— Ó o moleque querendo me driblar! — era a voz do Kauê.
Dei mais uns passos e me deparei com a cena mais clichê (e mais perigosa pro meu coração) que eu podia ver.
Kauê tava sentado no tapete da sala, de pernas cruzadas, deixando o Ryan escalar ele como se fosse um brinquedo de parquinho. O moleque ria alto, agarrado no pescoço dele.
Do outro lado, no sofá, tava o Nathan. Sentado largado, com a mão apoiando a cabeça e aquele sorriso discreto no canto da boca. Ele assistia a cena, como quem não queria demonstrar, mas tava claramente derretido pelo menino.
Meu peito até apertou.
— Tu não presta, Kauê! O moleque vai aprender tudo errado contigo. — o Nathan falou, balançando a cabeça, mas com um olhar que contradizia as palavras.
— Vai aprender a ser malandro, pô! Melhor do que crescer bobo. — respondeu o Kauê, fazendo cócegas no Ryan, que se sacudia de tanto rir.
Fiquei encostada no batente da porta só observando, até que minha mãe apareceu, surgindo pela porta da frente com as sacolas de feira.
— Ih, olha quem chegou! — ela disse, rindo ao ver a cena.
Ryan largou o Kauê na hora e correu pra ela com os bracinhos levantados. Minha mãe largou as sacolas no chão e pegou ele no colo como se ele ainda fosse um recém-nascido.
— Meu neném da vovó! — ela falou, enchendo ele de beijo.
Depois olhou pros dois marmanjos na sala e fez aquele olhar que só ela sabia fazer. Meio ranzinza, meio carinhosa.
—Vocês dois não tem casa não, é? Vivem aqui feito dois desabrigados.
— Pô dona Simone, deixa de recalque. — Kauê respondeu com a cara mais lavada do mundo. —A senhora sabe que ama ter a gente aqui.
— Amo nada. Só sei que vou fazer café, e vocês tratem de botar a mesa se quiserem comer. — ela resmungou, indo pra cozinha com o Ryan ainda no colo.
Eu aproveitei a deixa e fui atrás dela, mas antes dei uma última olhada pros dois.
Nathan ainda tava ali, largado no sofá, com a mão no queixo, me olhando de canto de olho como sempre.
Kauê, por outro lado, já tava mexendo no celular, rindo de alguma besteira.
Dois idiotas.
Dois idiotas que, sem perceber, deixavam minha casa com mais vida... e minha cabeça com menos paz.
Fui até a cozinha pra ajudar minha mãe, mas a verdade é que... a vontade mesmo era voltar pra sala, sentar ali no meio deles, e fingir que a gente era uma família de verdade.
Depois de ajudar minha mãe a colocar a mesa, respirei fundo. Era sempre assim. Ela fazia questão de caprichar quando os dois estavam em casa.
Pão fresco, bolo de fubá, manteiga, queijo minas, café passado na hora e aquele cheiro que tomava a sala toda.
Enquanto eu ajeitava os copos e passava a faca na margarina, escutava de fundo o Ryan rindo no colo do Kauê. O Nathan só observava, com aquele jeito dele, quieto mas sempre prestando atenção em tudo.
— Tá servido, criançada? — minha mãe chamou da porta da cozinha, batendo as mãos no avental.
— Tô mais que pronto. — Kauê respondeu, deixando o Ryan no chão pra poder se jogar na cadeira.
O Nathan veio logo atrás, sentando na outra ponta da mesa. Eu fiquei no meio, como sempre.
Minha mãe pegou um pratinho pra dar o lanche do Ryan primeiro, enquanto eu me ocupava em servir o café.
— Não exagera no açúcar pra mim. — Nathan pediu, de cabeça baixa, mexendo no celular como sempre.
— Como se eu não soubesse, né? — respondi, empurrando a xícara pra frente dele.
Ele sorriu de canto, daquele jeito que só ele fazia, como se não quisesse dar o braço a torcer... mas gostasse de saber que eu ainda lembrava dessas coisinhas.
