5 - Hariel

2076 Words
O gosto do café tinha sumido antes mesmo de ele sair da cozinha. Hariel encostou na mureta da varanda, segurando a caneca vazia só pra ter o que fazer com as mãos. O calor da manhã ainda era suportável, com aquele ventinho que passava entre as árvores do morro e batia de leve no rosto. Mas a cabeça dele tava fervendo. "Vai viver tua vida, mas não esquece quem você é." A voz do pai ainda ecoava, como sempre. Mas Guilherme não tinha previsto uma coisa. Elizabeth. Ou melhor: Liz. Hariel encostou o corpo no parapeito e olhou lá pra baixo. Era cedo demais pra ficar questionando o universo, mas o universo tava provocando. Desde que pisou naquela casa, tudo tava meio torto. A recepção calorosa, os abraços, até o almoço animado dos dias anteriores — tudo parecia bom demais. Como se alguém tivesse pendurado uma placa invisível dizendo bem-vindo ao caos prestes a explodir. E o olho do furacão tinha nome, cílios grandes e língua afiada. Ver ela de perto de novo foi pior do que ele imaginava. Ou melhor, melhor — e isso era o problema. Porque ela não era mais só aquela pirralha irritante que competia pra ver quem fazia mais drama no Natal da família. Ela tinha crescido. E agora ele não sabia onde guardar o que tava sentindo. Porque, apesar das farpas de sempre e da vontade de enfiar a cara dela numa almofada às vezes, o olhar dela tava diferente. Ou talvez fosse o dele. No café, ela entrou e ele achou que ia começar a provocação habitual. Mas nada. Um "bom dia" seco e um silêncio que dizia tudo o que eles não tavam prontos pra dizer. E então as pessoas começaram a notar. Como se o caos deles tivesse data e hora marcada. Só que, dessa vez, era silencioso. Quase... cúmplice. Hariel deu um meio sorriso sozinho, pensando em Alice e Yan rindo, na cara desconfiada da tia Malu, no jeito do vô Treva só observando em silêncio, do outro lado da sala. — Cês tão tramando, né? — ele sussurrou, imitando a Alice. Tramando nada. Era pior: eles estavam sentindo. E o que ele mais odiava — e mais queria ao mesmo tempo — era que Liz sentia também. Tava no jeito que ela desviava o olhar, na ironia contida, nos passos sincronizados pra longe um do outro. Hariel respirou fundo, jogou o resto do café no vaso de planta e virou de costas. E deu de cara com ela. No batente da porta, com os braços cruzados e aquela expressão que ficava entre "fala mais uma e eu te mato" e "fala mais uma e eu te beijo". — Tá fugindo de mim agora? — ela perguntou, sem sorrir. — Eu que tava aqui. Cê que chegou depois. Ela franziu o cenho, mas não respondeu. Só ficou ali, olhando pra ele, como se tivesse tentando decidir o que fazer com aquele incômodo. — Cê sempre acorda com o d***o no corpo ou hoje é especial? — ele perguntou, mais por reflexo do que por intenção. — Só acordo m*l-humorada quando meu banheiro vira zona de guerra — ela respondeu, rápida. — Mas obrigada por perguntar. Silêncio. De novo. E então ela encostou ao lado dele na mureta. Os dois, lado a lado, como se tivessem voltado ao ponto de partida. Só que não eram mais crianças brigando por espaço no sofá do avô. Agora era outra coisa. — Todo mundo percebeu que a gente tá... diferente — ele falou, baixinho. — Eles que fiquem de boa. A gente só não tá afim de show hoje. Só isso. Hariel olhou pro rosto dela. Pro perfil bonito, pro piercing discreto na orelha, pro jeito que ela mordia o canto da boca quando tava pensando demais. — Cê acha mesmo que isso é só falta de show? Ela virou pra ele. — E você acha que não é? Por um segundo, ninguém respirou. O barulho do morro seguiu lá embaixo: moto subindo, criança gritando, rádio ligado em algum pagode antigo. Mas ali, naquela varanda, era outro tempo. Outro clima. Outro perigo. Hariel deu um passo pra trás. — Vou arrumar minhas coisas. Tenho aula daqui a pouco. — Liz