O calor ainda grudava nas paredes quando Liz empurrou a janela da sala, tentando fazer algum vento entrar. Em vão. A brisa do morro tinha resolvido tirar folga naquele dia. No sofá, Alice assistia desenho com as pernas jogadas pra cima do encosto e um pacote de bolacha na barriga. Yan tinha saído com os amigos e Malu e Kauê estavam trabalhando. Treva, como sempre, dormia com a TV ligada no último volume.
Liz estava sentada à mesa com a Luíza — uma amiga da faculdade de letras, meio arteira, meio hippie, cheia de tatuagens pequenas que pareciam feitas com agulha de máquina de costura.
— Então, a prova de semiótica foi um caos — Luíza dizia, mordendo a tampa da caneta. — Eu juro que o professor inventou metade daqueles termos ali só pra ver a gente chorar.
— Claro que inventou. O cara fala "intertextualidade heterogênea" como quem pede pão na padaria — respondeu Liz, rindo.
— E ele ainda tem a cara de p*u de chamar isso de "linguagem acessível"...
O portão bateu. Liz olhou pela janela.
— Ai, inferno — murmurou.
— Que foi?
— Nada... — Ela voltou o rosto pro caderno, mas a porta da sala já se abriu com aquele barulho de fechadura que arranha.
Hariel entrou com a mochila pendurada num ombro, a camiseta grudada nas costas e os cabelos bagunçados de um jeito que parecia proposital. Ele tava suado, com um livro na mão e um copo de mate da lanchonete da esquina na outra.
Liz fingiu que não viu.
— Oi — disse ele, generalizando o cumprimento pra não precisar olhar pra ninguém específico. Mas aí a Luíza levantou os olhos do caderno.
— Quem é ele? — Liz demorou meio segundo pra responder.
— Meu primo. Veio morar aqui por um tempo.
— Primo? — Luíza repetiu, com um sorrisinho. — Você não disse que tinha primo bonito.
— Eu disse que tinha primo pentelho. É a mesma pessoa — respondeu Liz, seca. Hariel deu uma risadinha enquanto largava a mochila no canto e passava direto pra cozinha.
— Eu ouvi, tá?
— Era pra ouvir mesmo — ela retrucou, mas já sabia que tava perdendo o controle da situação. Luíza, no entanto, parecia ter encontrado um novo hobby.
— Ele estuda onde?
— Vai estudar na UFRJ. Comunicação. — Liz respondeu sem tirar os olhos do caderno, mesmo sem estar lendo uma linha.
— Hum... ele parece mais tranquilo que você descreveu.
— Você viu ele por trinta segundos.
— E já gostei mais do que de muito boy que eu conheço há anos — Luíza murmurou, de olho na porta da cozinha. Liz fechou o caderno com força.
— Lu, foca aqui. A semiótica tá pedindo atenção.
Mas a amiga já tava de pé, indo até a cozinha "buscar água".
Liz acompanhou com os olhos, se mordendo por dentro. A menina m*l conhecia o Hariel. Não sabia das guerras épicas no Natal, dos debates ideológicos no almoço de domingo, nem da cara de deboche que ele fazia quando queria deixar alguém louco.
Ela sabia.
E sabia também que ele usava aquele charme casual como quem joga isca em rio cheio de peixe. Quietinho, sorriso torto, jeito de quem não quer nada. Mas queria. Sempre queria.
Minutos depois, Luíza voltou com um copo na mão e um brilho suspeito no olhar.
— Ele é engraçado.
— Você ficou tempo suficiente pra descobrir isso?
— Ele disse que você ainda briga com ele por tudo. E que você fazia cara feia até quando ele ganhava em jogo de tabuleiro.
— Eu fazia cara feia porque ele colava — rebateu Liz.
— Você tá com ciúme? — Liz quase engasgou.
— Não. Eu tô com vergonha alheia. — Luíza riu e voltou a se sentar.
— Você devia apresentar ele pra galera. Ia render umas boas tretas no grupo.
— Ah, claro. Vou fazer questão. Só não se esquece que ele é meu primo. Tipo, primo de verdade. Aqueles que você encontra em velório e batizado.
— E mesmo assim você tá se roendo porque ele trocou meia dúzia de palavras comigo.
— Eu não tô... me roendo.
