— Duas sodas, e dois hambúrgueres. — pediram, enquanto eu anotava o pedido na caderneta, me deparando com a imagem de Bart se aproximando, ficando próximo de meu ouvido e cochichando algo.
Eu guardei o objeto no bolso, fui até o balcão etiquetar o pedido e me dei com a frustração de Bart. Ele estava nervoso, o restaurante do senhor Adams estava movimentado e meu ex-namorado com certeza estava uma pilha. Não que eu não entendesse, mas eu sabia o verdadeiro motivo do estresse dele, minha recusa.
— O seguro não vai cobrir o estrago, tem noção de quanto aquilo vai me custar? — reclamou o homem se colocando na frente do computador.
— Não conseguiram encontrar aquele cara? — perguntei tentando não parecer tão curiosa, passando o pedido pra ele — Talvez…
— Você não viu o youtube? — Bart pegou a etiqueta que imprimiu no computador e o pregou no balcão atrás onde havia um bloco para recolher os pratos — Aquele cara viralizou na velocidade da luz, meu carro viralizou e o seguro simplesmente me falou que não pode cobrir sem uma ocorrência, já que a culpa não foi minha. Está estampado em todos os vídeos aquele cara saindo do meio da minha lataria e o seguro não vai cobrir!
— Você fez a ocorrência?
— Com que parte, Stella? — ele cruzou os braços, quando olhou para o canto do restaurante e viu que mais uma turma solicitava um novo pedido — Ninguém sabe quem é esse cara, nem eu.
— Tenta relaxar, você está mais estressado que eu… — contei lhe dando as costas, fui até a mesa, coletei mais alguns pedidos e voltei para buscar um prato pronto.
— Você tem que ligar pra sua mãe. — avisou Bart, me fazendo abrir bem os olhos e ter a atenção do rapaz que computava os pedidos — Ah, qual é? Você ficou mega assustada e saiu correndo! Eu fiquei preocupado e contei pra ela.
— Você era um super ex-namorado, até hoje de manhã. De lá pra cá, só está sendo um i****a.
— Não vamos discutir isso aqui…
— Não, não vamos. — o interrompi — Eu decido como vai ser a minha vida, Bart, não você. Você não ligou pra ela porque eu assustei, você ligou pra ela pra tentar me convencer a reatar um relacionamento que eu não quero. — ele se calou e respirou fundo como quem foi pego no flagrante — Você era um ex-namorado legal até hoje cedo.
Eu saí, disposta a fazer o meu serviço e tentar não me estressar mais com o Bart. Tinha um milhão de coisas na minha cabeça e eu não podia nem sonhar em contar pro meu ex-namorado que aquele cara, pra lá de estranho, esteve no meu apartamento. Imagina a pilha? Eu sei me dar com o Bart, só não sei se quero fazer isso agora. O fato é que aquele visitante estranho me causou sensações, lembranças, perguntas…
Loucura, né?
O cara simplesmente sumiu. Isso me fez marcar um retorno com a Doutora Trand, e quem sabe eu não consiga convencer a minha mãe a ir junto. Sabe, as coisas têm sido diferentes. Eu me lembro da minha vida antes de sofrer uma droga de acidente horrível, mas tem um apagão, cenas e sonhos entre o acidente e o momento que abri os olhos. É como se eu tivesse uma parte da minha vida que eu não conseguisse explicar, mas a doutora me explicou sobre traumas e sequelas. Eu voltei a trabalhar no meu antigo emprego, meus pais foram maravilhosos e meus irmãos esbanjaram felicidade, e tinha Bart. Ele é um cara legal, anda me pressionando ultimamente, mas ele sabe que não é assim que funciona. Fora isso, eu vivia constantemente com um vazio extremo, mas isso mudou com aquele estranho. De repente e sem explicação.
Tirei o avental depois de uma sucessão de pedidos, finalizei o meu dia, procurei pelos fundos do estabelecimento, entrei no depósito e fui até o armário. Usei minha chave e peguei minha bolsa, acionando o celular e clicando numa notificação. Bart tinha razão, aquele cara viralizou na velocidade da luz. Havia réplicas dele saindo do meio da lataria do carro, vídeos de youtubers analisando as imagens, alguns mostrando que era uma montagem e outros calculando até o peso da massa muscular do cara. Tinha alguns mais fanáticos dizendo que o super homem é um viking.
— Impressionante… — murmurei para mim mesma, até que me deparei com uma coisa mais além. O título na tela dizia “Da morte para um Viking” , o aplicativo de leitura me jogava pra uma página já com um bom número de visualizações e usavam a minha imagem e a do cara para formar um casal. Era uma história e nós éramos os personagens principais. — Tá de brincadeira? Essa foto está horrível! — passei um pouco mais adiante e vi a sinopse.