assentiu. Mas ele percebeu: os olhos dela ficaram nele até ele desaparecer no corredor. E ele? Tava torcendo pra essa guerra nunca acabar. Porque pela primeira vez... ele queria perder. […] Hariel desceu do ônibus já com a mochila nas costas e a sensação de que tava carregando mais do que livros e cadernos. Era o peso de uma vida inteira que tinha ficado no sítio, das promessas feitas pra mãe, das palavras do pai martelando na cabeça, da infância costurada entre terra, sol e silêncio. Agora, tudo era barulho. Gente demais, prédio demais, informação demais. Faculdade federal. Curso de comunicação. Rio de Janeiro. Tava tudo certinho no papel. Na prática? Um universo paralelo. Ele parou diante do prédio do curso, ajeitou a camisa de botão — amassada, claro — e respirou fundo. Tentou parecer confiante. Mas a verdade é que o estômago revirava como se tivesse comido manga com leite. — Vambora, Hariel. Ninguém aqui te conhece. Finge costume. Caminhou pelo corredor com a mesma calma que usava pra andar entre as árvores do sítio, como se estivesse pisando em solo conhecido. E isso chamava atenção. As pessoas olhavam. Talvez fosse o cabelo desgrenhado de propósito. Ou o olhar atento, desconfiado. Ou só o fato de que ele não tava com fone de ouvido, nem grudado no celular — parecia inteiro ali. Raro hoje em dia. — Ei, novato! Tá perdido? — uma menina perguntou, saindo de uma sala. Cabelão ruivo, batom escuro, camiseta de banda indie. Hariel sorriu de lado. — Tô. Mas tô fingindo que sei onde tô indo. Ela riu. — Aulas de filosofia são no terceiro andar. Se você tiver inscrito no 01, a sala é aquela ali, ó. Boa sorte — piscou, já se afastando. Ele agradeceu com um aceno e subiu. As escadas estavam cheias de conversas, tropeços, café na mão, gente atrasada e gente animada demais pra aquele horário. Quando entrou na sala, escolheu um canto mais pro fundo, perto da janela. O tipo de lugar onde se observa antes de participar. Aos poucos, mais alunos foram entrando. Roupas estilosas, cortes de cabelo ousados, piercings, tatuagens, vozes altas. Hariel se sentia um visitante, mas não se deixava parecer um. Manteve a postura, abriu o caderno e fingiu rabiscar. — Você é de qual turma? — uma garota sentou ao lado dele. Pele morena, brinco grande, sorriso fácil. — Acabei de entrar. Primeiro período. — Ah, então é calouro mesmo! Eu sou a Nina. Se quiser, posso te mostrar os corredores depois. Aqui é meio labirinto no começo. Ele sorriu. — Valeu, Nina. Eu sou o Hariel. — Hariel... nome diferente. Gosto. Ele agradeceu com um olhar meio tímido. Não era de flerte fácil, mas sentia a energia ali, clara como água. A aula começou, e ele mergulhou nas palavras do professor como quem bebe água depois de dias no sol. A discussão era sobre mitologia e poder simbólico. Hariel levantou a mão uma vez, comentou algo sobre como os antigos lidavam com medo através de histórias — e o silêncio da sala se transformou em atenção. — Muito boa colocação, Hariel — disse o professor, surpreso. — Você já leu sobre Jung? Ele coçou a nuca. — Já ouvi falar. Mas li foi Clarice e Guimarães Rosa. Lá no sítio, os livros bons chegavam de fininho. Alguns riram, outros só observaram com curiosidade. Nina sorriu do lado dele, claramente interessada. Quando a aula terminou, vários alunos vieram puxar conversa. Uma menina perguntou onde ele tinha comprado a bolsa de couro (feita pela vizinha de Minas), outro elogiou o sotaque. Ele saiu do prédio mais leve, mas com um aviso piscando no fundo da mente: tudo aqui vai rápido demais. Enquanto caminhava até o ponto de ônibus, abriu o celular e viu uma notificação no grupo da família. Alice: Hariel, lembra que hoje tem lasanha Yan: Espero que sobre pra mim, se a Liz deixar kkkkk Liz: Me respeita que eu nem tava em casa Malu: Todo mundo que comeu foi