A claridade invadiu meu quarto antes mesmo de eu conseguir abrir os olhos direito.
Senti a cabeça latejando, o gosto amargo na boca e uma vontade absurda de ficar deitada o resto do dia. Mas né... como se eu pudesse.
Virei pro lado, abracei o travesseiro... e, inevitavelmente, as imagens da noite passada começaram a pipocar na minha cabeça como flashes fora de ordem.
O som alto... a fumaça no ar... a risada da Rayssa me puxando pela mão pra dançar... os olhares atravessados do Kauê e do Nathan... as palavras que eles jogaram em cima de mim como quem brinca de provocar só pra ver até onde eu aguentava.
Suspirei, afundando o rosto no travesseiro.
— Idiota... — murmurei pra mim mesma.
Idiota por ter ficado, por ter curtido aquela atenção... e mais i****a ainda por estar remoendo tudo agora, como se não soubesse como eles são. Como sempre foram.
Levantei com esforço, arrastando os pés até o banheiro. Olhei pro meu reflexo no espelho e... misericórdia!
Cabelo bagunçado, olheira gritando, marca de maquiagem m*l tirada debaixo dos olhos.
— Linda, Lorena... perfeita pra capa de revista. — ironizei, jogando água gelada no rosto.
Enquanto escovava os dentes, ouvi o barulho da porta da frente.
— Lô! — A voz dela veio da cozinha, animada demais pra quem provavelmente nem tinha ideia de que horas eu tinha chegado. — Fiz café, tá quente ainda!
— Já tô indo, mãe... — Respondi, me trocando rápido com a primeira roupa larga que achei na cômoda.
Desci até a cozinha e o cheiro de café fresco e pão na chapa bateu no estômago vazio.
Minha mãe tava ali, toda faceira, mexendo na panela com um sorriso no rosto como se a vida fosse perfeita e simples.
— E então? Se divertiu muito ontem? — Ela perguntou com aquele tom de quem sabe mais do que diz.
— Normal, mãe... só fui com a Rayssa, dancei um pouco, nada demais. — dei de ombros, fingindo desinteresse enquanto pegava uma xícara.
Ela me lançou um olhar que não comprou uma palavra do que eu disse, mas preferiu não forçar o assunto.
— O Ryan tá lá com a Rayssa, viu? Falei com ela agora cedo. O pequeno acordou todo serelepe.
Sorri sem querer ao imaginar meu afilhado dando trabalho desde cedo.
— Vou passar lá pra ver ele depois.
Enquanto tomava meu café, pegava o celular e via as notificações da madrugada.
Mensagens da Rayssa, claro, contando os babados dela com o vapor... uns status do pessoal postando vídeo do baile... e...
Uma notificação do Kauê.
"Se faz de difícil, mas tua cara entrega tudo."
A mensagem tinha sido enviada lá pelas três da manhã.
Engoli seco, bloqueando a tela do celular antes que minha mãe percebesse qualquer mudança na minha expressão.
Hoje era domingo. Meu único dia de folga real. Eu precisava ocupar a cabeça... fazer alguma coisa. Levantei da mesa, estiquei os braços e me virei pra minha mãe:
— Vou tomar um banho e descer pra casa da Rayssa. Depois a gente vê o que faz, beleza?
— Vai... só não some de novo a noite toda que nem ontem, ein! — Ela falou com um sorriso. Subi de novo pro quarto com um único pensamento martelando...
"Se faz de difícil, mas tua cara entrega tudo."
Idiota.
[…]
Eu já tava na rua, indo em direção à casa da Rayssa.
O fone de ouvido ocupava uma orelha só, o outro eu deixava livre. Regra básica pra quem nasceu e cresceu aqui: nunca andar distraída demais. Um olho no celular, outro na rua. Um ouvido na música, outro nas conversas paralelas que sempre acontecem nos cantos das calçadas.
O trajeto até a casa dela era curto, mas com o tanto de gente que já circulava desde cedo, parecia que eu atravessava um campo de prova todo dia.
— Olha lá, a princesinha da dona Simone... — ouvi uma voz debochada vindo da esquina da venda. Revirei os olhos sem nem parar o passo. Já tava acostumada com esse tipo de comentário.
