Antes de Tudo

1229 Words
Meu nome é Enzo Morelli. Não sei ao certo quando foi que meu mundo começou a ruir, mas se eu tivesse que apontar um momento, um único ponto de partida, diria que tudo começou no dia em que minha mãe morreu. Na época, eu tinha apenas dezoito anos. Estava no último ano do colégio, com a cabeça cheia de planos e o peito inflado por aquela sensação de invencibilidade que a juventude traz. Eu era forte, cheio de energia, com os olhos voltados pro futuro, e minha mãe… bem, minha mãe era o meu mundo. Ela era daquelas mulheres que entravam em qualquer lugar e mudavam o ar. Não por causa de sua beleza — embora fosse belíssima — mas pela presença, pela postura firme e ao mesmo tempo doce, pela elegância natural e pelo olhar que parecia enxergar além da superfície. Minha mãe me ensinou tudo que sei sobre empatia, sobre respeito, sobre justiça. Ela foi a única pessoa na minha vida que nunca me decepcionou. E talvez por isso tenha doído tanto. O câncer apareceu como quem não quer nada. Um diagnóstico casual, uma suspeita num exame de rotina… e de repente, tudo virou hospital, sessões, agulhas, medicamentos de nomes difíceis, orações desesperadas. Vi aquela mulher incrível, cheia de luz, definhar aos poucos, presa a uma cama branca demais e fria demais para quem era feita de calor. Durante os últimos dois meses, eu praticamente morei no hospital. Meu pai, por outro lado… Ele foi ficando ausente. Primeiro, culpava o trabalho. Depois, começou a aparecer com os olhos vermelhos e o cheiro forte de uísque caro na roupa. Ele não sabia lidar com a dor. Nunca soube. Sempre foi mais fácil pra ele fugir, se esconder, arrumar distrações — e quanto mais nova, melhor. Na noite em que minha mãe partiu, eu estava do lado dela. Segurando sua mão, sentindo seus dedos já sem força tentando apertar os meus. Ela me olhou como se pedisse desculpas por ir embora, como se tivesse falhado por não conseguir ficar. E eu, com os olhos molhados e o coração em pedaços, sussurrei que tudo bem. Que ela podia descansar. A dor daquele instante ficou presa no meu peito até hoje. E talvez nunca vá embora. Depois do enterro, o silêncio tomou conta da casa. Cada canto parecia ecoar o som do que um dia foi felicidade. Meu pai chorou no velório, sim, mas não demorou muito pra reerguer a cabeça e começar a sair novamente. Primeiro, dizia que precisava espairecer. Depois, que precisava se sentir vivo. E então, começaram as mulheres. Ele é um homem bonito, pra um cinquentão. Grisalho, elegante, cheio de charme. Dono de um império construído ao longo de décadas, sabia usar as palavras, o dinheiro e a aparência a seu favor. E ele usava. Muito bem, por sinal. Comecei a vê-lo com mulheres diferentes a cada semana. A maioria delas mais novas do que eu. Sérias, provocantes, interesseiras — algumas nem tentavam disfarçar. E meu pai parecia gostar disso. Talvez porque o fizessem se sentir jovem. Talvez porque, no fundo, ele soubesse que era só uma fuga… e, como toda fuga, precisava de distrações constantes. A primeira vez que briguei com ele foi justamente por isso. — Você acha que é isso que a mamãe gostaria de ver? — perguntei, indignado, ao encontrá-lo com uma loira siliconada na sala, usando o robe que era da minha mãe. Ele me encarou com aquele olhar cansado, mas firme. — Não coloque sua mãe no meio disso, Enzo. Ela morreu. A vida continua. Aquela frase me atravessou como uma facada. A partir dali, nossa relação foi ladeira abaixo. Decidi me mudar. Recebi uma proposta para estudar e estagiar fora do país, numa das filiais das empresas da família, e agarrei a oportunidade com tudo. Deixei o Brasil com a mala cheia de roupas e o coração cheio de mágoa. Na Europa, comecei uma nova vida. Estudei Administração e Comércio Internacional, trabalhei feito um condenado, mas também aprendi a viver sozinho, a me virar, a construir algo meu — ainda que o sobrenome Morelli abrisse algumas portas antes mesmo que eu batesse. Com o tempo, a saudade da minha mãe foi se transformando em memória. Eu nunca deixei de sentir falta dela, mas aprendi a carregar a ausência sem que ela me esmagasse. Já meu pai… ele virou uma figura distante. Mandava mensagens esporádicas, alguns e-mails sobre negócios, fotos com alguma nova “namorada” sorridente ao lado dele em um iate qualquer. Eu ignorava a maioria. Me parecia patético demais pra lidar. Durante cinco anos, mantive a maior distância possível do Brasil. Voltei uma vez, por um compromisso profissional que durou três dias. Nem pisei na casa da minha infância. Preferi ficar num hotel. Mas aí veio o telefonema. Era uma manhã comum. Eu estava no escritório, com a cabeça mergulhada em uma planilha de expansão de mercado quando o nome dele apareceu na tela. “Pai”. Quase não atendi. Mas a curiosidade foi maior. — Enzo — ele começou, direto, como sempre —, vou me casar. A frase caiu como um raio no meio do meu silêncio. Franzi o cenho, inclinei levemente a cabeça, tentando entender se tinha ouvido certo. — Você o quê? — Me casar. Em algumas semanas. Silêncio. — Você enlouqueceu de vez, é isso? — Olha, eu não quero sua aprovação, Enzo. Só estou avisando. E preciso de você de volta no Brasil. Temporariamente. Quero tirar um ano sabático com a minha esposa. Preciso que assuma as empresas daqui enquanto isso. Minha cabeça girou. Senti o sangue subir. — Você quer que eu largue tudo aqui pra consertar sua bagunça? De novo? — Não é bagunça. É uma escolha. E você já é sócio da Morelli Internacional. É seu dever também. Ri. Sem humor. — E quem é a vítima da vez? — Não fale assim. O nome dela é Isadora. Isadora. Nome de novela. Nome de mulher fatal. Nome que já me deu calafrio antes mesmo de vê-la. — Ela é jovem, não é? — Não é da sua conta. — Isso quer dizer que sim. Ele respirou fundo, e pela primeira vez em anos, pareceu irritado de verdade. — Isadora vai ser minha esposa. E, futuramente, vai dividir com você tudo que é meu. Quero que ela seja tratada como parte da família. Respeite isso, Enzo. Parte da família. A herdeira. A substituta da minha mãe? Não respondi de imediato. Senti uma náusea estranha. A imagem da minha mãe me veio à mente, e juro que quase desliguei na cara dele. Mas havia algo mais ali. Um aviso. Um sinal. Alguma coisa me dizia que eu precisava voltar. Nem que fosse pra evitar que aquela loira desconhecida tomasse conta de tudo. — Muito bem — respondi, por fim, com a voz fria. — Eu volto. Mas só por um ano. E não pense que vou ser simpático com a sua “esposa”. Ele riu, e a risada dele me irritou ainda mais. — Só quero que seja educado, filho. O resto, o tempo se encarrega. E desligou. Naquela noite, não consegui dormir. O nome “Isadora” ecoava na minha cabeça como uma premonição. Algo em mim já sabia: ela não seria só mais uma mulher na vida do meu pai. Ela seria a virada na minha.
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