Silêncio. O tipo de silêncio que só duas amigas de verdade sabem decifrar.
Do outro lado da sala, Alice soltou uma risada alta com o desenho. Liz apoiou o queixo na mão, fingindo se concentrar no caderno.
Mas por dentro, a cabeça já tava criando uma lista mental:
1. Tirar a Luíza de perto do Hariel.
2. Impedir o Hariel de usar aquela camiseta colada.
3. Fingir que não ligava.
4. Lembrar que ele era só um primo.
5. Fingir mais um pouco.
Ela bufou. A vida tinha virado novela. E Hariel, o personagem principal da trama que ela não queria assistir, mas não conseguia desligar.
Maldito protagonista de novela das seis.
Já era duas e meia da manhã.
Liz acordou com sede e uma leve insônia que ela culpava no calor, no estresse e — claro — no convidado especial que agora morava no mesmo teto que ela.
Saiu do quarto de meias, pisando macio, pra não acordar ninguém. A casa dormia num silêncio grosso, só quebrado pelo zumbido de algum mosquito insistente e o rangido de uma porta de armário m*l fechada.
Na cozinha, a luz da geladeira iluminava o chão azulejado, quando ela abriu pra pegar água. Estava com a cara meio amassada, cabelo preso de qualquer jeito e uma camiseta velha. Já ia voltar pro quarto quando ouviu passos.
Lentos. Descalços. Virou o rosto e lá estava ele. Hariel.
Cabelos desgrenhados, bermuda larga, camiseta escura. Olhos sonolentos, mas atentos. E, claro, o maldito copo de mate na mão de novo.
— Insônia ou larica? — perguntou ele, encostando na bancada com a calma de quem era dono da casa.
— Sede. — Ela respondeu, seca, bebendo um gole d'água. — Você?
— Costumo dormir tarde. Lá no sítio, eu fazia isso pra ver o céu. Aqui, faço pra fugir do calor.
Liz se encostou do outro lado da bancada, tentando fingir que o pijama dela não era tão ridículo quanto parecia na luz fria da cozinha.
— Vai se decepcionar, então. No Rio, o céu é tipo namorado tóxico: promete muito, entrega pouco.
Hariel deu uma risadinha abafada.
— Continua poética, hein?
— E você continua com essa mania de achar graça em tudo. — silêncio.
Ele abriu um pacote de biscoito e ofereceu. Ela pegou um, sem olhar. Mas sabia que ele tava olhando.
— Tá acordada até agora por quê? — ele perguntou.
— Sabe aquele momento que o sono vai embora e leva sua paz junto?
— Sei. Acontece direto. Principalmente quando a gente se muda pra casa da prima barraqueira. — ela ergueu uma sobrancelha.
— Te falta gratidão.
— Me falta ar-condicionado.
Mais silêncio.
Mas não era desconfortável. Era denso. O tipo de silêncio que diz: a gente se conhece mais do que devia.
Liz desviou o olhar pra pia. Queria que o coração parasse de correr uma maratona no peito. Hariel deu a volta no balcão e ficou mais perto.
Perto demais.
— E aí? A Luíza sempre vem aqui?
Ela travou. Devia ter imaginado que ele ia tocar nesse assunto.
— O que tem?
— Nada. Só achei engraçado o jeito que você surtou quando ela foi buscar água.
— Eu não surtei. Eu fiquei... atenta.
Ele sorriu. Devagar. Como se tivesse ganhado um ponto num jogo que só ele sabia que estavam jogando.
— Cuidado, Liz.
— Cuidado com o quê?
— Com esse ciúme disfarçado de ironia.
Ela bufou, nervosa. E riu. Riu de raiva. Riu porque ele acertou em cheio.
— Você se acha tanto, né?
— Não. Só conheço você. Desde 2010, quando você tentou me empurrar na piscina porque eu zuei seu aparelho.
Ela lembrou. E teve que morder o lábio pra não rir.
— Eu tinha doze anos. E você me irritava.
— E agora?
— Agora você me irrita mais.
— Mas não quer me empurrar na piscina?
— Não. Agora eu quero te empurrar de volta pra roça.
Os dois riram. Baixo. Quase cúmplices.
O silêncio voltou. Mas dessa vez, tinha eletricidade. Olhares que se demoravam, respirações medidas, e uma tensão que não existia nas tardes cheias de gente.
