No dia seguinte à ligação do meu pai, acordei com aquela estranha sensação de ressaca — não de álcool, mas de pensamentos.
Passei a madrugada acordado, girando como um maldito ventilador de ansiedade. E, por mais que o sol estivesse alto lá fora, meu humor continuava enterrado em algum canto sombrio do meu cérebro.
A primeira coisa que fiz foi olhar o celular. Nenhuma mensagem do meu pai — o que era ótimo. Só alguns e-mails do trabalho, notificações de notícias e uma única mensagem de uma mulher que fazia parte da minha vida há mais tempo do que eu gostaria de admitir.
Lara Montalban.
O nome apareceu na tela como um lembrete do que eu estava prestes a deixar pra trás — ou talvez só pausar, dependendo do ponto de vista. Abri a mensagem:
“Hoje à noite, às 20h. No meu lugar. Quero ver essa sua cara de poucos amigos antes que você vá embora.”
Suspirei.
Lara era... complicada.
Nos conhecemos há dois anos, em um evento corporativo em Genebra. Ela representava uma multinacional suíça com a qual estávamos negociando parceria e, desde o primeiro olhar, ficou claro que o jogo ali ia muito além dos contratos.
Era o tipo de mulher que dominava qualquer sala. Alta, cabelos negros como pecado, pele dourada, lábios bem desenhados e um par de olhos âmbar que podiam tanto te devorar quanto te ignorar por completo. Inteligente, sarcástica, letal. Se eu fosse o lobo mau, ela era o espelho do bosque que me fazia tropeçar.
Começamos com flertes sutis, passamos para noites secretas em hotéis cinco estrelas e, sem perceber, criamos uma rotina torta. Não éramos um casal. Mas também não éramos só amantes. Havia algo ali — talvez admiração mútua, talvez só conveniência, ou talvez aquela ilusão que duas pessoas bem resolvidas criam pra fingir que estão no controle.
Mas o fato é: eu gostava dela. E sabia que ela gostava de mim.
Às vezes, até demais.
Tomei banho, vesti uma camisa preta ajustada e jeans escuros, finalizei com meu relógio preferido — presente da minha mãe, que eu só usava em ocasiões que exigiam mais do que presença física — e fui até o apartamento de Lara. Ela morava no bairro mais elegante de Lisboa, num prédio espelhado com vista para o Tejo. Sempre disse que não aceitava viver onde “a vista fosse feia”.
A portaria já me conhecia. Subi direto, sem ser anunciado.
A porta estava entreaberta, como sempre que ela me esperava. Entrei sem bater e fui recebido pelo som suave de jazz francês e o cheiro inconfundível do perfume dela — doce, amadeirado, envolvente.
Lara estava sentada no sofá de linho branco, uma taça de vinho na mão e um vestido justo verde-esmeralda que abraçava cada curva como se tivesse sido costurado em sua pele. As pernas cruzadas, o salto pendendo dos dedos, a expressão... indecifrável.
— Chegou cedo — ela disse, sem tirar os olhos de mim. — Achei que ia me fazer esperar. Gosta de um drama.
— Pensei em te dar esse prazer — respondi, me aproximando —, mas achei melhor não abusar. Hoje você parece armada até os dentes.
Ela sorriu de canto, aquele sorrisinho que ela dava quando queria disfarçar um incômodo real.
— Então é verdade? Você vai embora?
Sentei ao lado dela, mantendo uma distância que ela rapidamente diminuiu ao girar o corpo na minha direção.
— É. Meu pai decidiu casar. Quer tirar um ano sabático pra brincar de lua de mel e me enfiar no lugar dele nas empresas do Brasil.
— Que generoso — ela ironizou, levando a taça aos lábios. — Vai mesmo aceitar isso?
— Temporariamente. O império precisa de alguém com cérebro no comando.
Ela riu, mas não com gosto.
— E quando vai?
— Em duas semanas. Ou menos.
Lara ficou em silêncio por um momento. Depois, se levantou, caminhando até a estante e pegando uma garrafa nova de vinho. Serviu-se com calma, o som do líquido preenchendo a sala. Eu a observava — a elegância nos gestos, a firmeza no olhar, o controle em cada passo. Tudo nela era pensado. Estudado.
— Pensei que... talvez você quisesse que eu fosse com você — ela disse, de costas pra mim, mas com a voz quase vulnerável.
Fiquei quieto por um segundo.
Essa era a parte complicada.
Eu gostava da presença dela. Do sexo, das conversas ácidas, da parceria. Mas amar? Amar mesmo? Aquele tipo de amor que consome, que bagunça, que quebra e reconstrói? Eu não tinha certeza. E Lara… bem, ela nunca pediu certezas. Até agora.
— Não achei que você quisesse ir — falei, me levantando. — Tem seus negócios aqui. Sua empresa, sua vida.
Ela se virou, apoiando-se na bancada da cozinha. Estava com os olhos levemente apertados, avaliando cada palavra minha como se estivesse decidindo se ia me odiar ou não.
— Eu poderia organizar as coisas. Dar um jeito. Mas acho que... essa resposta diz tudo, não?
Me aproximei dela devagar. Parei à sua frente, coloquei uma mecha do cabelo dela atrás da orelha e deixei minha mão escorregar até sua nuca.
— Lara... você sabe que eu gosto de você. Mas não posso prometer o que nem eu entendo agora.
Ela respirou fundo, desviou os olhos por um segundo, depois voltou a me encarar.
— Eu não quero promessas, Enzo. Eu só queria saber se você ia sentir minha falta.
Aquilo me pegou desprevenido.
Sorri. Meio torto. Meio triste.
— Claro que vou sentir.
— Mas não o suficiente pra me pedir pra ir junto.
Toquei seu rosto com carinho, aquele carinho que só se dá a quem conhece nossas sombras.
— Não seria justo com você. Nem comigo.
Ela assentiu, mas vi nos olhos dela que estava decepcionada. Não comigo. Com o fato de que, mesmo depois de tudo, eu ainda era o mesmo cara fechado, blindado, que só deixava os outros entrarem até certo ponto. Nunca além.
Fizemos amor naquela noite.
Lento. Silencioso. Quase melancólico.
Era como se os dois soubessem que era a última vez em um bom tempo. E talvez, mesmo sem admitir, sentíssemos que seria a última de todas.
Depois, ficamos deitados em silêncio, ela com a cabeça no meu peito, traçando círculos imaginários na minha pele com os dedos.
— Vai se apaixonar por alguma brasileira cheia de curvas e sotaque quente — ela sussurrou, rindo baixinho.
— Não, ainda mais morando com uma futura madrasta interesseira.
Ela se ergueu levemente.
— Como assim?
— O nome dela é Isadora. Jovem. Vai casar com meu pai.
Ela piscou devagar.
— Tá de brincadeira.
— Queria.
— Então você vai conviver com a novinha dentro de casa?
— Parece que sim.
Ela ficou me olhando por alguns segundos.
— Cuidado, Enzo. Essas mocinhas... são perigosas.
Sorri. Quase um deboche.
— Eu sei me proteger.
Ela encostou o rosto na minha clavícula e murmurou:
— É isso que você pensa.