Rafaela narrando
Eu não queria acreditar no que meus olhos viam. As mensagens... as fotos... tudo ali, estampado na tela do meu celular como um soco no meu estômago. Joel e Júlia. Meu ex-noivo e minha prima. E ex-melhor amiga. Duplamente traída. A risada abafada que vinha do quarto ao lado só confirmava o que eu já sabia. Eles não estavam mais nem tentando esconder.
Eu respiro fundo, lutando para não desabar ali mesmo, no meio da sala do apartamento que dividia com Júlia. O meu coração disparado, os meus olhos ardendo, mas a fúria era ainda maior que a dor. Com as mãos trêmulas, jogo algumas roupas numa mochila, agarro a chave e saiu batendo a porta atrás de mim.
A noite no Rio estava abafada, como se o mundo refletisse o caos dentro de mim. Eu desci os degraus do prédio sem olhar para trás, o meu celular vibrando insistentemente no bolso Joel, Júlia, ambos implorando para dar explicações que eu não queria. Que se danassem.
Sem pensar duas vezes, eu chamei um mototáxi e pedir para subir o Vidigal. Não sabia o que buscava lá em cima, só sabia que precisava se afastar daquelas mentiras sufocantes.
— Você tem certeza, gata? — pergunto o motoqueiro, lançando um olhar rápido por cima do ombro.
— Tenho — respondi firme, segurando a cintura dele com força. — Sobe.
O vento bateu forte no meu rosto enquanto a moto seguia rumo ao morro. Antes de chegar no morro a moto parou e falou que seguiria até ali. De longe eu vir vários homens armados segurando armas. Caminhei ate eles ate que um deles falo.
— Tá procurando alguém? — perguntou um rapaz encostado num Murro, o olhar atento ao meu corpo, agora suado e com a camiseta colada na pele.
— Tô procurando uma casa — respondi, encarando o desconhecido sem baixar os olhos. — E quero começar de novo. Aqui.
Ele abriu um sorriso torto, quase desafiador.
— Aqui no morro? Sozinha? Tem coragem mesmo, hein...
Rafaela solto um riso amargo, cruzando os braços, sentindo uma força nascer no meu peito que eu nem sabia que tinha.
— Depois da merda que eu vivi hoje? Pode apostar que tenho.
Ele se afasto da parede, os seus olhos deslizando lentamente sobre mim, me avaliando. O cheiro de perigo era inebriante, mas eu não recuo.
— Fica aqui. Vou falar com o patrão, ele que decide se tu ficas.
Eu respiro fundo, dou um passo à frente, e encosto no murro. O passado tinha ficado lá embaixo, enterrado com as mentiras. No alto do morro, começava eu começava algo novo e eu estava pronta para tudo.
O meu coração ainda tava acelerado, mas agora por outro motivo. Não demoro muito para um homem alto, moreno, olhar cortante. O tipo de homem que não precisava dizer muito para ser respeitado.
Falam muito dele que ele é perigoso, frio, que manda e desmanda. Mas quando nossos olhares se cruzaram, eu vi algo além da fama.
Ele chegou perto, com aquele jeito dele, cheio de presença, e soltou umas palavras que, na hora, eu nem sabia direito como responder. Fiquei meio sem chão, meio desconfiada, porque, naquele mundo, ninguém faz nada sem querer algo em troca.
Mas, para minha surpresa, ele não pediu nada. Só… fez.
— Neguinho — Rei chamo, sem desviar o olhar. — Leva ela lá na casinha da Dona Cida. Tá vazia desde que ela desceu pro asfalto.
— Pode deixar, chefe.
O tal Neguinho, um cara magro, de sorriso fácil e jeito ligeiro, fez um gesto para eu segui-lo. Eu apenas assenti, sentindo a minha barriga gelar de novo enquanto caminhava atrás dele pelas ruelas apertadas.
Depois de alguns minutos, Neguinho paro diante de uma casa simples, com paredes descascadas e uma porta de madeira já meio gasta.
— É aqui, gata. Não é lá essas coisas, mas tem tudo o que cê precisa. Cama, fogão, banheiro funcionando. Qualquer coisa, me chama — disse, estalando a língua e dando aquele sorriso maroto. — Bem-vinda ao Vidigal.
Eu entro devagar, o cheiro de mofo misturado ao da maresia invadindo minhas narinas. A casa era pequena: uma sala com um sofá velho, um quarto com uma cama de solteiro e uma cozinha apertada. Mas tinha uma janela grande com vista para a imensidão da cidade lá embaixo, as luzes brilhando como se fossem outro universo.
Eu largo a mochila no chão, respiro fundo e se encosto na parede. A solidão bateu forte por um segundo, mas logo veio aquela sensação estranha... de liberdade.
Eu abri a janela e deixo o vento da noite bagunçar meus cabelos. O silêncio do morro não era exatamente paz, mas era real. Era cru. E, pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu que estava exatamente onde deveria estar.
— Que venha o próximo capítulo — murmuro para mim mesma, os olhos fixos nas luzes lá embaixo, enquanto uma sirene distante cortava a noite.
O Vidigal seria o meu novo lar. E eu estava pronta para encarar tudo.
O meu estômago já reclamava alto. Depois de tudo o que tinha vivido naquele dia, comer era o mínimo que eu merecia. Pego a bolsa, ajeito o cabelo rápido no espelho quebrado da sala e saiu porta afora, descendo as vielas estreitas e iluminadas por poucos postes de luz.
