amassada e a esperança de tomar um café em paz. Uma ilusão, é claro. Na cozinha, Malu esquentava pão na chapa, enquanto equilibrava a bolsa no ombro e digitava no celular com o dedão. Kauê tomava café de pé, em silêncio, como sempre. Alice choramingava porque a saia do uniforme tava curta demais e ninguém entendia que "todo mundo da escola usa assim". E Yan, com a mochila pendurada de um lado só, brigava com o espelho da sala pra arrumar o topete. — Bom dia, flor do dia — Malu disse, sem olhar pra ela. — "Flor" é só modo de falar, né? — Liz murmurou, pegando uma caneca e servindo o café. — Hoje eu vou com a mãe — Alice anunciou, puxando a barra da saia pra baixo. — E o vô vai levar vocês dois. — Os dois quem? — Liz perguntou. — Você e o Hariel — Alice respondeu, como se fosse óbvio. Liz travou no meio do gole. — Como assim? — Ele estuda na mesma escola que você, Liz. Vai pegar carona. Normal, né? — Malu falou, tirando o pão da chapa. — Super normal — respondeu Liz, rangendo os dentes. — Só falta ele querer sentar do meu lado. Foi nesse exato momento que ele apareceu. Camiseta branca, mochila preta jogada no ombro, cabelo ainda úmido de banho e aquele jeito calmo demais pra uma casa que parecia uma escola em semana de prova. — Bom dia. — A voz dele cortou o ar como faca na manteiga. — Tá atrasado, primo — Yan comentou, ainda tentando ajeitar o cabelo. — Atraso é concepção, mano. Eu chego quando tenho que chegar. — Liz revirou os olhos. — Que lindo. Um filósofo de roça. — Hariel olhou pra ela e sorriu de lado. — E você continua uma simpatia matinal. — ela encheu a caneca de novo só pra não responder o que pensou. — Bora, gente! — gritou o vô Treva do corredor. — O trânsito tá de doido! A pressa tomou conta da cozinha. Yan saiu primeiro, Alice grudou em Malu, que saiu carregando caderno, lancheira e o resto da paciência. Liz terminou o café em dois goles e foi pro quarto vestir a roupa. Dez minutos depois, estava no corredor com a mochila nas costas, ajustando a calça jeans enquanto tentava achar o fone de ouvido no fundo da bolsa. Foi quando a porta do quarto do Hariel abriu. E foi quando eles se trombaram. Literalmente. Ela deu de cara com o peito dele. A mochila dela escorregou, o fone voou, e o susto fez os dois recuarem ao mesmo tempo. — Merda, Hariel! — ela resmungou, agachando pra pegar o fone. — Você que veio voando! — ele respondeu, abaixando junto. Os dois estenderam a mão ao mesmo tempo pro mesmo fone. Os dedos se tocaram. Liz puxou rápido. Silêncio. Eles se levantaram juntos, e ela percebeu o quanto ele tinha crescido. Alto. Largura de ombro. O jeito que ele olhava direto nos olhos dela, sem desviar. — Você devia olhar por onde anda — ela disse, ajeitando o cabelo. — Você devia parar de correr igual um furacão — ele rebateu, ainda com aquele sorriso maldito. — Você devia dormir no sofá. — Você devia parar de fingir que não estava com ciúmes de mim, ontem. — Liz travou. — O quê? — Nada — ele respondeu, passando por ela no corredor com um empurrãozinho leve de ombro. — Vambora, senão o vô buzina. Ela ficou ali parada por meio segundo, coração batendo mais rápido do que gostaria. Depois fechou a cara e seguiu atrás. Na sala, Kauê observava de longe, braços cruzados, com aquele meio-sorriso de quem já viveu muito. Treva bateu palminha. — Bora, casal! Ops, digo... priminhos! — Muito engraçado, vô — Liz respondeu, entrando no carro. Hariel sentou do lado dela. Nenhum dos dois falou nada no início. Mas no reflexo do retrovisor, dava pra ver o jeito que os olhos dela viravam discretamente na direção dele. E o jeito que ele sorria sozinho, olhando pela janela, como quem sabia exatamente o que tava fazendo. O campus estava lotado… Sol de rachar, gente correndo pro RU, calor humano e literal, e Liz, de óculos escuros e ar blasé, atravessava a praça principal como se estivesse num desfile de moda universitário — o que, na cabeça dela, era exatamente o caso. — Eu tô te dizendo, amiga. Ele é o mesmo. Só que... com barba. — Liz empurrou o cabelo pro lado, equilibrando o copo de café na mão. — Aquele mesmo jeitinho de me provocar, de sorrir torto... Como é que chama aquilo quando a pessoa sabe que tá te irritando e acha graça? — Hariel. — respondeu Júlia, a melhor amiga e colega de curso, com a precisão de quem já tinha ouvido