Mas aí, do nada, a voz subiu o tom:
— Tô falando contigo, sua vaca metida!
Parei no meio da calçada. Respirei fundo e me virei devagar. Era a Vanessa.
Eu conhecia bem. Uma das peguetes encostadas do Nathan. Daquelas que vivia achando que tinha algum título, como se só porque ele dava uns pegas de vez em quando ela fosse prioridade na vida dele.
Vestida com um short jeans minúsculo, top colado e chinelo no pé. Cabelo descolorido maltratado, e a cara toda borrada de maquiagem velha.
Ela veio na minha direção com os ombros duros e o olhar venenoso.
— Que foi? — perguntei já no modo defesa. — Tá me chamando por quê?
— Não tô gostando dessa tua gracinha pra cima do Nathan não, escuta só! — Ela cuspiu as palavras na minha cara, com o dedo apontado no meu peito. — Vive na cola dele, agora vai pro baile toda se amostrando...
Dei uma risada debochada.
— Cê só pode tá de brincadeira, né? Se eu fosse parar minha vida pra cada p*****a que se acha dona dele, eu tava ferrada.
— Se faz de sonsa, né? — Ela veio pra cima com tudo, empurrando meu ombro com força.
Na hora o sangue subiu.
Joguei o celular na calçada, do lado seguro, e fui pra cima dela também. A mão que ela tentou me acertar, eu segurei no ar. Puxei com força, desequilibrando ela, e já dei uma ajoelhada no estômago.
Ela recuou, mas voltou na mesma hora, puxando meu cabelo, arranhando.
E eu? Eu fui com tudo também. Bati, empurrei, xinguei. Não ia levar desaforo de ninguém. Só sei que em segundos, o povo da rua começou a cercar. Uns rindo, outros já falando:
— Ihhhh! Briga!
— Alguém separa que vai dar merda!
— Corre, que daqui a pouco alguém chama os homens da boca!
E foi justamente quando eu consegui derrubar ela no chão, subindo em cima dela pra dar um soco, que escutei a voz que eu menos queria ouvir naquele momento.
— QUE p***a É ESSA AQUI?
A rua ficou em silêncio imediato. Olhei pro lado e lá estava o Nathan.
Camiseta larga, boné torto, aquele andar pesado de sempre, vindo na direção da confusão com o cenho fechado e o olhar mais grosso que o tom de voz dele.
Ele me puxou pelo braço com força suficiente pra me tirar de cima da Vanessa.
— Tá maluca, Lorena? — Ele me encarou com raiva, depois virou o olhar cortante pra mulher caída no chão. — E tu, sua i****a, tá achando que aqui é o quê? Circo?
Vanessa tentou abrir a boca pra se explicar, mas Nathan já cortou na hora.
— Cala a boca! — Ele disse apontando o dedo na cara dela. — Tu tá achando que pode bater na menina que eu fui criado junto? A única que tem moral, comigo? Aqui não é zona não!
Ela arregalou os olhos, claramente assustada com o jeito que ele tava falando.
— Mas ela que veio...
— f**a-se! — Ele cortou de novo, mais alto. — Ninguém toca nela, entendeu?
Nathan virou pra um dos vapores que estavam de canto, assistindo tudo quieto:
— Tu mesmo! — apontou. — Quero essa desgraçada com a cabeça lisa ainda hoje. Raspa tudo.
O garoto assentiu na hora, saindo na frente com Vanessa quase sendo arrastada. Ela ainda tentava se defender, choramingando, mas não adiantava mais.
Nathan só ficou me encarando.
O coração ainda tava disparado, a respiração descompassada. Eu tava com a boca ardendo de tanto segurar a vontade de retrucar ele também.
Mas não consegui. Porque, por mais que ele fosse um grosso de merda... ele tinha acabado de me defender.
Ele respirou fundo, passando a mão pelo rosto:
— E você... vê se para de arrumar confusão na rua, p***a.
— Eu não comecei. — respondi com a voz baixa, ainda com o gosto da raiva na garganta.
