Eu me sentia quente, com calor e acho que suava um pouco. O ar estava ligado, mas eu abri os olhos e vi o rosto do homem muito perto, os braços deles estavam pesados em volta de mim, eu estava prensada e encostada no corpo quente, de peito desnudo. Tentei me mexer, mas fiquei assustada quando ouvi outro ronco e o rapaz loiro dormia no chão, de barriga pra cima e braços abertos. Sai devagar, senti minha cabeça doendo e me sentei na cama, tentando entender o que foi que aconteceu.
Me recordei aos poucos de quando me sentei, ouvi o homem grande falar sobre ter me encontrado numa ilha e uma sucessão de coisas depois. Fui até o banheiro, pisoteei no chão molhado e suspirei quando notei que o carpete estava encharcado. Puxei a cortina e vi uma rachadura na banheira, o homem tinha trincado a porcelana grossa, onde a água vazava vagarosamente pelo trinco. Puxei o tampão, a água desceu e eu suspirei, porque eu não tinha dinheiro para uma banheira nova neste momento.
— Algum problema? — a voz grave do homem surgiu atrás de mim, mas dessa vez eu não me assustei.
— A menos que tenha alguns dólares debaixo da sua saia viking, não vai adiantar te explicar esse problema. — respondi desanimada.
— Devia tentar…
— Devia? — respondi olhando pra ele, um tanto irritada — Eu ainda não sei quem você é, e aquela história de ontem é um absurdo! No fim, você deve ir embora. Pega aquele garoto e sai. Não dá pra ficar brincando de fantasia, não tem essa de fé e amor! Aqui a gente trabalha, agradece quando surge um cara bom na sua vida e filhos é coisa de maluco. E, lobos? — eu estava mesmo estressada — Cara, tem noção dessa fantasia? Lobos?
— Porque não consegue acreditar? — insistiu.
— Porque é óbvio! — respondi estressada — A doutora Trand me avisou sobre alucinações causadas no processo pós trauma. Minha mãe colocava muitos filmes pra rodar enquanto eu estava apagada e eu acabei confundindo realidade com o que eu ouvia enquanto estava em coma. Eu acordei confusa e é só isso.
— Não é, e tem ciência disso.
— Não, eu não sei, Malekith! — gritei aos sete ventos — Já chega, eu estou rodada de prejuízo e a droga do seu amor fantasioso não vai resolver os meus problemas!
— Repita. — ordenou pegando o meu rosto, me prensou na parede e manteve-se sério — Conte-me como acabou de descobrir meu nome, se eu não o mencionei?
Eu travei, porque eu simplesmente sabia. Só sabia. Quando ele olhou para o vento que arrebentou a porta, eu tive de segurar o xixi que surgiu repentinamente com vontade de sair, quando ele rosnou grosso e suas feições ficaram absurdamente grotescas, mostrando traços animais. Lobos… Caramba, o homem vai virar um cachorro?
— Mãe! — gritou Zeus, surgindo entre a porta, olhando para o Viking que me segurava na parede — O que está acontecendo!?
— Sua mãe não se recorda, não é por que se esqueceu de nós. — ele me soltou e nós dois olhamos o viking furioso olhando pra porta tomando o espaço do rapaz — Toda vez que ela se recorda de algo, alguma coisa r**m acontece. Tem algo a impedindo de se recordar… — concluiu.
— Mas porquê? — questionou o rapaz.
— Esta é uma resposta que não possuo em meu conhecimento.
A lufada de vento veio com uma onda de ar quente, eu acho que teria sido tacada contra a parede se o garoto não tivesse se colocado atrás de mim. A força da onda arrebentou o concreto de lá de cima e caímos enquanto eu gritava de medo, chocando-me contra o chão em cima do rapaz. O garoto me segurou sem problema algum, me colocou ao seu lado e se levantou sem nenhum arranhão.
— Mãe, está tudo bem? — perguntou, enquanto eu confirmava, olhando pro buraco lá em cima e o pessoal nas ruas parando para nos olhar. Engoli em seco e vi um lobo n***o tão grande quanto o buraco que fizemos na parede. Ele quase caiu, mas logo se enfiou para dentro e sumiu das vistas de quem conseguisse olhar para cima. — Fique aqui. — ordenou o rapaz.