esse nome cinquenta vezes naquela semana. Elas se sentaram num dos bancos perto do prédio de Comunicação. Júlia mordiscava um cookie, enquanto Liz fazia questão de fingir que não olhava pro celular de cinco em cinco segundos. — E vocês dividem o quê? Casa? — Mais ou menos. Ele tá na casa do meu avô. Eu também. Mas é temporário — respondeu Liz, como quem torce pra que o universo escute e obedeça. — E você não tá afim? — Lógico que não. — Ela riu, indignada. — É o Hariel, Ju. O menino que cortou a ponta do meu cabelo escondido quando a tinha oito anos. Que trocou meu shampoo por maionese. Que me chamava de "princesa do asfalto". Eu tenho histórico de guerra com ele! — Tá. Mas agora ele é um homem. Um homem com barba. E costas largas. E... — E metido. Arrogante. Com aquele jeito de quem voltou de uma colônia alternativa no meio de Minas. — Liz cruzou as pernas. — E ainda por cima me faz sentir... sei lá. Descompensada. — Júlia estreitou os olhos. — Descompensada tipo... "borboletas no estômago"? — Descompensada tipo vontade de jogar a mochila dele pela janela. — Isso é t***o reprimido, mana. — É trauma de infância! — Liz rebateu, mas riu junto. — A gente cresceu se odiando. E agora ele chega, todo calmo, todo misterioso, todo "ai como eu sou diferente", e age como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse destruído minha boneca preferida com uma enxada. — Ele usou uma enxada? — Júlia gargalhou. — Longa história. Elas ficaram em silêncio por alguns segundos. Liz bebeu mais um gole do café já meio frio, e Júlia jogou: — Quero ver esse ser mitológico. Me mostra uma foto. — Eu não tenho fotos dele. — Liz. — Tá, talvez uma ou duas. — Abriu o i********:, já arrependida. — Mas é só porque ele postou com a família. E o algoritmo jogou pra mim. E... — Achei. Esse aqui? — Júlia apontou o perfil. — Meu Deus, você já stalkeou? — E, Liz... isso aqui é o quê? — virou o celular, mostrando uma foto do Hariel sentado na grama, camiseta preta, violão no colo e aquele olhar de quem pensa em revolução enquanto toca Djavan. Liz prendeu a respiração por um segundo. — Isso é um truque barato — disse, cruzando os braços. — Isso é um homem. Antes que ela pudesse rebater, uma voz surgiu atrás delas: — Vocês estão falando de mim? Liz gelou. Virou devagar e deu de cara com o próprio tema da conversa. Hariel. Mochila nas costas, copo de suco na mão, aquele sorrisinho presunçoso e a cara de quem sabia muito bem que tinha chegado na hora certa pra estragar a paz alheia. — O que você tá fazendo aqui? — Liz perguntou, levantando as sobrancelhas. — Estudo aqui também, ué. Esse é o meu bloco. Só vi vocês de longe e resolvi vir dar um oi. — A gente tava falando m*l de você — ela avisou, seca. — É bom saber que tô rendendo assunto — ele respondeu, se virando pra Júlia. — Oi, sou o Hariel. Primo, hóspede, e aparentemente vilão da vida da Liz. Júlia, encantada, apertou a mão dele. — Júlia. Melhor amiga e fã da confusão alheia. — Ela também é fofoqueira — Liz completou. — Mas pelo menos ela é do meu lado da guerra. — Eu não escolhi lados — Júlia disse, com um sorriso maroto. — Só acho o Hariel interessante. — Interessante é o nome acadêmico de encrenca — Liz retrucou. — Interessante é você fingir que não gostou da minha visita — Hariel respondeu, com a calma de quem tinha nascido irritando. Ela não respondeu. Porque, no fundo, era verdade. Ele se despediu com um "até em casa", e saiu andando, tranquilo, como se não tivesse acabado de virar a manhã dela do avesso. Júlia olhou pra Liz com a cara de quem já sabia. — Você tá ferrada, amiga. — Eu sei. — Vai negar até quando? — Até o fim da minha dignidade. — Ou seja, até sábado. Liz riu, mas no fundo sabia. A guerra já não era guerra fazia tempo. Era só um campo minado de tensão que ela fingia não ver. E Hariel? Ele tava dançando ali. Descalço. […] Sábado à noite no morro tinha um cheiro específico: mistura de laquê, churrasquinho e ansiedade. Liz se encarava no espelho do quarto com o vestido preto colado no corpo, o batom vinho ainda úmido e a cara de quem não tava ali pra brincar. Ela ajeitou o cabelo mais uma vez, botou o salto e deu um giro só pra confirmar o óbvio: impecável. — Alice, pega meu brinco de argola grande, o dourado! — gritou pela irmã, que já estava deitada vendo t****k com uma touca