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1235 Words
Capítulo 1 Malu narrando O reflexo no espelho era quase irreconhecível. Marcas roxas espalhavam-se pelos meus braços, pelo ombro e até no pescoço. Algumas eram manchas antigas, já amareladas, outras ainda pulsavam de dor, como se a pele estivesse em carne viva. Passei a ponta dos dedos sobre o roxo maior, no braço, e fechei os olhos por um segundo. Como foi que eu deixei minha vida virar isso? Perigo me mantinha aqui como um pássaro enjaulado. Ele dizia que era “proteção”, mas eu sabia a verdade: ele tinha medo. Medo do que eu sabia. Eu não era apenas a mulher dele, era filha de um dos braços direitos mais leais que ele já teve, um homem que morreu jurando fidelidade ao comando. Isso me fazia valiosa e, ao mesmo tempo, perigosa para ele. Quando voltei para o morro com minha mãe, depois de anos morando longe, nunca imaginei que cruzaria com Miguel — que naquela época ainda era só “Miguel”, não o temido dono do morro. Ele herdou o trono depois da morte do pai, e no começo… no começo ele me tratava como se eu fosse o maior tesouro dele. Mas o poder subiu à cabeça. E junto com o poder, vieram as drogas, a bebida e um lado dele que eu nunca tinha visto. As reuniões com a “família” e os aliados eram proibidas para mim. Quando ele saía do morro, saía sozinho. Eu não tinha permissão para cruzar o portão de casa sem autorização. Meu mundo tinha se reduzido a quatro paredes e a rotina de esperar que ele voltasse — muitas vezes bêbado, cheirando a perfume barato de outras mulheres e com raiva acumulada para descontar no meu corpo. Desci as escadas devagar, sentindo a pressão do curativo no braço. Ele estava na sala, sentado à mesa, limpando o fuzil com cuidado. Ao lado, um revólver reluzia sob a luz fraca da lâmpada. — Por que tá com o braço enfaixado? — ele perguntou, sem tirar os olhos da arma. — Você me machucou, esqueceu? — respondi, cruzando os braços. — Não me lembro. — disse, com aquele tom frio que me irritava. — Memória curta, a sua — retruquei. Ele levantou, guardando o pano no bolso, e veio na minha direção com passos lentos, pesados. — Eu só me lembro de você arrumar barraco no meio do morro — falou, me prensando contra a parede e beijando meu pescoço sem pedir. — Você não devia se importar com quem eu pego da porta pra fora. Aqui dentro é você. É você que tem minha proteção. A raiva subiu na garganta. — E você vai se importar se eu sair pegando todo mundo? — perguntei, encarando-o. — Seus amigos, os vapores… quem mais? Deixa eu ver… Ele tampou minha boca com a mão, os dedos pressionando meu rosto com força. — Você me tira do sério, Maria Luiza. Eu tô de boa contigo agora, c*****o. — O olhar dele queimava. — Não me faça te machucar. — Me larga, Miguel — pedi, com a voz engasgada. — Você precisa me obedecer. — Um dia você disse que me amava. É esse o amor que sente por mim? — questionei, e vi a raiva subir nos olhos dele. — Eu jamais vou te obedecer em nada. — Você vai me obedecer — ele respondeu, seco. — Sabe quantos amigos seus já me olharam diferente? — soltei, num tom venenoso. — Sabe quantos inimigos seus te matariam só pra me ter ao lado? Muitos. — Tá querendo virar X9, sua desgraçada? — ele disse, a voz mais grave, quase um rosnado. — Você não me valoriza. Me troca pelas outras. — A respiração dele ficou mais pesada. — Você realmente acha que eu quero continuar com você? Qualquer homem daria a vida pra me ter. Só você que não enxerga a mulher f**a que tem do lado. — Você vai se arrepender de dizer isso — ele falou, levantando a mão. Me defendi antes que o tapa viesse. — Me machuca mais uma vez. É só isso que um bosta como você sabe fazer. — Cala a boca! — ele gritou. Dessa vez foi meu pé que encontrou o corpo dele, um chute certeiro que o fez bater contra a mesa. Aproveitei o espaço e corri, mas ele foi mais rápido, me alcançando antes que eu chegasse à porta. Peguei o abajur e joguei nele, sentindo o impacto seco. Ele cambaleou, mas a raiva nos olhos dele era de fazer qualquer um tremer. Eu sabia que precisava sair dali antes que fosse tarde. Subi as escadas correndo. Ele vinha logo atrás, e eu já pensava no que fazer quando… a porta foi arrombada. — Polícia! — a voz ecoou. Policiais armados invadiram, apontando fuzis para todos os lados. — Perigo, abaixa a arma! — um deles gritou. — Deita, p***a! O som do corpo dele batendo no chão foi quase um alívio. — Vasculhem a casa! — outro ordenou. — Vejam se tem mais alguém! Corri para o quarto, o coração batendo no pescoço. Sabia exatamente onde estava a mala de dinheiro que ele guardava. Peguei também meus documentos, enfiei tudo nas mãos e fui direto para a janela. O morro estava um caos. Sirenes, gritos, rádios chiando. Vapores e chefes de boca ajoelhados na quadra, mãos na cabeça. Policiais por todo lado. Desci por trás da casa, pelo matagal, tentando me misturar à confusão. Mas, no meio da viela, dois policiais apareceram, fuzis apontados. — Nome! — um deles ordenou. — Luana — falei, sem piscar. — Documento. — Eu tava na rua quando vocês invadiram. Não tenho documento comigo. — Engoli seco. — Sou moradora, só tava me escondendo pra não pegar tiroteio. Eles trocaram um olhar rápido. — Vai pra sua casa. Agora. Assenti, dei alguns passos, mas assim que eles viraram o beco, voltei pelo mesmo caminho e recuperei a mala que tinha escondido. O matagal atrás do morro foi minha saída. Corri sem olhar pra trás. Não podia ser pega nem pelos homens de Perigo, nem pela polícia. Para qualquer um deles, eu era um alvo que precisava ser eliminado. Encontrei um táxi parado na estrada. — Pra onde, moça? — o motorista perguntou, estranhando minha respiração ofegante. — Rodoviária, por favor. No caminho, tentei decidir o destino. Não fazia ideia de onde ir, só sabia que precisava sair do Rio de Janeiro. Eu carregava segredos demais — conversas, planos, crimes — que poderiam derrubar mais gente do que ele imaginava. Eu era a peça que faltava num quebra-cabeça de 3 mil peças. A peça mais importante. Na rodoviária, me aproximei do guichê. — Qual é o próximo ônibus que sai? — perguntei. — Pará — respondeu a atendente. — Pode ser. — Abri a bolsa e entreguei o dinheiro, ignorando o olhar curioso dela. — Boa viagem — ela disse, entregando o bilhete. O peso do celular na minha mão me fez hesitar por um instante. Era como cortar o último fio que me ligava à minha antiga vida. Mas eu sabia que, com ele, eu seria rastreada. Respirei fundo e joguei o aparelho no lixo. Olhei em volta. Todo mundo parecia suspeito. Sentei na poltrona do ônibus e só relaxei quando ele começou a se mover, deixando a cidade para trás. Eu estava livre. Livre do Perigo.
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