Gabriela narrando
Quando eu abri os olhos de novo, a primeira coisa que senti foi o cheiro do lugar. Não era perfume caro, não era o aroma limpo de casa. Era cheiro de produto barato, parede úmida e morte… e um toque de fumaça de cigarro vinda de algum canto dali.
Demorei alguns segundos pra entender que eu não estava mais onde desmaiei. Isso porque eu nem sabia exatamente onde era que eu estava.
Demorei mais ainda pra entender quem estava parado bem ali na minha frente. Na hora fiquei sem reação olhando nos olhos dele, era como se ele pudesse ver através da minha alma.
Morte.
O homem que mandava naquela favela inteira.
O nome que até bandido engolia seco pra pronunciar.
O único que, dizem, encarou uma tropa inteira da polícia de peito aberto e saiu vivo.
Eu só tinha visto ele pela televisão.
Por fotos.
Por histórias que todo mundo conta, mas ninguém sabe se são reais. Dizem que depois que eu comandante Amorim matou a família dele, ele ficou encarregado de cuidar de um sobrinho, e aí de quem ousasse entrar no caminho dele e do menino.
E agora… Morte estava sentado a menos de dois metros de mim, me observando como se eu fosse um enigma.
Ou um problema.
Meu coração disparou.
Eu tentei levantar, mas meu corpo ainda era só dor, febre e fraqueza.
— Tá fazendo o que aqui no meu morro? — a voz dele cortou o ar, seca, firme, sem paciência.
Não parecia pergunta. Era quase uma sentença.
Eu abri a boca para responder, mas a memória me atingiu como outra facada — irônico, considerando o que Walter tinha acabado de fazer comigo horas antes.
A conversa.
A maldita conversa que eu ouvi escondida, atrás da porta do escritório.
FLASHBACK ON
A voz do meu marido, Walter, rindo.
A voz do chefe dele, o comandante Amorim, debochando.
— Ninguém nunca vai descobrir que fui eu que mandei matar a mãe e o irmão daquele marginal.
— Queria mesmo era que ele tivesse no lugar pra eu mandar ele pro inferno junto.
— Mas a hora dele vai chegar.
E Walter riu.
Ele riu como se tivesse acabado de ouvir uma piada engraçada.
Aquele riso me persegue até hoje.
O chão sumiu sob meus pés naquele dia.
E agora essa lembrança queimava viva dentro de mim.
FLASHBACK OFF
Morte percebeu meu desespero. Ele inclinou o corpo pra frente, os olhos negros fixos nos meus, como se estivesse farejando mentira.
— E aí? Vai começar a falar ou eu vou ter que te obrigar a abrir o bico? — a calma dele era perigosa. — E eu garanto que você não vai gostar da segunda opção.
Eu precisei juntar coragem com desespero.
E alguma parte sombria dentro de mim — aquela que Walter criou — decidiu usar a única arma que eu tinha.
A verdade dele.
Contra ele.
— Eu… eu sou uma esposa traída — sussurrei.
Ele arqueou uma sobrancelha. Impaciente.
Eu continuei antes que ele me interrompesse:
— Meu marido… Walter… trabalha pro comandante Amorim. Não é só trabalho. Ele é cúmplice. É fiel. É braço direito. É capacho.
Os músculos do maxilar do Morte endureceram.
O nome Amorim era veneno na língua dele. Dava pra perceber.
— E eu tenho provas — falei tentando manter a voz firme — Tudo que consegui juntar durante 3 meses: documentos, gravações, fotos…
Olhei para ele que mantinha o olhar firme em mim.
— Continua — ele ordenou.
Respirei fundo.
Deixei minha voz quebrar na medida exata. Dor verdadeira misturada com uma intenção calculada.
— Eu… descobri que eles mataram a sua mãe e seu irmão.
O ar na sala mudou.
Ficou pesado.
Ficou perigoso.
Continuei antes que o medo me travasse:
— Eu ouvi eles confessando. Ouvi rindo… debochando… como se tirar a sua família tivesse sido só… serviço. — minhas mãos tremiam. — Walter ajudou. Ele entregou informações. Ele facilitou tudo. Ele estava lá no dia.
Morte ficou imóvel.
Completamente imóvel.
Só os olhos vibravam de ódio.
Era como olhar para o olho de um furacão.
— Por isso eu vim pra cá — falei, num fio de voz. — Não tenho mais ninguém. Fui traída. Quase morta. Deixada para morrer. E ouvi… ouvi que a pessoa que destruiu sua vida… faz parte da minha.
Ele levantou devagar.
Deu alguns passos até a janela.
Respirou fundo como quem segura um monstro dentro do peito.
Quando se virou, parecia maior.
Mais perigoso.
— E o que é que você ganha me contando toda essa p.orra? — ele perguntou, firme estreitando os olhos.
Aquele era um ponto sem volta.
— Eu quero que você me ajude a matar o homem que destruiu a minha vida…
— …e que destruiu a sua.
— Walter.
O silêncio que veio depois era denso, quase sólido.
E então…
Morte sorriu.
Não um sorriso bonito.
Não um sorriso feliz.
Um sorriso de guerra.
E eu soube que tinha acabado de incendiar tudo dentro dele.
Mas não acabou ali.
Ele deu um passo na minha direção.
Outro.
Até parar tão perto que eu conseguia sentir o calor da pele dele.
— Eu acho bom você não estar mentindo para mim, porque você não faz ideia do que eu sou capaz de fazer, e pode ter certeza que não vai chegar nem perto do que o Walter fez com você. — ele disse baixo, perigoso. — Porque se tiver, eu mesmo te arrasto ladeira abaixo e ninguém vai achar nem um fio sequer do seu cabelo.
Meu corpo inteiro gelou.
Mas minha ira queimou mais forte.
— Eu não tô mentindo — respondi, firme. — Walter é um monstro. Ele tentou me matar. Ele matou seu irmão. E sua mãe. E se você não fizer nada… ele vai fazer de novo. Com alguém. Com você. Com seu sobrinho.
Foi quando eu percebi.
A palavra “sobrinho” acendeu algo nele.
Ele voltou o rosto devagar, como se tivesse sido puxado por uma corda invisível.
— presta atenção na po.rra que você fala. — rosnou.
— Mas ele também está envolvido nessa me.rda toda — eu disparei. — É por ele que o Walter fez parte daquela operação. Eles queriam que você perdesse tudo. Inclusive o menino.
Foi a primeira vez que vi Morte perder a respiração.
Por um segundo, só um segundo, eu vi o homem por trás do monstro.
A dor.
O luto.
A culpa.
E foi isso que me salvou.