Depois que a Rayssa foi embora com o Ryan, eu tentei me ocupar arrumando algumas coisas em casa. Lavei a louça, dei uma geral na sala, troquei a roupa de cama... Mas no fundo, eu só queria distrair a cabeça.
A casa vazia tava me deixando ansiosa. Minha mãe tinha saído cedo também, disse ontem que ia visitar uma amiga lá em outro morro e só voltava à noite.
Olhei no espelho, ajeitei o cabelo num coque alto, passei um gloss só pra não sair com a boca pálida, coloquei meu shortinho jeans, cropped preto e um chinelo de dedo.
Peguei o celular, coloquei no bolso e saí.
O sol ainda tava forte, mas o vento tava até de boa.
O morro tava naquele movimento de sempre... criança correndo, mulherada nas lajes, os caras na esquina, aquele som de funk misturado com cheiro de churrasco que alguém já tinha começado a fazer.
Desci a viela com calma, cumprimentando quem passava. Foi só virar a próxima rua que eu dei de cara com o Leozinho.
Um dos vapores do Nathan e do Kauê.
Magro, tatuado, sorriso fácil... e um olhar que eu sempre soube que me cobiçava faz tempo.
— Ihhh, olha quem resolveu dar o ar da graça. — ele soltou, encostado numa moto, cigarro numa mão e a outra mexendo na corrente de prata no pescoço.
— Tô de folga, né? Tem que aproveitar... — respondi, com aquele tom de quem não tá se esforçando pra dar moral... mas também não tá cortando.
— Tá na beca hoje, hein? — ele sorriu, dando aquela olhada descarada de cima a baixo. — Se passar mais assim pela quebrada, vai dar problema.
— Problema por quê? Não devo satisfação pra ninguém aqui não. — soltei de propósito, só pra provocar. Ele riu, jogando a cabeça pra trás.
— Gostei da atitude... — se afastou da moto e veio até mim, parando perto, bem mais perto do que devia. — Qual foi, tá na seca? Faz tempo que não te vejo com ninguém.
— E quem disse que eu tô na seca? — ergui a sobrancelha, encarando.
— Hum... tá com alguém? — ele perguntou, já mordendo o canto da boca, daquele jeito que eu sabia que ele fazia pra impressionar.
— Solteira, mas nunca sozinha. — dei um sorriso de canto, me divertindo com a cara dele.
— Tá me testando, é isso?
— Só tô passando... indo ali comprar um refrigerante. — dei um passo pro lado, mas antes que eu pudesse sair de vez, ele segurou de leve meu braço.
— Se quiser companhia... eu tô de bobeira.
Meu coração deu até uma acelerada, mas claro que não deixei transparecer.
— Vou pensar no seu caso, Leozinho... quem sabe? — falei, soltando meu braço devagar, com aquele olhar cheio de malícia.
Ele riu, satisfeito com a resposta, e me deixou seguir.
Enquanto eu ia andando, senti o olhar dele me acompanhando até dobrar a esquina. Soltei um riso abafado.
Solteira eu tô mesmo... E flertar não faz m*l a ninguém, né?
Entrei na birosca da esquina rindo sozinha, ainda com a última fala do Leozinho martelando na cabeça.
Peguei uma Coca de um litro na geladeira, fui até o balcão e já tava escolhendo um salgadinho pra acompanhar quando escutei a voz grossa, carregada de ironia, ecoando atrás de mim:
— Bonito, hein, Lorena... Fica de papinho com vapor agora?
Meu corpo deu um pulo automático.
Virei na mesma hora e dei de cara com o Kauê parado na porta da loja, braço cruzado, expressão carregada...
Camisa regata preta, short tactel, aquele boné aba reta jogado pra trás e o jeito de sempre... aquele olhar de quem achava que mandava em mim.
— Ué... tá me seguindo agora? — disfarcei o susto, colocando o salgadinho em cima do balcão com toda a calma do mundo.
— Por sorte, passei aqui na frente e vi a cena ridícula. — Ele veio se aproximando devagar, os olhos escuros me fuzilando. — Cê acha bonito ficar se oferecendo pra qualquer um?
A provocação veio automática, antes mesmo que eu pudesse pensar direito:
— E desde quando eu tenho que pedir sua autorização pra conversar com alguém? Minha vida, minhas regras.
