Capítulo 1
Rei narrando
Eu acendi um cigarro na varanda da cobertura de eu onde morava, no alto do Vidigal. Dali, eu via a cidade inteira aos meus pés o mar batendo nas pedras lá embaixo, os prédios brilhando à distância, as luzes da favela piscando como estrelas próximas. Eu era dono de tudo isso. Pelo menos, era o que todos diziam.
Na quebrada, eu tinha um nome: Rei. Não era só pelo dinheiro, nem pelo respeito que eu arrancava de quem cruzava meu caminho. Era pela maneira como eu andava, como falava, como olhava nos olhos sem desviar. Sou tipo de homem que não pede eu mando.
Mas nem sempre foi assim. Eu cresci na Rocinha, junto com os meus irmãos, cercado pelos meu pais Vespa, um traficante que fez história e hoje comanda todo o tráfico, minha mãe Natália, a mulher de olhar duro que nos mantinha os filhos na linha. Quando ainda éramos meninos, aprende duas coisas:
lealdade vale mais que ouro e traição não tem perdão.
Aos quinze, eu já corria nos becos; aos dezoito, era temido; aos vinte e cinco, agora o meu pai me deu o Vidigal. Um rei coroado não por herança, mas por sangue, suor e inteligência.
Essa noite, eu sentia um incômodo no ar aquele tipo de silêncio que não prometia paz, mas guerra. Eu trago o cigarro, observando lá embaixo os meninos empinando pipa, as caixas de som tocando funk, os olhares desconfiados nas esquinas.
— Rei… — A voz de Bruno, conhecido como Zoio, meu sub soou atrás de me. – Tem uma mulher nova procurando casa na comunidade. Estranha. Veio sozinha. Não quer confusão, mas… não sei, tem algo nela, que grita perigo. Quer que eu dê um jeito?
Eu solto a fumaça devagar, um meio sorriso nos lábios.
— Não. Deixa eu ver quem é.
Eu apago o cigarro na parede, pego a camisa jogada na cadeira e passo pelos becos como quem flutua, os meus olhos atentos, os cumprimentos surgindo de todos os lados. O Rei estava na rua, e todo mundo sabia.
No meio do caminho, eu a vi, uma moça. Rosto bonito, olhar perdido, mochila nas costas. Sozinha, em meio a um mar de histórias que ela não fazia ideia de como sobreviver.
Eu paro por um instante, estudando-a. Algo naquele jeito desconcertado mexeu comigo e eu não era homem de se abalar fácil.
— “Bem-vinda ao meu reino, princesa.” — eu penso, antes de dar o primeiro passo na direção dela.
Eu desci o beco, os meus olhos atentos, mãos no bolso, sorriso discreto no rosto. Eu parou a uns passos da mina, observando o jeito como ela franzia a testa para um o papel amassado nas mãos. Mochila surrada, jeans simples, um r**o de cavalo desajeitado. Perdida. Totalmente fora do lugar.
— Tá perdida, princesa? — a minha voz de soou baixa, arrastada, com aquele tom seguro de quem já sabe a resposta.
Ela se viro bruscamente, surpresa. O seu olhar veio direto pros meus olhos, mas logo depois deslizo para os homens atrás de me na barreira, alguns sentados nos muros, outros em pé, todos armados, rindo, fumando, mexendo no celular.
— E-eu… eu tô procurando uma casa aqui. — Ela falou, quase num reflexo nervoso. — Me disseram que era por aqui…
Um sorriso preguiçoso surgiu nos meu lábios. Eu dou um passo à frente, as mãos ainda no bolso.
— O Dono do Morro tá bem na sua frente, gata. — Eu inclino levemente a cabeça, os olhos brilhando com diversão. — Bem-vinda.
Por um segundo, ela congelo. O seu olhar correu pelas armas, pelo som abafado do funk ao fundo, pelas motos encostadas, pelos meninos que pareciam homens demais pra idade que tinham.
Eu noto a tensão e chego um pouco mais perto, sem invadir o espaço dela, mas perto o bastante pra ela sentir o meu perfume — madeira, tabaco e um toque metálico, como pólvora.
— Relaxa. — Eu ergo as mãos num gesto quase brincalhão. — A gente não morde. Só quando pedem.
