Onde Tudo Começou
Eu não lembro do rosto dos meus pais biológicos.
Não lembro do cheiro deles, da voz, do toque. O que lembro — e isso ficou gravado em mim como um ferro quente — é do abandono. Não do ato em si, porque eu era pequeno demais para entender, mas da sensação que ele deixa: um vazio que nunca some por completo, apenas aprende a ficar quieto.
Cresci acreditando que o silêncio também educa.
Meu primeiro lar foi um orfanato antigo, daqueles de paredes grossas, corredores longos e janelas altas, onde o sol entrava filtrado, tímido, como se tivesse medo de incomodar. As freiras eram boas. Severas, sim, mas boas. Tinham mãos firmes, olhares atentos e uma paciência que parecia não acabar nunca. Elas falavam baixo, andavam quase sem fazer barulho e rezavam muito. Rezavam por nós. Rezavam por elas. Rezavam por quem nunca viria nos buscar.
Eu aprendi cedo a observar.
Enquanto algumas crianças choravam à noite, eu ficava quieto, encarando o teto, imaginando se Deus também dormia ou se ficava acordado observando tudo, como eu. Talvez tenha sido ali que comecei a falar com Ele. Não em palavras bonitas ou orações decoradas, mas em pensamentos soltos, perguntas sem resposta, pedidos simples demais para virar prece.
— Por que eu? — eu perguntava em silêncio.
Nunca vinha resposta. Mas, estranhamente, eu continuava perguntando, sempre esperando.
As freiras diziam que eu era diferente. Não no sentido especial, mas no sentido silencioso. Eu não dava trabalho, não brigava, não pedia colo. Gostava de ficar na capela pequena do orfanato, sentado no último banco, balançando os pés que ainda não alcançavam o chão. O cheiro de vela me acalmava. O eco da própria respiração, também.
Foi lá que ouvi, pela primeira vez, a palavra vocação.
Eu não sabia o que significava, mas gostei do som. Parecia algo importante. Algo que explicava por que eu me sentia inteiro apenas quando tudo estava quieto.
O tempo passou como sempre passa: sem pedir permissão.
Quando eu já tinha idade suficiente para entender que nem todas as crianças seriam adotadas, um casal começou a me visitar. Eles não chegaram com brinquedos caros ou promessas exageradas. Vieram com roupas simples, sorrisos gentis e um jeito respeitoso de falar com as freiras. Ele era alto, postura firme, voz calma. Ela tinha olhos doces e um toque acolhedor, daqueles que não apertam demais, mas também não soltam rápido.
Eles eram ricos. Eu só descobriria isso depois.
Naquele começo, eram apenas pessoas que voltaram. E isso, para mim, já dizia tudo.
A adoção aconteceu de forma tranquila. Sem dramas, sem despedidas dolorosas. As freiras choraram mais do que eu. Eu estava ocupado demais tentando entender como era possível existir algo além daquelas paredes.
Meu novo quarto tinha janela grande. Minha nova casa cheirava a comida boa. E meus novos pais rezavam antes de todas as refeições, de mãos dadas, agradecendo em voz alta.
Eles eram donos de restaurantes famosos na cidade. Restaurantes que viviam cheios, onde o dinheiro circulava fácil. Mas nada daquilo parecia ser o centro da vida deles. O centro era a fé. A igreja. A missa de domingo. O padre que eles respeitavam como se fosse parte da família.
Eu cresci nesse ambiente como quem cresce dentro de uma certeza.
A fé não era imposta. Ela simplesmente existia. Estava no jeito de falar, no jeito de agir, no modo como os problemas eram enfrentados. Quando algo dava errado, eles rezavam. Quando algo dava certo, agradeciam. Deus não era um recurso final. Era presença constante.
E eu absorvi isso sem questionar.
Desde cedo, eu gostava de ir à missa. Não porque era obrigado, mas porque me sentia… seguro. O padre, com sua voz firme e serena, parecia alguém que tinha todas as respostas. Alguém que entendia o mundo e, ainda assim, escolhia acreditar. Para mim, ele era uma espécie de herói silencioso. Não usava capa, não gritava ordens. Apenas falava… e as pessoas ouviam.
Eu queria ser como ele.
Enquanto outros meninos sonhavam em ser jogadores de futebol ou donos de empresas, eu sonhava em estar ali, naquele altar, vestindo batina, falando sobre esperança. Minhas mãos pequenas seguravam o folheto da missa como se fosse algo sagrado demais para cair.
Meus pais percebiam. Nunca riram. Nunca minimizaram.
— Se isso é um chamado, Gabriel — meu pai dizia —, Deus vai confirmar.
E confirmou.
Na adolescência, enquanto meu corpo crescia rápido demais — alto, largo, forte —, minha mente permanecia focada. Eu era disciplinado, estudioso, introspectivo. O espelho começou a refletir um homem que chamava atenção, mesmo sem tentar. Loiro, olhos claros, barba que crescia cheia e espessa antes mesmo da idade comum. Algumas meninas me olhavam diferente. Algumas mães comentavam. Eu fingia não perceber.
A fé funcionava como um escudo.
Ou talvez como uma venda.
Entrei no seminário convicto. Não houve dúvidas. Não houve rebeldia. Minha escolha parecia tão natural quanto respirar. Ali, entre paredes frias, orações repetidas e estudos intensos, eu me sentia no lugar certo. O silêncio era familiar. A rotina, confortável. A renúncia… necessária.
Aprendi a dominar desejos antes mesmo de nomeá-los.
Aprendi que o corpo é frágil, mas a alma precisa ser firme. Que o mundo oferece tentações, mas Deus oferece propósito. E eu abracei isso com força, com devoção, com tudo que eu tinha.
Fui ordenado padre jovem. Orgulho dos meus pais. Respeito da comunidade. Confiança dos fiéis.
Hoje, sou o padre Gabriel.
Alto demais para os confessionários apertados. Forte demais para a ideia que muitos têm de fragilidade espiritual. Carrego no corpo a disciplina e na alma a certeza… ou pelo menos carregava.
Porque foi numa tarde comum, numa igreja silenciosa, que ela entrou pela primeira vez.
Eu não vi seu rosto. Não vi seu corpo. Não vi seus olhos.
Eu só ouvi sua voz.
E naquele instante — sem entender por quê — senti algo que não sentia desde criança:
a sensação de que o silêncio estava prestes a ser quebrado.
E que Deus… talvez estivesse observando em absoluto silêncio...