Leilani

1152 Words
Leilani: Olho para o meu lado e Abasi ainda dorme. Ele tem a mesma mania de quando éramos pequenos, pega a orelha mais próxima de alguém, no caso, a minha. Abasi é um homem n***o de 1,90 m de altura e hoje pesa 127 kg, puro músculo. Mas nem sempre foi assim. Hoje ele tem 35 anos. Sorrio ao me lembrar que ele era uma lombriga, seco, fraco, com cabelos afros. Hoje em dia, o cabelinho está na régua, e ele gosta. A gente se conheceu no orfanato Maria Auxiliadora. Lá, era cada um por si, os cuidadores olhavam para o lado. A maioria das vezes, era uma questão de sobrevivência ser forte. A lei da selva, o forte come o fraco. E no meio disso, eu caí de paraquedas, como uma boneca recém-desmamada, como me chamavam. Tinha cinco anos recém-completados. Foi no meu aniversário de cinco anos que meu pai matou minha mãe com quinze facadas. A perícia constatou que foi surto psicótico devido a entorpecentes, e eu olhei em primeira fila como a cabeça da minha mãe foi parar no meio do meu bolo de aniversário, branco e rosa, com uma vela de estalinhos que não deu tempo de ascender, respiro fundo, tragando a bola de saliva que ainda se forma ao lembrar da cena. O cheiro a sangue ainda causa arrepios em mim. Não consigo consumir nada vermelho. Olho para cima, um ponto fixo, tentando borrar essa lembrança. Começo a pensar no Abasi, como ele me encontrou, e dou um meio sorriso.. Era a primeira noite na selva. Os dormitórios eram de meninas de faixas etárias variadas, e eu era uma das menores. Ainda me lembrava de ter visto, como no banho, uma das líderes, Rebeca, que tinha ameaçado outra menina de cortar o pescoço com uma tesoura que hoje sei que era roubada e escondida para uso pessoal, já que não podíamos ter essas coisas. Não era à toa que a Rebeca era forte e todos queriam estar com ela. Eu estava com tanto medo de fechar os olhos que comecei a contar uma história com os olhos fechados, segurando o lençol firme. Não sei de certeza em que parte da história o Abasi me achou. Ele tinha por costume ir visitar a Rebeca à noite. Hoje sei bem pra que, mas antes não fazia ideia, apesar dele ter na época 10 anos e Rebeca, 12. Ele era alto, mas magro por falta de comida. Mesmo ali, fui percebendo que os castigos, mas usados, eram a privação de alguma das quatro refeições ao dia, já que as assistentes sociais visitavam as instalações. Seguidos, eles não batiam na gente, mas tinham outros métodos disciplinares bastante questionáveis. A Rebeca protegia ele, e ele aproveitou. Claro, ele era medroso, não gostava de briga com os meninos, e a Rebeca já era corajosa e enfrentava todos. Esse dia, ele entrou pé por pé e escutou meu sussurro a história de um gnominho travesso que buscava sua maçã. Ele se sentou no chão a escutar eu falando sozinha. A Rebeca se aproximou, vendo que ele não ia até ela, e perguntou que diacho ele fazia. Eu calei enseguida e apertei os olhos. Ele percebeu, fingiu que tinha perdido algo, mas já estava indo, e ela voltou para sua cama no dormitório. Eram veliches. O Abasi se levantou calmamente, se assegurou da escada da beliche e falou baixinho, Quero ouvir o fim da história amanhã. Eu assenti com a cabeça ainda apertando os olhos e o lençol com minhas mãos, como se isso fosse me salvar, não sei por que, mas depois de saber que ele estava aí, eu consegui dormir. Os dias no orfanato eram longos e meticulosos. Eu tinha apenas cinco anos, não sabia nem atar meus cadarços. Quem me ensinou foi Abasi. Um dia, a Rebeca perguntou qual era a dele com a boneca nova, que ainda fedia a leite. Olhei com os olhos arregalados, ela me intimidava. Ele deu um sorriso para ela e falou que gostava das minhas histórias. Eu lembrava da irmã dele. A Rebeca olhou séria, com uma sobrancelha erguida, mas, tempos depois, ela percebeu que ele realmente me olhava como irmã, apesar da diferença de idade, pele e tudo. Ele me olhava como a irmã que tinha perdido. Rebeca passou a defender e tomar as minhas brigas. Eu era a menina mais desastrada; já cheguei a derramar oito copos de leite juntos, e eu juro que eu não sei até o dia de hoje como eu fiz tamanha façanha Causou-me um grande susto aquele dia. A refeições eram contadas e não se davam duas vezes. Imagina a fome apertando e a menina aqui fazendo besteira. A Rebeca me defendeu por sorte, mas não escapei do castigo dos nossos tutores. Até agora lembro da cara da velha, fumazando de raiva. Ela me deixou sem café da manhã por uma semana. O Abasi guardava a metade do pão dele para me dar. A Rebeca foi me insinando e instruindo. Aprendi a fazer armas duvidosas. Com sete anos, sabia pular de janelas altas sem me quebrar nada. Era de porte pequeno, passava pela bandeira do banheiro. Elas me usavam como mascote, pra ir pegar cigarros e outras coisas. O Abasi sempre tinha brigas feias com a Rebeca por me colocar em risco, mas no fundo eu aprendi a gostar da adrenalina. Com os anos, já não era mais a menina medrosa. Eu podia te furar com um lápis sem sentir remorso, preferia a tua dor à minha. Eu já formava parte da quadrilha apocalíptica. Era assim que a irmã Sofia nos chamava quando ia fazer voluntariado. Ela sempre levava balas coloridas para nós. Sorrio lembrando do sabor e que quase morri afogada por uma de sabor uva. Era tanta a empolgação que enfiei duas de uma só vez. Uma das meninas fez uma piada e eu engoli as duas sem querer. Comecei a passar m*l, já que ficaram presas na minha garganta. A sorte é que o Abasi sempre tomava conta de mim e, em seguida, passou os braços, fez primeiros socorros, fez pressão na boca do meu estômago e eu larguei a bala como em cena de filme. Na cara de uma menina, gargalhei lembrando... Tem um cara me olhando f**o e o Abasi, sério, me olhando, se acomodou no banco. -Abasi: Que foi, maluca? Vai acordar todos. Só lembrei da vez que eu cuspi a bala de uva na cara. -Abasi:Da Maria, lembrei. Tá pensando longe... -E estou falo, me ajeitando na cadeira, pegando um pacote de amendoim. -Abasi:Tu usava duas trancinhas douradas, lembra? Ele sorri. Não quero lembrar, era loira ainda. -Abasi:E tinha cara de anjinho. E olha só, agora a diaba com cabelo curto preto e franja. E ainda vem que não trocaste teus olhos azuis. -É realmente não mudei porque é o único lembrete da minha mãe, mas respeita meu cabelo curto estilo Chanel...
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