Ele chegou mais perto. Agora, a distância entre nós era mínima. Dava pra sentir o cheiro do perfume amadeirado misturado com cigarro que era só dele.
— Conversa, é? — Ele riu curto, aquele riso debochado. — Porque da onde eu tava, parecia muito mais que isso.
— Tá com ciúme? — Perguntei baixinho, com um sorrisinho torto.
—Não viaja, Lorena. — Ele resmungou, mas o olhar dele denunciava. — Só acho que tu merece mais que um zé droguinha de esquina.
Cruzei os braços, inclinando o quadril de propósito, só pra ele olhar.
— Engraçado... vindo de você essa preocupação... sendo que cê vive no meio da mesma coisa.
— Eu tô em outro patamar. — disse com aquela marra típica dele. — Não me mistura com esses moleque.
— Tá bom, patrão... — ironizei, pegando a Coca e indo pro caixa.
Paguei e saí da loja como se nada tivesse acontecido, mas por dentro... meu coração tava numa mistura de nervoso com satisfação.
Saber que ele se incomodava? Que ficava puto de me ver com outro?
Era quase... viciante.
Quando passei por ele pra sair, deixei meu ombro encostar de leve no dele, só pra dar mais um motivo pra ele ficar pensando.
— Se cuida, Lorena. — ele murmurou baixo, no meu ouvido, quando passei.
Saí sem olhar pra trás, mas o sorriso já tava colado no meu rosto.
Me divertindo com o joguinho. Amando o gosto da provocação. E morrendo de vontade... De ver até onde ele ia aguentar.
Depois daquele pequeno show do Kauê na loja, decidi que não ia voltar pra casa direto. Minha folga merecia pelo menos um pouco de sol e rua antes de eu me trancar no quarto.
Peguei meu refrigerante e fui andando até a pracinha principal do morro. O lugar de sempre, onde os moleques ficavam sentados jogando conversa fora, soltando fumaça no ar e rindo alto de qualquer besteira.
O som do bluetooth estourava nas caixinhas, música de baile no último volume. Criança correndo, gente vendendo sacolé... o cenário típico de um domingo no morro.
Me aproximei devagar, tomando minha Coca direto na garrafa, quando meus olhos bateram na cena.
Nathan.
Encostado no capô de um carro, de boné baixo, sem blusa e aquele sorriso cínico estampado na cara.
Duas... três meninas em volta dele, todas no maior chamego. Uma sentada quase no colo, outra passando a mão no ombro dele, a terceira rindo de qualquer merda que ele falava, claramente forçando graça.
E eu?
Fiquei parada uns segundos, só observando.
Engraçado como meu peito deu aquele aperto i****a.
Como se fosse a primeira vez que eu visse isso. Mas não era. Essa cena era tão velha quanto a nossa história.
Nathan sempre foi assim. Rodeado, desejado, fácil pros outros e impossível pra mim.
Suspirei fundo, já me arrependendo de ter vindo até ali. Mas o orgulho falou mais alto.
Continuei andando, fingindo que tava passando por acaso, sem pressa, sem olhar muito, como se ele fosse só mais um na paisagem.
Mas, claro... Ele me viu.
— Olha quem resolveu aparecer... — ouvi a voz grossa dele atravessar o ar. Parei de andar. Virei de leve só pra lançar um olhar por cima do ombro.
— Fala aí, Nathan... — respondi com a maior naturalidade que eu não tinha.
— Tá distraída, hein? — Ele deu um gole na long neck e afastou uma das meninas que tentava mexer na corrente dele. — Achei que hoje era dia de descanso... tá curtindo a folga?
— Tô... — sorri de canto, segurando a garrafa de refrigerante como desculpa pras mãos inquietas. — Só dando um rolê.
Os olhares ao redor começaram a pesar. As meninas que estavam com ele me olharam de cima a baixo, claramente se perguntando quem eu achava que era pra chamar ele de Nathan daquele jeito íntimo.
E ele? Ele me olhava daquele jeito dele... Como se soubesse o efeito que tinha.
— Se quiser, cola aqui... — disse, dando um tapinha no capô do carro, como se oferecesse um lugar. — Tem espaço.