gente Hariel: Tô chegando já. Guardem um pedaço que a faculdade dá fome de pedreiro. Ele digitou rindo, mas sentiu o coração bater diferente ao ver o nome dela. Liz. Só "me respeita" e ele já imaginava o tom. A boca. O olhar atravessado. E por um segundo, lembrou da madrugada. Da cozinha. Dos olhos dela tão perto dos dele. Mordeu o lábio. — Isso ainda vai dar merda. Mas mesmo assim... acelerou o passo pra chegar mais rápido em casa. Hariel entrou pelo portão da frente com o sol se pondo atrás dele, tingindo o céu de laranja e roxo. O corpo doía de leve — não de cansaço físico, mas daquela tensão de estar em território novo, atento demais a cada detalhe. O cheiro da comida ainda pairava no ar, e o som da TV vinha da sala, onde Alice e Yan discutiam algo sobre um reality show. — Cheguei! — avisou, jogando a mochila no canto da parede e chutando os tênis pra perto da porta. — Hariel! — Alice apareceu em disparada, já abraçando ele pela cintura. — Eu guardei dois pedaços da lasanha, tá? — Dois? — Yan gritou da sala. — Ela comeu três, só avisando. — Calúnia — Alice rebateu, ainda abraçada. — Eu só experimentei antes pra garantir que tava bom. Hariel riu e bagunçou o cabelo da menina. — Valeu por garantir minha janta, fiote. — E aí, mano, como foi o primeiro dia? — Yan surgiu por trás do sofá com um pacote de biscoito na mão. — Foi doido. Grande, cheio, todo mundo parece que nasceu dentro de uma biblioteca e ao mesmo tempo numa galeria de arte. Mas gostei. — Arrumou gente pra andar contigo? — Yan perguntou, com aquele jeitão curioso. — Algumas pessoas puxaram assunto. Uma menina chamada Nina sentou do meu lado e foi simpática — disse, sem pensar muito. Alice arregalou os olhos. Yan levantou uma sobrancelha. E então... — Nina, é? — veio uma voz seca da cozinha. Hariel virou devagar e encontrou Liz parada com um copo de suco na mão. Vestia uma regata larga e um short jeans, cabelo preso no alto da cabeça, e aquele olhar que podia ser tanto curiosidade quanto ameaça. — É. Da minha turma. Me mostrou onde era a sala — respondeu, tentando manter a naturalidade. — Ah, que gentil — ela disse, tomando um gole. Alice olhou de Liz pra Hariel como quem assiste a um episódio novo da série favorita. — Tá uma vibe diferente aqui hoje — Yan murmurou pro biscoito. Hariel deu de ombros, se aproximando da pia pra lavar as mãos. — Todo mundo em casa? — perguntou, tentando mudar o clima. — A mãe e o pai saíram pra resolver coisa da escola da Alice. Vô tá dormindo. Sobrou a gente — respondeu Liz, ainda parada no mesmo lugar, olhos nele. — Ótimo. Vou esquentar a lasanha. Liz desviou o olhar, pegou o celular do balcão e saiu da cozinha sem dizer mais nada. Mas antes de sumir no corredor, Hariel viu o jeito que ela apertou a tela do celular. Uma mistura de inquietação e... desconforto? Ele pegou o prato, colocou a comida no micro-ondas e se recostou na bancada, olhando o display girar a lasanha lentamente. O nome dela apareceu de novo na cabeça. Liz. Sempre aparecia. Mesmo quando ele não queria. Especialmente quando ele não queria. O micro-ondas apitou. Ele serviu a comida, sentou à mesa e comeu em silêncio, ouvindo ao fundo a risada de Alice, a TV alta, o som da água correndo no banheiro e uma notificação chegando no celular — uma mensagem de Nina: "Curti te conhecer hoje. Se quiser companhia amanhã, me chama." Hariel bloqueou a tela sem responder. E por algum motivo que ele não teve coragem de nomear, antes de guardar o celular, entrou no i********: e abriu o perfil da Liz. Última foto: ela e Alice numa pracinha, rindo, o sol atrás. Cabelo solto, sorriso raro. Curtiu sem pensar. E na mesma hora, se arrependeu. Respirou fundo. — Isso é problematico — murmurou, antes de levar o último pedaço da lasanha à boca.
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