Kauê, por outro lado, já enchia o prato de pão com manteiga e jogava um pedaço generoso de bolo junto.
— Pô, dona Simone, só a senhora pra salvar minha vida, viu? — ele disse, boca cheia, e minha mãe deu uma risada curta.
— Se alimenta direito, Kauê. Olha essa magreza.
— Magreza? Tá doida? Olha esse tanquinho aqui. — ele levantou a camiseta de propósito, mostrando o abdômen definido.
Eu virei o rosto na hora, só pra não entregar a cara de i****a que eu devo ter feito. Mas minha mãe não teve filtro.
— Deixa de ser exibido, moleque! Isso aí só serve pra pegar doença. — ela retrucou, batendo na cabeça dele com um pano de prato.
Nathan riu, com aquele jeito debochado de sempre.
— Se continuar nesse ritmo, qualquer dia desses a senhora vai achar o Kauê desmaiado na porta de casa, de fraqueza.
— Ele já vive largado mesmo... não duvido nada. — completei, e os dois gargalharam.
Enquanto a conversa seguia, eu ia observando os dois sem querer.
Kauê sempre espalhafatoso, falando alto, rindo fácil... Nathan no canto dele, mais calado, só soltando uma ou outra provocação na hora certa, com aquele olhar que parecia ver tudo.
E eu? Tentando convencer meu coração de que era só amizade.
Mas tava ficando cada vez mais difícil.
Principalmente quando um deles encostava a mão sem querer no meu braço. Ou quando os olhares demoravam mais do que deviam.
Aos poucos, a tarde foi caindo. Minha mãe se levantou pra recolher as coisas e eu fiquei catando as migalhas com o Ryan no colo, balançando ele de leve enquanto ele quase cochilava.
Os dois ainda ficaram mais um tempo sentados na sala, falando besteira, trocando farpas e jogando conversa fora.
A casa finalmente tinha voltado ao silêncio.
Depois de tanta falação, risada, bagunça e provocação, os dois tinham ido embora. Cada um pro seu canto. Ou... sei lá, talvez até tenham saído juntos pra algum rolê de última hora, do jeito que eles são.
Fechei a porta com cuidado, conferi se tava trancada direito e fui direto pro quarto. Ryan já tava com o olho meio fechado, largadão no meu colo, só esperando eu deitar com ele pra apagar de vez.
Coloquei ele na cama, troquei a fralda, dei uma limpadinha rápida com lenço umedecido e vesti a roupinha mais leve que achei. O calor daquela noite não tava dando trégua.
Me deitei do lado dele, o ventilador girando preguiçoso no teto, só empurrando o ar quente de um canto pro outro.
Olhei o rostinho dele... Tão calmo, tão sereno.
Meu bebezinho, meu afilhado, meu pequeno amor.
Dei um beijo na testa dele e fechei os olhos. Mas era óbvio que o sono não ia vir fácil.
Não depois de hoje. Não depois de ter passado a tarde inteira com os dois aqui... os dois... tão perto... os dois... sendo eles.
Suspirei fundo, virando de lado.
O rosto do Kauê apareceu primeiro na minha mente.
O jeito escandaloso, aquele sorriso sacana... a risada fácil... e aquele corpo. A barriga que ele fez questão de mostrar, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Como se ele não soubesse o quanto aquilo me afetava.
Bufei baixinho, com raiva de mim mesma.
E como se fosse um efeito dominó, o rosto do Nathan veio logo depois.
Aquele olhar dele... sempre carregado. Como se ele soubesse de tudo o que eu pensava. Como se ele me entendesse só de me olhar... Como se me desafiasse o tempo todo, mesmo sem dizer uma palavra.
Meus dedos começaram a brincar sozinhos com a barra da minha camiseta. Inquieta. Ansiosa. Querendo coisas que eu nem devia.
"Para com isso, Lorena...", pensei, virando de novo na cama.
O ventilador continuava girando. O som da comunidade lá fora ainda era forte... moto passando, cachorro latindo, gente gritando de longe.
Mas dentro do meu quarto, só existia o silêncio.