O loiro simplesmente pulou contra a parede, batia a mão contra o concreto e perfurava o material para conseguir escalar o lugar, repetindo o movimento até alcançar o buraco que fizemos e adentrar o acesso causado pela tragédia. Eu nem percebi a quantidade de cliques que tinha em minha volta, e a pessoa que veio ao meu alcance, me ajudando a permanecer de pé, era quem eu menos esperava.
Eu a chamo de doutora Trand, mas aquele lobo n***o deve chamar ela de mãe. Ela tem as mesmas características da mulher do meus sonhos, mas ela estaria morta de qualquer jeito, o que aumenta minha loucura.
— Você enviou minha alma pra cá. — justificou ela — Eu tomei todos os cuidados de manter suas memórias calmas, até que ele pudesse aparecer pra te levar de volta.
— O-o quê…? — perguntei confusa.
— Vem, eu vou te levar pra onde não irão te achar. Não temos muito tempo.
Eu estava no automático, não funcionava direito e olhava pro buraco silencioso enquanto a mulher basicamente me socava no passageiro do carro. Ela saiu em arrancada, m*l atravessou dois quarteirões e a frente do veículo foi amassada pela mesma mulher que tentou me ferir em outras vias.
— Mas o quê? — se esse capítulo for o da loucura, estava indo bem. Só piora…
A doutora Trend soltou o cinto, abriu o porta luvas e pegou um punhal. Ela saiu do carro e conseguiu alcançar a mulher no mesmo instante em que ela socou o para-brisa e eu arregacei a garganta gritando alto, mas as mãos dela não chegaram até mim. A psicóloga era uma tiazona, mas estava com tudo em cima. Furou a mulher, que não sentiu nada, levou um soco, mas revidou.
A turma do trânsito parou os carros, alguns saíram correndo, outros pegaram o celular e gravaram a briga entre as duas. Tentando me livrar daquela situação, soltei o cinto, abri a porta e olhei abismada pro lado oposto da rua, com um totó marrom grande demais para ser só um dog caramelo que corria atrás de carteiro ou entregador de pizza. Os olhos daquele bicho eram brancos, igualzinho aos da mulher.
— Que merda é essa? — soltei num fio de voz.
— Vá, eu te encontro em qualquer lugar que for! Vá! — ordenou a tia psicóloga e super maravilha.
Eu simplesmente saí correndo, deixei a moribunda gostosa e meio morta lutando com a doutora Trand enquanto via o cachorro dando suas primeiras patadas, quebrando alguns carros e as pessoas assustadas, gritando e correndo. A cena era uma fuga americana, tensão e medo, e eu sem saber pra onde ir.
Quando foi que a minha vida se revirou desse jeito? O que aconteceu com a merda do crepúsculo? Cachorros caramelos deviam ser secretos e vampiros deveriam ser vegetarianos! Mas isso não importava agora, o que importava é que eu ia bater no meu suposto marido e no suposto filho também, porque estava tudo na paz até esses dois aparecerem!
— Ahhhhh! — gritei com o ccú na mão quando fiz a cagada de olhar para trás e ver o doguinho gigante muito perto.
Eu caí, sei lá no que foi que tropecei, mas cai e rolei que nem merda pelo chão até bater na lataria de um carro aleatório. E quando abri os olhos, cansada e ralada, a cabeça do cachorro de olho branco estava rolando, parando pertinho de mim. Malekith estava gloriosamente com a espada em riste, seca, sem sangue enquanto o cachorro perdia as feições de animal e voltava a se parecer com um homem comum. Eu tapei a boca ao ver uma cabeça sem corpo tão perto e depois vi o vento transformar aquilo em poeira.
— Que merda é essa? — sussurrei embasbacada, enquanto via o viking fodão me estendo a mão, surgindo ao seu lado o rapaz loiro, me olhando preocupado. Não pensei duas vezes, eu aceitei sua mão, percebendo o quanto eu tremia quando fiquei de pé.
— Guardou a alma de minha Matriz… — murmurou o viking, preso em meus olhos enquanto eu estava perdidinha.