— Prefiro ficar inteira... essas tuas amigas aí tão com cara de que arrancam o cabelo de qualquer uma que chegar perto. — Ele riu alto, jogando a cabeça pra trás.
— Elas sabem que eu sou de ninguém, Lorena. — Piscou pra mim. — E tu também sabe.
Mordi o lábio, virando o rosto antes que ele percebesse o rubor subindo.
— Até depois, Nathan... — Falei, me afastando antes que minha boca me traísse.
Segui andando... com o coração acelerado...
E com uma certeza martelando na cabeça:
Por mais que eu fingisse... Por mais que eu provocasse o Kauê... E por mais que ele estivesse ali... O Nathan ainda era o problema que eu nunca consegui resolver.
Sentei no banquinho mais afastado da praça, tentando regular minha respiração. O calor, a música alta, as conversas cruzadas... tudo parecia girar mais do que o normal.
Ou talvez fosse só a raiva misturada com o resto.
Dei mais um gole no refrigerante já meio quente e olhei disfarçadamente pro canto onde o Nathan continuava cercado pelas piranhas de sempre.
Ridículo.
Idiota.
Mas a verdade? Doía. Mais do que eu queria admitir.
— Mas olha só... — a voz da Rayssa cortou meu devaneio com força. — Tá com uma cara péssima, ein, Lorena? Quase um outdoor de ciúmes. — Ela se aproximou rindo, rebolando do jeito exagerado de sempre, com aquele ar de deboche que só ela sabia ter.
Revirei os olhos.
— Para de graça, Rayssa... — resmunguei, tentando disfarçar.
Ela largou a bolsa no meu colo e se jogou no banco ao meu lado, toda teatral.
— Ai, amiga... nem precisa disfarçar. Tá escrito na tua testa que queria tá no lugar da vagabunda de vestido azul. — Ela apontou descarada, me fazendo arregalar os olhos.
— Fala baixo, garota! — Dei uma cutucada nela, olhando em volta.
— Ué, tá com vergonha agora? Logo tu? — Ela gargalhou. — A rainha do "eu não tô nem aí pra ele", se remoendo porque o boy tá pegando as cachorras de sempre.
Suspirei fundo.
— Não é ciúme, tá? — Menti na cara dura.
— Ah não? Então é o quê? Gastrite? — Ela me cutucou com o ombro, zoando.
Fiquei quieta. O pior era que ela me conhecia demais. Desde o dia que a gente se esbarrou na fila do posto de saúde, foi conexão automática. A bicha me lia como um livro aberto.
Mas o que mais me incomodava naquele momento... nem era só o Nathan. Era o Ryan.
— E o pequeno? — perguntei, mudando de assunto rápido. O sorriso da Rayssa morreu na hora.
— Tá com o genitor... — respondeu baixo, cruzando os braços, o olhar ficando mais duro. — Ele passou lá... disse que queria passar o dia com o menino. Tive que engolir a vontade de mandar ele se catar e entregar o Ryan.
Eu respirei fundo junto com ela.
— Tu fez certo, Ray... o menino precisa de um pouco desse contato, mesmo que o cara não preste.
— Sei... — Ela bufou. — Eu tô de olho. Se ele inventar de dar uma de doido, eu desço lá no asfalto e arrasto o infeliz pelos cabelos.
Ri fraco, tentando aliviar o clima.
— Acho justo. Qualquer coisa tu me chama que eu vou contigo.
Ela sorriu, mas logo voltou a me cutucar.
— Agora... voltando ao assunto mais interessante... — Ela disse baixinho, se inclinando pra perto do meu ouvido. — Quer apostar quanto que o Nathan tá te olhando nesse exato momento e tu tá aqui se fazendo de sonsa?
Me recusei a olhar na direção dele.
— Vai tomar no cu, Rayssa...
— Com prazer... Mas antes, vê se toma vergonha nessa tua cara, viu?
Ela levantou, jogando o cabelo pro lado e me puxando pelo braço.
— Bora andar. Se a gente ficar parada aqui, tu vai acabar indo lá fazer barraco e eu não quero perder meu domingo vendo tu chorar depois.
Me deixei levar por ela... Mas no fundo, cada passo parecia puxado... Como se parte de mim quisesse mesmo era voltar... E tirar aquelas meninas de perto dele na força.