Passei a noite inteira virando na cama.
O celular continuava sobre o criado-mudo, a tela ainda com o último registro da ligação: “Pai — 10 min”. Dez minutos de conversa que foram suficientes pra reabrir uma ferida que eu vinha tentando ignorar fazia anos.
Fazia frio naquela noite em Lisboa, mas minha cabeça parecia pegar fogo. A imagem da tal Isadora se formava de maneira nítida na minha mente — como se eu já a conhecesse. Loira. Jovem. Rosto angelical com alguma malícia escondida nos olhos. Corpo moldado pra arrancar suspiros e, principalmente, pra fazer homens velhos esquecerem do tempo. Uma versão 2.0 de todas as outras.
Suspirei e me levantei da cama. Caminhei até a varanda do meu apartamento no sexto andar e encostei os braços no parapeito de pedra. A cidade estava silenciosa, o céu nublado, e só o som distante de algum táxi cortando a rua abaixo me lembrava que eu não estava sozinho no mundo.
Mas era como se estivesse.
Estava há cinco anos fora do Brasil, construindo uma nova rotina, tentando esquecer as cicatrizes que a vida me deixou. Tinha meu próprio apartamento, um carro que amava, um trabalho que me consumia, mas que me dava orgulho. Por fora, tudo parecia perfeito. Por dentro... bom, isso era outra história.
Meus dedos apertaram a borda da sacada com força quando a raiva começou a borbulhar.
Como ele teve coragem?
Casar.
Com uma garota que provavelmente chama ele de “senhor” quando não estão na cama. Provavelmente conheceu a Isadora em alguma dessas festas cafonas de gente rica que o meu pai frequenta, onde a maioria dos convidados nem sabe onde fica o próprio fígado, mas sabe o valor de cada bolsa que carrega. Aposto que ela sorria enquanto ele falava sobre ações, lucros, imóveis e viagens internacionais. Aposto que ele se sentia o “macho alfa” da vez — aquele que ainda conseguia fisgar uma novinha, só pra provar que estava vivo.
E o pior de tudo: ele acreditava mesmo nessa ilusão.
Eu conhecia bem meu pai. Lorenzo Morelli era o tipo de homem que precisava constantemente reafirmar o próprio valor. Perdeu o amor da vida dele e, ao invés de sentir, chorar, curar... ele escolheu enterrar tudo embaixo de camadas de uísque, ego inflado e mulheres vazias. Não que todas fossem — não me entenda m*l. Mas as que ele escolhia, com certeza eram. Eram a superfície, o brilho, o encanto momentâneo. Eram um tapa no vazio. Uma maquiagem em cima da dor.
E agora, ele estava prestes a colocar uma aliança no dedo de mais uma.
“Ela vai ser parte da família”, ele disse.
Parte da família, uma ova.
Entrei de volta no quarto, pegando o celular. Abri o perfil do meu pai em todas as redes, procurando qualquer informação sobre a tal Isadora. Nada. Nenhuma foto, nenhum documento, nenhum anexo. Como se ela fosse um segredo bem guardado — ou uma bomba prestes a explodir.
Fechei o aplicativo com um suspiro frustrado.
A parte mais insuportável disso tudo era saber que, mesmo não querendo, eu ia acabar voltando. Eu não era o tipo de cara que deixava os negócios da família afundarem, mesmo odiando a forma como meu pai tocava a vida. A verdade é que muito da estrutura que eu montei lá fora depende de uma harmonia entre os setores. E ele sabia disso. Usou isso contra mim.
Filho da mãe.
Fui pra cozinha e preparei um café forte, na esperança de que aquela dor de cabeça latejante passasse. Enquanto a água esquentava, encostei as costas na bancada e fiquei encarando o azulejo branco, ouvindo o tique-taque do relógio de parede. Cada segundo parecia zombar da minha inquietação.