O morro parecia outra cidade à noite: crianças ainda brincavam nas esquinas, rádios tocavam funk em volume alto, e o cheiro de churrasquinho misturado com fumaça pairava no ar.
Eu estava tão distraída procurando algo aberto que não vejo quando esbarro numa garota que vinha apressada na direção contrária.
— Ai, desculpa! — eu se apresso a dizer, segurando a garota pelo braço para evitar que ela caísse.
— Tá de boa! — respondeu a menina, sorrindo simpática, os olhos vivos e curiosos. — Tá perdida, é?
Eu riu, meio sem graça. — Na verdade, tô procurando algum carrinho de lanche… ou uma lanchonete. Sabe onde tem?
A menina cruzou os braços e me olho de cima a baixo, me avaliando rápido.
— É nova aqui, né? Nunca te vi antes.
— Cheguei hoje — respondi, meio defensiva, mas a outra garota só sorriu mais largo.
— Eu sabia! Eu sou a Karina. Bora, vou te levar ali na Lanchonete do Juca. É a melhor daqui. Cê vai curtir.
Antes que eu pudesse responder, Karina já estava me puxando pela viela com a i********e típica de quem cresce no morro.
— E aí, qual teu nome? — ela pergunto enquanto caminhavamos lado a lado.
— Rafaela.
— Prazer, Rafaela. Olha, aqui no Vidigal é assim mesmo, tá? Todo mundo meio família, mas também tem que ficar esperta. Se precisar de qualquer coisa, me chama. Eu moro logo ali em cima — disse, apontando para uma casa colorida com vasos de plantas pendurados na varanda.
Em poucos minutos, chegamos à lanchonete. Era simples, mas movimentada: algumas mesas de plástico na calçada, gente rindo alto, e o cheiro de hambúrguer e batata frita me deixando ainda mais faminta.
— Ó, ali é o Juca — Karina apontou para o homem atrás do balcão, gorducho e sorridente. — Ele faz um xis tudo que é tiro certo.
— Valeu mesmo por me trazer, Karina — agradeço, sentindo pela primeira vez que, talvez, começar do zero ali não fosse tão impossível.
— Nada, mulher! Depois me conta o que achou do lanche. Vou ali rapidinho, mas a gente se tromba de novo — Karina pisco e saiu andando com aquele jeito leve e confiante.
Eu se sento numa das mesas e olho ao redor. A vida pulsava ali de um jeito intenso, verdadeiro. E eu sabia: estava só começando a descobrir os segredos do Vidigal.
Já estava devorando o lanche quando Karina volto, trazendo mais uma garota com ela, de sorriso fácil e energia contagiante.
— Rafa, essa aqui é a Dandara. Gente boa demais — ela apresento.
— Prazer, Rafaela — disse, sorrindo enquanto limpava a mão engordurada no guardanapo.
— O prazer é meu! — respondeu animada, puxando uma cadeira e se sentando. — E aí, tá se adaptando?
— Tentando, né? — dou uma risada curta, cheguei hoje aqui. — Mas tô curtindo até agora.
Estavamos trocando mais algumas palavras quando, de repente, alguém esbarrou forte em me, derrubando o meu copo de refrigerante em cima da mesa.
— Pô, olha onde cê fica, garota! — reclamo uma voz estridente. — Não é estátua pra ficar plantada no meio do caminho, não.
Eu se viro rápido, encarando a mulher à minha frente: alta, de short justo e olhar afiado. O tom era provocador, e a energia carregada de afronta.
— Tu tá maluca, é? — respondi na hora, se levantando devagar. — Quem esbarrou aqui foi você, não eu.
O clima na lanchonete mudou instantaneamente. As conversas diminuíram, e algumas pessoas começaram a olhar discretamente para a confusão que se armava.
— Ihhh, já chegou achando que manda, né? — a garota retrucou, cruzando os braços, o olhar desafiador. — Tá achando que aqui é o quê?
Antes que Rafaela pudesse responder, Karina levanto rápido, se colocando entre as duas.
— Daniele, dá um tempo, vai. Quem começou a confusão foi tu. Para com isso.
Daniele soltou uma risada debochada, olhando de Karina para Rafaela.
— Só tô falando a real. Aqui não é zona livre, não.
— E ninguém tá dizendo que é — Karina rebateu firme. — Deixa a menina em paz, Daniele.
Daniele lançou mais um olhar atravessado para Rafaela, como quem marcava território, e então deu de ombros.
— Tanto faz. Mas fica esperta.
E saiu andando, rebolando com arrogância, enquanto os olhares ainda seguiam a cena.
Eu respiro fundo, sentindo o sangue ferver nas veias.
— Que garota doida — murmuro, voltando a sentar, as mãos tremendo levemente de raiva.
Karina coloco a mão no meu ombro dela, em um gesto tranquilizador.
— Não esquenta, Rafa. A Daniele adora arrumar confusão, ainda mais com quem é nova aqui. Mas a maioria não é assim, não. Relaxa que você vai se ajeitar.
Rafaela solto o ar devagar, olhando para o copo derramado na mesa.
— Espero mesmo, porque eu não tô com paciência pra muita coisa não.
Karina riu leve.
— Vai por mim, aqui tem confusão… mas também tem muita coisa boa. E você vai descobrir isso logo, logo.
Eu olho para a noite lá fora, sentindo aquela adrenalina ainda queimando dentro do peito. Era só o começo, e eu já sabia: o Vidigal ia me colocar à prova todos os dias.