Ele me olhou mais um pouco, como se fosse falar mais alguma coisa, mas só balançou a cabeça e foi embora, seguindo o rumo dele, provavelmente pra resolver outro pepino de algum vapor por aí.
Peguei meu celular do chão, ajeitei o cabelo bagunçado, e segui o caminho de novo pra casa da Rayssa.
A mão ainda tremia um pouco, mas por dentro... eu tava com aquela sensação i****a de novo.
Nathan... sempre fazendo questão de mostrar que por mais que ele me trate igual a qualquer uma... eu nunca vou ser só mais uma qualquer.
Mesmo que a gente continue nesse jogo de raiva e provocação... Mesmo que ele nunca diga com todas as letras... Ele me protege. Sempre. E isso? Era o meu maior problema.
Cheguei na porta da Rayssa ainda com o corpo quente da confusão. O cabelo desgrenhado, a blusa toda fora do lugar e o cotovelo ardendo por causa da queda na calçada.
Bati na porta com força e ela abriu quase na mesma hora.
— Que foi, menina? — Rayssa me olhou de cima a baixo, os olhos arregalados ao ver meu estado. — Cê caiu de escada?
— Pior... — Empurrei a porta e entrei, jogando a bolsa no sofá. — Briguei no meio da rua.
— Como assim? — Ela fechou a porta atrás de mim. — Com quem?
Joguei o corpo na poltrona, respirando fundo antes de contar:
— Com a Vanessa... aquela doida que fica se esfregando no Nathan.
Rayssa ficou muda por dois segundos, só me olhando com a sobrancelha arqueada. Depois explodiu numa gargalhada debochada.
— Ah não... tu foi tretar com peguete de traficante logo cedo?
— Não fui eu que comecei! — levantei as mãos em defesa. — Ela veio pra cima de mim falando merda... me empurrou... e tu sabe, né? Não ia ficar quieta.
Ela cruzou os braços, encostando na parede e me olhando daquele jeito que só ela sabia olhar.
— Tá com o beiço tremendo até agora.
— Lógico. Ela puxou meu cabelo, Rayssa! — Apontei pro alto da cabeça, onde já sentia o couro cabeludo latejando. — E ainda me arranhou.
— E o Nathan? Não deixou barato, né? — Ela deu um meio sorriso, maliciosa.
— Ele chegou do nada. — Suspirei, me lembrando da cena. — Veio gritando, me puxou do meio da confusão... mandou até raspar a cabeça dela.
Rayssa arregalou os olhos de novo.
— Sério?
— Sério. — Confirmei, mordendo o canto da boca. — Ele ficou puto de verdade. Disse que ninguém podia encostar em mim...
Ela não disse nada por alguns segundos, só balançou a cabeça como quem já sabia onde aquilo ia dar.
— Cuidado, Lorena... — falou num tom mais baixo. — Tu sabe como ele é.
— Eu sei... — Olhei pro teto, respirando fundo. — Mas não fui eu que pedi pra ele se meter...
Ela riu, vindo até o sofá com uma pomada na mão.
— Vem cá, deixa eu passar um negócio nesse arranhado antes que infeccione.
Fiquei quieta enquanto ela cuidava do meu braço.
— E o Ryan? — perguntei depois de uns minutos, tentando mudar de assunto.
— Tá lá com a minha mãe. Dormiu de novo depois da mamadeira. — Ela sorriu de canto. — Pelo menos hoje tu tem desculpa pra não sair de casa... descansar dessa treta.
Dei um sorriso cansado.
— É... acho que o universo tá me mandando um recado.
Mas, no fundo... a cabeça já tava longe.
Pensando no jeito que o Nathan me puxou do chão... na raiva dele... no olhar atravessado... E me odiando um pouco mais por gostar tanto disso.
Rayssa me olhou de novo, como se lesse meus pensamentos.
— Não adianta fingir que não sente, não. A gente se conhece, Lorena... — ela disse, com aquele tom de quem sabe muito bem das coisas.
Suspirei, fechando os olhos.
Talvez ela tivesse razão. Talvez eu estivesse me enfiando num buraco que não tinha saída.
Mas... como sempre... eu só ia descobrir me metendo mais fundo nele.