Comecei a pensar nas coisas que teria que deixar em pausa. Os projetos, os contatos, a rotina que levei anos pra construir. Não seria uma viagem de férias. Seria uma temporada forçada num lugar que já não me sentia parte.
E o pior: sob o mesmo teto que o meu pai... e ela.
Ela.
Não conseguia parar de pensar na tal Isadora. Era impressionante como um nome podia ter tanto poder. “Isadora” parecia saído de algum livro antigo, meio clássico, meio poético, mas na minha cabeça ela era tudo, menos inocente.
Sabe aquele tipo de mulher que aprende desde cedo a usar a beleza como arma? Que se acostuma a ver os homens caindo aos seus pés, oferecendo tudo em troca de um sorriso? Pois é. Ela com certeza era assim.
E eu conhecia esse tipo.
Elas sabiam o que dizer, como olhar, como se vestir, como rir no momento certo, como fingir um charme tímido que, na verdade, era pura estratégia. Eram moldadas para seduzir. E os homens — especialmente os mais velhos, carentes, carcomidos por frustrações — se jogavam de cabeça. Achavam que estavam vivendo um sonho, quando, na real, estavam sendo meticulosamente manipulados.
Eu não duvidava que Isadora tivesse o próprio plano.
Talvez estivesse de olho na herança. Talvez quisesse status. Talvez só quisesse viver bem por um tempo antes de se cansar e partir pra próxima vítima com mais um cartão black no bolso.
E o que me deixava ainda mais irritado era ver meu pai cair nessa.
Homem experiente, dono de império, cabeça de tubarão nos negócios… mas um completo idiotaaa quando o assunto era sentimento.
Levei o café pra sala e me joguei no sofá. A TV estava desligada, mas mesmo assim fiquei olhando pra tela preta por vários minutos, como se aquilo fosse me trazer alguma resposta.
Minha mente foi longe.
Me lembrei de quando eu era pequeno. Das tardes que passava jogando bola no quintal com a minha mãe assistindo da varanda, rindo das minhas tentativas desajeitadas de fazer embaixadinhas. Me lembrei dos domingos em que a gente cozinhava juntos — ou melhor, ela cozinhava e eu fazia bagunça. E do jeito como ela amava o meu pai. Era um amor puro, devoto. Mesmo quando ele já começava a se perder, mesmo quando ela já sentia que ele estava distante, ela o defendia.
Minha mãe não merecia ter partido tão cedo. E, com certeza, não merecia ser substituída por uma garota que devia ter idade pra chamar ela de “tia”.
Engoli o nó na garganta e joguei a cabeça pra trás, respirando fundo.
Talvez eu estivesse sendo duro demais. Talvez Isadora não fosse tudo isso. Talvez fosse só uma garota perdida, como tantas outras, tentando achar algum sentido na vida. Ou talvez fosse exatamente o que eu imaginava — uma versão delicadamente maquiada de tudo que eu mais detestava.
Mas, no fim das contas, não fazia diferença.
Eu ia conhecê-la.
Inevitavelmente.
Mas não agora.
Ainda tinha dias, talvez semanas, até precisar pegar aquele avião. Então, decidi usar esse tempo pra me preparar. Não só a mala, mas o espírito. Porque, se tinha uma coisa que eu sabia, era que voltar ao Brasil não seria só uma questão de trabalho. Era voltar ao cenário do crime. Ao lugar onde tudo desmoronou. Ao passado.
E, mesmo que fosse temporário, eu sentia que alguma coisa ia mudar.
De novo.
Terminei o café, peguei o notebook e abri o e-mail que meu pai tinha enviado com os documentos da empresa. Revisei algumas coisas, fiz anotações, respondi com a frieza que ele merecia. Sem perguntas pessoais. Sem emojis. Só negócios.
A distância, pelo menos, me dava isso: o controle.
Mas no fundo… no fundo mesmo… uma parte de mim já sabia.
Essa história com a tal Isadora não ia ser simples.
Ela não era só mais uma.
E talvez, por isso mesmo, fosse o começo de um novo caos.