O avião já estava prestes a decolar, e eu encarava o visor do meu celular pela quinta vez naquela manhã, onde a última mensagem do meu pai ainda me queimava os olhos:
“Você vai ficar aqui em casa. É definitivo. É o mínimo que espero de você.”
Casa dele. Não uma suíte de hotel, não um apartamento temporário em um dos prédios que ele mesmo construiu ao longo da carreira. Casa. Com ele. E com ela.
Suspirei fundo, tentando ignorar a tensão que crescia no meu maxilar toda vez que aquele nome passava pela minha cabeça: Isadora. Eu ainda nem tinha visto a mulher, mas só de pensar que essa menina – porque é isso que ela era – ia dividir o teto comigo, me causava um certo asco. A princípio, achei que meu pai estava apenas em mais uma de suas aventuras patéticas. Mas agora… ele estava falando em casamento. Em dois meses. E depois disso, iria sumir com ela por um ano. Um ano sabático, como ele chamou. Um ano inteiro pra curtir a juventude dela com o dinheiro que, sinceramente, nem era só dele.
Dei uma olhada ao redor da primeira classe. Gente rica, cheirosa, fingindo que não tá todo mundo de olho um no outro. As aeromoças passando com aquele sorriso mecânico e uma bandeja de champanhe pra quem quisesse brindar o céu. Peguei uma taça mais por impulso do que por vontade, e encostei a cabeça na janela.
Estava voltando pra casa. Mas será que ainda era minha casa?
Desde que minha mãe morreu, tudo se desfez numa velocidade que eu nem consegui acompanhar. Ela era o centro. O norte. A voz sensata entre os exageros do meu pai e os meus próprios impulsos. Quando ela se foi, foi como se alguém tivesse desligado a luz da nossa família. Eu saí do país sem nem olhar pra trás. Com raiva. Com dor. E com nojo das decisões do meu pai. Ele, por sua vez, mergulhou em festas, mulheres, viagens e luxos que nem pareciam fazer sentido. Como se estivesse tentando enterrar a dor com garrafas de uísque caro e sorrisos falsos.
E agora… agora ele tinha encontrado uma substituta. Tão jovem quanto qualquer garota que eu via nos corredores da universidade onde cursei Administração, mas com a sorte de ter fisgado um viúvo bilionário disposto a refazer a vida. Só que o que me irritava não era o casamento em si. Eu já tinha me acostumado com a ideia de que meu pai nunca mais seria o mesmo. Mas me obrigar a viver com os dois? Sob o mesmo teto? Como se fôssemos uma família de comercial de margarina? Era pedir demais.
Mas eu não tive escolha.
No último telefonema, ele foi direto como sempre:
“Enzo, já deixei claro. Você vai ficar aqui. Não adianta discutir. A casa tem espaço, e é onde vou te colocar a par de tudo antes da minha viagem. Não vou confiar em ninguém que não seja meu filho pra cuidar do que é meu… e, em breve, o que será dela e seu também. Então se recomponha, engula esse orgulho i****a e me obedeça.”
Obedecer. Eu ri alto quando ouvi isso, como se ainda tivesse dez anos e ele fosse meu herói inquestionável. Mas respirei fundo e aceitei. Não pelos motivos que ele pensava, mas porque, de alguma forma, eu sabia que precisava encarar esse retorno. Fechar algumas feridas. E talvez abrir outras.
O avião decolou, e eu deixei a cabeça tombar pro lado. As horas seguintes foram uma mistura de cochilos picados, sonhos com rostos que eu não via há anos, e o som abafado do motor me levando cada vez mais perto de uma realidade que eu não queria reviver.
Desembarquei já com o sol a pino, o calor úmido grudando na pele e me lembrando de como o clima daqui era sufocante. Como tudo aqui era. Um motorista já me esperava com uma plaquinha com meu nome completo: Enzo Ricardo Morelli. E por mais que eu preferisse pegar um táxi e ir direto pra um hotel qualquer, eu sabia que estava sendo vigiado.
Entrei no carro em silêncio. O motorista tentou puxar papo, mas eu não estava no clima. O trajeto até a mansão do meu pai parecia mais longo do que nunca. Cada esquina da cidade me lembrava alguma coisa — um lugar onde almocei com a minha mãe, o restaurante onde vi meu pai com outra mulher pela primeira vez, ainda antes da morte dela. As memórias vinham como tapas, me tirando o ar aos poucos.
Antes de ir direto pra casa, pedi que o motorista me deixasse no prédio do meu antigo escritório. Eu precisava ver como estavam as coisas ali, ou talvez só precisava de uma desculpa pra adiar o inevitável.
Desci, ajeitei o paletó e caminhei lentamente pela recepção do edifício empresarial Morelli & Filhos, que ironicamente só tinha um filho e nunca foi exatamente “familiar”. As recepcionistas me reconheceram de imediato, algumas ficaram nervosas, outras sorriram exageradamente. Cumprimentei de forma educada, mas sem me estender. Subi até a sala da diretoria e encontrei alguns rostos conhecidos, outros nem tanto. Nenhum deles parecia particularmente empolgado com meu retorno, e isso só reforçava a impressão de que eu era mais um estranho agora.
Passei algumas horas ali, me atualizando, lendo relatórios, tentando lembrar nomes. Estava tudo em ordem. Eficiência fria e impessoal, como meu pai sempre gostou.
Por volta das seis da tarde, finalmente resolvi aceitar meu destino e pedi ao motorista que me levasse pra casa. Minha… nova casa? Nem sei como chamar aquele lugar. Não era mais o lar onde cresci, onde minha mãe cantava na cozinha, nem onde eu corria pelos corredores com os pés descalços. Era um outro espaço agora, recheado de móveis de design moderno, provavelmente escolhidos por uma mulher jovem que tentava impressionar um homem velho.
No caminho, meu celular vibrou. Era uma mensagem de voz do meu pai:
“Chego amanhã no fim do dia. Isadora está em casa, ela vai te receber. Quero que vocês se conheçam logo, afinal, vão conviver por um bom tempo. Seja educado. E pelo amor de Deus, não me envergonhe.”
A vontade de responder com um palavrão foi grande, mas segurei. Respirei fundo e encarei a cidade pela janela.
O carro entrou na rua principal do condomínio fechado, os portões se abriram como se dessem as boas-vindas ao herdeiro pródigo. Quando a mansão surgiu na curva, toda iluminada, com aquele jardim impecável que mais parecia cenário de novela, senti o estômago revirar.
Mas eu não entrei.
Não ainda.
Mandei o motorista dar meia-volta. Pedi pra ele me levar até um restaurante ali perto, um lugar discreto onde eu costumava ir com minha mãe. Pedi uma mesa no fundo, pedi um vinho, e fiquei ali por horas, encarando a taça, lembrando de tudo que me trouxe até aqui.
A verdade é que eu não estava pronto pra ver Isadora.
Não ainda.