E eles dois, na minha cabeça. Como sempre. E como sempre... eu fingindo que não era nada demais.
Fechei os olhos com força, puxei o Ryan mais pra perto... E deixei o sono me levar do jeito que dava.
Acordei com o barulho da campainha.
Demorei uns segundos pra entender onde eu tava... o calor, o lençol embolado nas minhas pernas e o Ryan deitado por cima de mim, do jeitinho que ele sempre dormia quando ficava aqui.
Ainda meio sonolenta, olhei o relógio na parede: 8h15.
Soltei um suspiro pesado. Eu até queria dormir mais, mas com o tanto de pensamento que minha cabeça teve essa noite... já era lucro ter conseguido pregar o olho.
Levantei devagar pra não acordar o pequeno e fui atender a porta.
Assim que abri, dei de cara com a Rayssa, com aquela cara dela de quem já tava estressada antes mesmo do dia começar.
— Bom dia pra você também, né? — resmunguei, coçando o olho.
— Nem vem, Lorena... Já tô com os nervo a flor da pele! — ela entrou sem pedir licença, como sempre fazia. — O maldito me mandou mensagem seis da manhã dizendo que vai buscar o Ryan hoje.
— E tu vai deixar? — perguntei, cruzando os braços.
— Eu tenho escolha? — ela rebateu, indo direto pro quarto onde o menino dormia. — Se eu não deixar, ele já falou que vai vir com conversinha de advogado, direitos de pai, essas palhaçada tudo.
Ela parou na porta, olhando o filho ainda dormindo, todo largado no meio da minha cama. Por um segundo, eu vi a expressão dela mudar... os olhos marejando daquele jeito que ela sempre disfarçava.
— Ai amiga... eu odeio tanto entregar ele pra aquele traste. — ela murmurou, passando as mãos no rosto.
— Eu sei... — respondi, chegando perto dela e segurando seu ombro.
— E o pior é que o Ryan gosta dele... é isso que me mata. O moleque é ausente, mas quando aparece faz aquela graça toda... E como ele é criança, fica todo empolgado.
— Ele vai ficar bem. — tentei acalmá-la, mesmo sentindo o mesmo aperto no peito.
Rayssa respirou fundo e entrou de vez no quarto, pegando o Ryan no colo com todo cuidado.
O pequeno abriu os olhos devagar e sorriu quando viu a mãe. A cena sempre me derretia, por mais que eu soubesse o quanto ela tava sofrendo por dentro.
— Bom dia, meu amor... — ela beijou a bochecha dele, tentando manter o tom de voz calmo. — Hoje você vai dar uma volta com o papai, hein?
Ele não entendeu muito, claro, mas sorriu e bateu palminha.
Enquanto ela trocava a roupa dele ali mesmo, fui ajudando a arrumar as coisinhas... uma bolsa com mamadeira, uma troca extra de roupa, fralda, lenço... aquelas coisinhas de sempre.
— Quer que eu vá com você? — perguntei, já calçando o chinelo.
— Não precisa, amiga... já tô atrasada, ele já tá subindo o morro. Só vim buscar o Ryan mesmo. — ela respondeu, meio apressada.
Quando ela pegou o pequeno no colo e se virou pra sair, eu senti aquele nó na garganta.
— Dá tchau pra dinda, meu amor. — ela incentivou.
Ryan abriu os bracinhos pra mim, e eu não perdi tempo... agarrei ele com força, dei um cheiro gostoso no pescoço dele e falei baixinho:
— Se comporta, hein? Depois a dinda vai te buscar.
Ele riu e bateu palminha de novo.
Quando os dois saíram, fiquei ali na porta, parada, olhando até ela sumir no final da rua. Fechei devagar... encostei a testa na madeira... E só consegui pensar em duas coisas:
Que eu odiava esse genitor dele.. E que, pra piorar, meu dia só tava começando.
Porque agora, com o Ryan longe... Minha cabeça ia ter espaço de sobra pra voltar pros pensamentos de ontem à noite.
Sobre eles dois. Sempre... eles dois.