“Após sobreviver a um acidente de avião, Charlotte De Bashir jamais imaginou encontrar um super alienígena gostoso em sua outra vida. Ele veio do planeta Vikingolândia e estava disposto a destruir a terra, se não tivesse se apaixonado pela pobre e traumatizada Charlotte De Bashir.”
— Charlotte De Bashir? — me indignei — Que ridículo! Quem escreve isso tem os mesmos traumas de quem está escrevendo a minha vida e, poxa, Vikingolândia? Que falta de criatividade! Pobre e traumatizada… Ah qual é, não podiam ter parado na Vikingolândia?
Eles usaram uma imagem na qual eu olhava para trás, exatamente no momento em que aquele homem gritou por “fêmea”. A sensação me causou arrepios, mas eu tentei me desvincular daquilo, fechei as abas relacionadas ao cara e liguei pra minha mãe. Coloquei o aparelho no ouvido e segui em frente pra ir embora pelos fundos.
— Oi mãe, e aí, tudo bem?
— Stella, seu pai e eu estamos quebrados de preocupação. Aquele vídeo saiu nos jornais.
— É, Bart teve um prejuízo com aquilo, ele está uma pilha.
— E você está bem, minha filha?
— Eu estou sim, não foi a melhor sensação do mundo sentir uma batida, mas eu vou sobreviver.
— Oh, filha. Bart estava tão preocupado, você precisava ver o desespero dele para que a gente te ligasse e pudesse falar com você. Ele é um rapaz muito presente e…
— Sem essa mãe. — eu cortei ela, olhei pra rua vazia, o campo com as lixeiras e senti o frio se aproximando, respirei fundo e joguei a real — Eu me lembro muito bem da doutora Trand me dizendo que eu precisava viver um dia por vez, mas de repente a minha vida foi dobrada em duas etapas. Uma antes do acidente e outra depois. E todo mundo ao meu redor quer que eu volte a vida antes do acidente. Isso não é viver um dia por vez, mãe. Nem seguir em frente.
— Mas filha, Bart gosta tanto de você…
— Eu gostava da Lis e da Kate. Elas morreram, e eu tive que seguir em frente com isso. Porque meus pais não podem seguir em frente entendendo que eu não quero mais ficar com o Bart? — ela ficou em silêncio — Bart é um cara legal, mas eu não quero dormir com ele. Isso já está na hora de parar, ele teve um surto hoje.
— Oh, meu Deus! Ele machucou você?
— Não, ele não faria isso. — suspirei — Mas eu vou machucar se vocês ficarem insistindo num relacionamento que eu não quero. Não se fica com uma pessoa só porque ela é legal, mãe.
— Eu sinto muito filha… — eu senti a decepção em sua voz, mas ela entendeu.
— Não preocupa o pai, eu ligo mais tarde.
Desliguei o telefone, guardei ele no bolso da calça e abri minha bolsa pegando um casaco fino. Foi apenas o tempo de vestir o casaco que eu notei uma presença, levantei o rosto e senti minha cabeça doer com o raio de uma dor. Olhar para a imagem da mulher me trazia lembranças, dores, gritos, desespero…
Sem que eu tivesse forças, dobrei meus joelhos no chão, senti a dor gritar dentro de minha cabeça com imagens que eu não conseguia interpretar. Havia uma mulher no topo de um penhasco, ela segurava um bebê e por algum motivo eu gritava. Ela soltou esse bebê e eu senti a dor apertar minhas memórias de um jeito que quase me sufocaram, fazendo meu nariz sangrar e ver os pés da mulher se aproximar.
Quando levantei os olhos, respirando com extrema dificuldade, a mulher tinha o mesmo rosto que invadia minhas memórias, mas seus olhos estavam brancos como névoas e segurava uma espada em riste, com fúria em suas feições.
— Uma Deusa… — sussurrou a mulher estranha, de pele pálida, cabelos longos e negros. Em minhas memórias bonita, mas uma imagem fúnebre aqui. Quando ela levantou a espada, eu abaixei o rosto, fechei os olhos e achei que ia ter minha vida separada do meu corpo, mas tudo o que aconteceu foi um tilintar.