de cetim enfiada até a sobrancelha. — Cê vai arrasar, hein, Liz! — Alice gritou de volta. — Só não beija ninguém feio. Depois fica arrependida e vem me contar! — Já falei que você sabe demais pra quem tem só treze anos? — Alice apareceu na porta, jogou o brinco com precisão cirúrgica e desapareceu de volta. Liz encaixou as argolas, deu um sorriso de satisfação e pegou a bolsa. Estava pronta. O baile ia bombar. Já fazia semanas que ela e Júlia tavam falando disso. Gente de outros morros ia colar, os DJs eram bons, e, principalmente, era a chance perfeita de dar um gelo emocional no Hariel. Afinal, desde aquela conversa na faculdade, ele andava se metendo demais nos pensamentos dela. E ela precisava lembrar que o mundo era grande. Que existiam opções. Que aquele primo gostoso era só um detalhe inconveniente no cenário. Desceu as escadas já jogando charme pra parede. Encontrou o pai e a mãe na sala, assistindo TV. — Vai onde, hein, madame? — perguntou Kauê, com aquele tom de quem já sabia a resposta. — No baile, pai. — Vai voltar com a cabeça no lugar, né? — Se tudo der certo, nem volto com a cabeça. Malu riu. Kauê fingiu desaprovar, mas não tirou os olhos da TV. — Yan! Vambora! — Liz gritou. Só que, pra sua surpresa, não foi só o Yan que apareceu do corredor. Foi também Hariel. De boné virado pra trás, corrente fina no pescoço, camisa preta e um perfume amadeirado que ela não queria admitir que reconheceu na hora. Ele veio andando devagar, o andar largado, e aquele maldito sorrisinho pronto. Liz congelou. — Você vai... com a gente? — Ué — ele deu de ombros. — Yan me chamou. Disse que ia ser maneiro. — Era uma ironia, Yan! — ela gritou, olhando pro irmão com indignação. — Foi m*l, pô. Achei que você sabia que eu ia chamar ele. — Aham. Claro. — a garota se virou, bufando, e abriu a porta. Hariel e Yan vieram atrás. Na rua, a noite tava quente, o som dos primeiros paredões já chegava de longe, e Liz andava com passos duros, o salto fazendo toc-toc de raiva no asfalto. — Você tá brava? — Hariel perguntou, fingindo inocência. — Tô feliz da vida, primo. m*l posso esperar pra te ver rebolando no meio do baile. — Se você pedir, eu danço só pra você. — ela parou, virou de uma vez. — Hariel. Me escuta com atenção: não me envergonha. Nem tenta bancar o engraçadinho, o galã da roça, ou o revolucionário sensual. Hoje eu quero paz. — Então não olha pra mim. — Ele deu um passo à frente, sorrindo com aqueles olhos provocantes. — Porque paz não é exatamente o que a gente tem quando se encara. Liz odiava — odiava — como ele falava perto. O jeito que a voz dele ficava baixa, como se cada frase fosse feita pra invadir o espaço dela. E o pior era que invadia mesmo. — Vamo, vamo logo — Yan cortou, rindo. — Cês tão se encostando igual gente que vai casar. — Cala a boca, Yan! — os dois responderam ao mesmo tempo. Chegaram no baile e a música já estremecia o chão. Gente pra todo lado, cheiro de cerveja, glitter, fumaça. Liz se perdeu da dupla logo na entrada — de propósito — e foi se encontrar com a Júlia, que tava com um grupinho de conhecidos. — Me salva. — Liz sussurrou, agarrando o braço da amiga. — Ele veio, né? — Pior. Veio bonito. — Misericórdia. As duas riram e começaram a dançar. Liz se forçou a esquecer, a focar na batida, no calor, nas luzes piscando. Ela sabia ser o centro da pista, e era exatamente o que tava fazendo quando sentiu o olhar. Olhou pro lado. E lá estava ele. Hariel. Encostado numa parede, copo na mão, rindo de alguma coisa que Yan falou. Mas os olhos... estavam nela. Fixos. Sem piscar. Ela retribuiu o olhar por um segundo. Só um. O suficiente pra sentir o arrepio nas costas. — Vamo dançar com uns boys? — Júlia sugeriu, tentando tirar ela daquele transe. — Por favor. E foram. Liz fingia interesse nas conversas, ria mais alto do que sentia vontade, e mantinha os olhos sempre meio voltados praquele canto onde Hariel tava. E ele? Sumiu da parede em algum momento. Reapareceu na pista. Dançou com umas meninas. Trocou ideia com outras. E o coração dela deu aquela pontadinha nojenta de... incômodo. Não era ciúmes. Era só precaução. Era saber que ele era o tipo de problema que não podia virar costume. Mas cada vez que ele olhava de volta... ela duvidava um pouco mais disso.
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