Era madrugada. Os filtros estavam dormindo junto com o resto da casa. Hariel passou a língua pelos lábios, pensativo.
— A gente ainda vai brigar muito, né?
— É o que a gente sabe fazer melhor.
— Ou não. — ela o encarou, séria.
— O que isso quer dizer?
— Que talvez a gente esteja ficando bom em outra coisa também.
— Tipo?
Ele se aproximou mais um passo. Ela podia sentir o cheiro do sabonete dele. E o calor. E o risco. Mas não recuou.
— Em criar problema onde não devia. — ela segurou o riso.
— Hariel...
— Fala.
— Se você encostar mais um centímetro, eu grito.
— Vai acordar o vô Treva?
— Vou acordar o bairro inteiro. — ele sorriu, mas recuou. Pegou mais um biscoito, deu um tchau preguiçoso com a cabeça e foi saindo da cozinha.
— Boa noite, Liz.
— Vai dormir, Hariel.
Ele foi.
E ela ficou ali, de copo vazio e peito cheio, perguntando pra si mesma desde quando a madrugada virou esse campo minado.
E por que, mesmo sabendo do perigo, ela queria tanto pisar de novo.
[…]
O cheiro de café invadiava a casa antes mesmo do sol terminar de nascer por completo. Liz desceu as escadas amarrando o cabelo num coque desleixado, o rosto ainda meio amassado do travesseiro, e uma expectativa irritante martelando o peito.
Toda essa tensão é hormonal. Passa logo. Vai passar logo. — mentiu pra si mesma.
Na cozinha, Hariel já estava sentado à mesa, mexendo o café com a colherzinha numa calma quase provocativa. Ela odiava aquela calma dele. Era como se nada abalasse o universo particular do filho da Aurora.
— Bom dia — ela murmurou, puxando a cadeira da ponta da mesa.
— Bom dia. — Ele respondeu, sem ironia. Sem piada. Sem nada.
Liz piscou, desconfiada. Pegou uma fatia de pão e passou manteiga com mais força do que o necessário.
Kauê entrou logo depois, bocejando e coçando o peito por baixo da camisa velha.
— Ué... que silêncio é esse aqui? Tá todo mundo com dengue ou é só a TPM coletiva? — Malu surgiu atrás dele, já com o cabelo preso e o olhar atento.
— Realmente... Cadê os gritos? As piadas? As provocações matinais? Vocês estão doentes?
— Só estamos comendo. — Liz respondeu, rápido demais.
— É, às vezes a gente consegue. — Hariel completou, bebendo o café como se fosse inocente.
Alice entrou na cozinha com o uniforme da escola, ainda lutando pra abrir o zíper da mochila. Yan veio logo atrás, com cara de sono e fone enfiado no ouvido.
— Que que aconteceu aqui? Eles tão em modo silencioso? — perguntou, apontando com o queixo pros dois.
— Não sei, mas tô achando estranho — disse Alice, sentando com a cara enfiada no pão com queijo. — Quando eles ficam quietos assim é porque tão tramando alguma coisa.
Hariel olhou pra Liz.
Liz olhou pra Hariel.
E os dois desviaram no mesmo segundo. Aquilo foi pior do que qualquer gritaria.
Porque quem cresceu ouvindo eles se cutucarem o tempo inteiro, agora não sabia o que fazer com aquela falta de barulho. Malu cruzou os braços, fingindo casualidade.
— Vocês brigaram e agora tão se ignorando? Ou...?
— A gente só tá... de boa. — Liz disse, cortando o assunto.
— De boa, ela disse — Yan repetiu, com sarcasmo, mordendo uma banana como se fosse uma crítica social.
— É verdade — Hariel falou, com um meio sorriso. — Vai ver a convivência amadureceu a gente.
Alice tossiu de rir.
— Ou vai ver vocês tão se gostando. Igual em novela mexicana. — Liz quase derrubou o copo de suco. Hariel pigarreou, se levantando com a caneca na mão.
— Eu vou terminar esse café lá na varanda.
— Eu vou... ajudar a Alice com a mochila. — Liz disse, pegando a primeira desculpa que apareceu. Ninguém acreditou. E o silêncio que ficou foi ainda mais suspeito.
Malu mordeu um pedaço do pão, sorrindo de canto.
— É. Tem coisa aí.