Quando olhei para cima, aquele mesmo homem estranho estava lá. Ele empunhou sua espada e parou o corte no meio do trajeto, curvou o golpe da mulher e a fez se afastar separando as lâminas. Por impulso dei um passo para trás, assisti o homem com olhos dourados se enfurecer com a mulher, instigar uma batalha e bater aço com aço várias vezes. A mulher era boa, mas parecia se empenhar demais para tentar revidar aos traços do homem, logo ele pegou o melhor contragolpe, enfiou a espada no peito da mulher e atravessou o corpo.
É claro que eu pensei em gritar com o que ele fez com tamanha facilidade, mas o que mais me impressionou foi a mulher respirar com dificuldade, se segurar na lâmina em seu peito e se esforçar para sair do corte do aço, se mantendo de pé, mas de um jeito fraco.
— Volte para os mortos, Yôla. — ordenou o homem olhando para os olhos brancos da criatura — Sua alma está condenada.
A mulher sorriu, macabra, mas sorriu. E virou poeira, tão logo o vento bateu desaparecendo com qualquer vestígio ou presença. Eu tratei de pegar um lenço, tentei estancar o sangramento que parava aos poucos do meu nariz e olhava para a cena sem entender nada. O homem estava lá, o nome Yôla me parecia familiar, mas eu só conseguia olhar pra espada limpa, como se não tivesse atravessado nada. O cara passou aquele metal enorme de um lado para o outro na mulher, assim, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
— Quem é aquela mulher? — perguntei mais para mim do que para ele — Aquilo não parecia… Humano. Como você apareceu aqui, assim, tipo, me salvando?
O cara estava de peito nu, com a saia viking e embainhando a espada. Ele tinha feições sérias, o cenho franzido e me olhava como se estivesse disposto a brigar, mas eu não fazia ideia do motivo. Ele ia abrir a boca, mas eu ouvi a voz de Bart.
Eu sabia que Bart ia surtar se o visse ali, então tentei pensar rápido. Empurrei o homem pegando-o no susto, notei que o gigante é para lá de pesado e o olhei com o meu melhor olhar suplicante.
— Entra aqui! — ele olhou para minha pressa abrindo o tampão do armazenamento de lixo e me viu apontar para dentro da sujeira — Anda logo, Bart não pode te ver!
— Como o líder mór de minha tribo, não irei fugir do inimigo que me espera. — o cara tinha um grave grosseiro na voz.
— Ah… — eu tentei entender o que ele queria dizer com aquilo, mas caguei pra situação — Beleza, agora entra aí. Bart não pode te ver, se ele te ver não vamos conseguir conversar e eu não quero te perder de vista, entendeu?
— Conversar? — franziu o cenho.
— Vai, merda! Entra logo!
Eu quase tive um treco quando fechei a tampa e Bart simplesmente apareceu, com sua melhor cara de decepcionado e colocando as mãos na cintura. Minha sorte é que eu já tinha limpado o nariz, mas acho que joguei o lenço sujo em cima do viking grandão escondido na lata de lixo.
— Fugindo pelos fundos? — eu peguei o celular do bolso e mostrei pra ele.
— Conversei com a minha mãe, queria um pouco de privacidade. Não achei que ia ser legal se me ouvisse ligar pra ela. — ele permaneceu com as mãos na cintura, mas concordou — Eu sinto muito Bart, mas a partir de agora eu estou numa nova fase pra seguir em frente. Isso significa que não pego mais carona com você e se apelar pros meus pais de novo, não seremos mais amigos.
— Stella, me desculpe tá… — eu concordei — Você não precisa fugir de mim pra fazer nada. Eu só fiquei estressado e ainda estou com a merda do seguro na minha cabeça.
— Bart, você tem umas quatro redes dessas espalhadas pelo Queens. Para de chorar. Eu já te falei que você é muito pão duro?
Para a minha sorte o clima estava menos tenso, eu me aproximei e ele me deu um abraço amigável.
— Certo, eu vou pagar. Se não, não vou conseguir ter um carro pra te dar carona, quando você aceitar.
— Sem caronas, acabei de falar.
— Sem caronas… — ele repetiu, beijou minha testa e fez sua melhor cara de decepção — Eu estou perdendo você, Stella.
— A gente supera. — sorri lindamente — Agora vai embora, eu quero ver você me dando espaço.
— Você não era tão rude… — resmungou fingindo estar ofendido.
— Vai embora. — pedi sorrindo de novo, até que ele começou a dar os primeiros passos, onde me enviou um beijinho quando manteve uma certa distância.
Eu gostava de Bart, mas eu tinha outras coisas para resolver no momento. Tipo o Viking grande que eu escondi na lata de lixo… E que saber, dane-se se é loucura! Uma mulher tentou separar a cabeça do meu corpo e aquele homem impediu isso, eu preciso entender o que está acontecendo.