— Ela não sabe que fez isso. — A doutora Trand surgiu grandiosa, mas só eu olhei pra ela me perguntando quando eu ia desmaiar um pouco pra ter um descanso. Já o viking grandão, me olhava de um jeito forte e tenso.
— Tome sua fêmea em outro lugar, filhote. Vamos, precisamos sair daqui. — ordenou a mulher, me fazendo ficar com as bochechas coradas.
Tomar? O homem queria fazer tchaca tchaca numa situação dessas? Que bocceta ele tem na cabeça? A minha… Mas assim, naquela hora?
— A gente vai pra onde? — perguntei confusa, tentei dar um passo, mas fui levantada do chão sem aviso prévio e me agarrei na pilha de músculos que o fazia, olhando sério pra frente — Eu consigo andar. — Ele não falou nada, apenas seguiu as ordens da doutora que nos enfiou no carro e dirigiu o possante novinho, mas amassado, até sua casa.
Foi vergonhoso ficar espremida no colo do homem no banco de trás enquanto o meu “filho” teve que levar todo o banco para trás para caber suas pernas. A doutora Trand não estava nem aí que o carro dela foi pras “picas” , só mostrava a dentição branca em meio a pele n***a, do quanto estava feliz em ver o rapaz.
— Os Deuses me presentearam com esta visão. Tem os traços de seu avô. — contou feliz, enquanto o carro fumegava e atravessava o portão do casarão da mulher.
Eu evitava me mexer, porque o homem tinha o olhar sério e um negócio duro no meu traseiro. O carro estava balançando, roçando meu bumbum bem lá em cima, constrangendo minha pessoa. Aparentemente, todos estavam alheios a isso…
— Tá calor né… — comentei, com um sorriso fraco e constrangedor na cara.
— Muito. — respondeu sério, o que me fez engolir em seco e fingir que admirava a paisagem da janela.
Eu devia ter insistido na faculdade, feito psicologia e ingressado de cabeça na carreira. O lugar era imenso, rico, a casa parecia um agregado típico de novela e os impostos desse lugar deviam custar o olho da cara. Nós rodeamos um chafariz com cabeças de lobos em mármores, até que ela estacionou na frente de uma escadaria que dava acesso a uma porta grande. Imediatamente foi aberto e um casal de senhores se colocaram à prontidão, enquanto ela abria a porta do carro e a gente continuava espremido lá atrás. Ela era tão rica que eu esqueci o trem pontudo cutucando meu traseiro…
Ela abriu a porta de trás, viu a nossa situação e investiu num sorriso matreiro.
— Devo fechar a porta novamente?
— Sim. — ele respondeu.
— Não. — eu respondi, e ela riu.
— Vamos, se entendam depois. Devem estar famintos! O que comeram de decente até agora?
— Minha mãe usou magia para convocar comida. Num instante ela se comunicou com um aparelho capaz de prender almas e depois um servo servia uma excelente especiaria crocante e cremosa ao mesmo tempo. — contou Zeus, numa emoção profunda, como se comer pizza fosse um filme de ação. Ela nem ligou quando ele bateu a porta do carro e a mesma caiu.
— Oh, já conheceram o telefone. Realmente ele é mágico. Por isso você chamava tanto por ele quando acordou, não foi? — ela sorriu para mim, mas seu sorriso se desfez enquanto eu corava e ajeitava minhas roupas, evitando olhar pro meu suposto “marido” — Não se lembra disso também, não é?
— Se eu me lembro ou não, não tem como negar o que está acontecendo. E eu já não tenho mais coragem de voltar pra casa sozinha. — eu fui dar um passo em direção a casa da mulher, perdida numa situação que eu nem entendia, mas fui segurada pelo braço e impedida de caminhar. Eu olhei para cima e me deparei com seus profundos olhos dourados.
— Não está sozinha. O simples fato de aceitar algo que não entende, de novo, já é coragem o suficiente.
Ele falava de um jeito muito bonito, mas naquele momento não me fazia efeito algum. O clima só foi quebrado pela empolgação da doutora Trand, beijando seu filho na testa.
— Paciência, filhote. — pediu a mulher enquanto eu andava adiante, me desviando do toque do homem.