Ela engoliu em seco, tentando recobrar a voz.
— Eu… eu só quero alugar uma casa. Não quero problemas.
O meu sorriso se amplio, lento, perigoso.
— Aqui… — ele olhou pra ela. — Problema é o que nunca falta. A questão é: você sabe lidar com ele?
Eu solto uma risada baixa, balançando a cabeça enquanto olhava de cima abaixo para ela. Ela claramente não fazia ideia de onde estava se metendo. A maioria já teria dado meia-volta ao ver um fuzil encostado no muro. Mas não lá estava ela, com as mãos trêmulas e o queixo erguido.
— Qual teu nome mesmo? — eu pergunto.
— Rafaela. — Ela engoliu em seco. — Rafaela Martins.
— Tá, Rafaela Martins… — Eu dou uma piscadela. — Tu deu sorte de ter esbarrado em mim.
Eu Viro de lado, estalo os dedos para um garoto magrelo encostado no muro.
— Menor, chama o Neguinho lá. Fala que eu quero a casinha da dona Marta pra hoje. Mobília e tudo. – Volto o meus olhar pra Rafaela. — Você gosta de vista pro mar ou prefere ficar mais no miolo?
Eu pisco, confusa.
— Espera… você vai me ajudar?
Eu abro um sorriso de canto, quase divertido.
— Digamos que eu gosto de saber quem entra no meu território. E não sou monstro, né? Todo mundo precisa de um teto. — Faço um gesto largo com o braço, indicando o morro inteiro. — Além disso, Rafaela, aqui eu resolvo as coisas. Rápido.
Antes que eu pudesse responder, um rapaz baixinho e sorridente apareceu trotando ladeira abaixo.
— Rei! Fala, chefe.
— Neguinho, leva ela lá na casa da Marta. Quero limpa, pronta, geladeira funcionando, cama feita. Hoje. — viro pra Rafaela, arqueando uma sobrancelha. — Você confia?
Ela hesito por um momento.
— Acho que eu não tenho muita escolha, né? — murmuro ela, quase sorrindo.
— É… não tem mesmo. — Eu dou um passo pra trás, como se encerrasse o assunto. — Vai lá, princesa. Depois a gente conversa.
Enquanto Rafaela seguia com Neguinho, com a rapidez, eu acendi outro cigarro e fico observando.
Eu estava encostado no batente da casa da moradora nova, braços cruzados, cigarro pendendo dos lábios, o meu olhar brincalhão e, ao mesmo tempo, afiado.
— Tá se ajeitando, princesa? — Eu dei uma tragada lenta, soprando a fumaça pro lado. — Ou já tá pensando em fugir.
Ela cruzo os braços, tentando manter a postura.
— A casa é ótima, obrigada. E não, não tô pensando em fugir. Pelo menos não ainda.
Eu solto uma risada baixa, jogando o cigarro no chão e esmagando com a ponta do tênis.
— Bom saber. — Eu dou meio passo à frente, invadindo só o suficiente do espaço dela pra fazê-la sentir o cheiro de novo — amadeirado, com um toque de pólvora. — Mas olha só, Rafaela… aqui não é Ipanema, nem Copacabana. Aqui a gente nota quando aparece alguém novo. E eu… — eu tocou de leve no meu próprio peito — …sou o primeiro a notar.
— Percebi. — Ela sorriu de canto, nervosa. — Você sempre aparece assim?
— Só quando acho interessante. — Eu ergo uma sobrancelha. — E você tem algo interessante, não sei o quê ainda.
Ela a sentiu o seu rosto vermelho, mas manteve o olhar firme.
— Talvez você devesse perguntar, ao invés de só observar.
Por um instante, os meu olhos brilharam com um interesse quase predador. Eu abro um sorriso torto.
— Cuidado, princesa. Aqui no morro, pergunta demais faz a gente
descobrir coisa que não quer. — Eu dou meia-volta, os ombros relaxados.
— Mas fica tranquila. Eu gosto de mistério.
Antes de ir, paro e olho por cima do ombro:
— Vou passar aqui amanhã. Te levo pra conhecer o morro direito. Não aceita convite de ninguém, entendeu? Só o meu.
Ela fecho a porta devagar, de fora, eu ainda ouvia a voz dela falando alguma coisa.