Dante Mancuso
Eu estava sentado na poltrona de couro cinza que rangia cada vez que eu me mexia. A sala de monitoramento era pequena, abafada, com paredes cobertas de monitores e o zumbido constante dos ventiladores do sistema. Um cheiro ácido de café velho e suor pairava no ar. Três câmeras mostravam ângulos diferentes do corredor que levava até o quarto onde Catarina dormia. Outras duas mantinham Adam sob vigilância, no subsolo. Mas não era nenhuma daquelas imagens que me prendia.
Era o silêncio.
O silêncio que vinha se arrastando pelos últimos cinco dias.
Eu olhava para o celular como se a tela pudesse, de repente, mudar tudo. A notificação que eu esperava, a ameaça que eu temia — nada chegava. Nenhuma mensagem de Don Miguel Mancini, o velho filho da p**a que já tinha traído aliados muito maiores do que eu. Nenhum recado de Mássimo, que sempre fora um cão faminto, agora corria atrás dos restos que Don Miguel largava pelo caminho. Nenhuma palavra de Don Antonio Contini, cuja ausência, para dizer a verdade, me inquietava mais do que todas as outras juntas.
Três nomes, três buracos negros no tabuleiro. Ninguém os havia visto desde saí de Roma. Ninguém me procurou. Nenhuma ameaça, nenhuma cobrança, nenhuma movimentação.
Era isso que me preocupava.
O silêncio não é paz. Nunca foi. O silêncio é o lugar onde as tragédias são forjadas.
As mãos me coçavam. Não conseguia parar de girar o anel no dedo, o de ouro n***o com o brasão da minha família. Cada volta era um pensamento repetido.
“Por que ninguém veio atrás dela?”
Catarina Piromalli era a chefe da Camorra. Grávida. Desaparecida. E ainda assim, as engrenagens do submundo não rangeram. Não houve convocação de guerra. Nenhum ataque. Nem mesmo uma maldita menção ao desaparecimento dela nos canais internos.
Havia algo acontecendo.
Algo tão subterrâneo que eu não conseguia enxergar nem rastrear. Algo que me fazia desejar que eles já tivessem mostrado a cara, em vez de me deixar nesse vazio.
Naquele silêncio, a única coisa que se movia era o meu pensamento.
Eu rolei a lista de contatos de novo, percorrendo nomes que, em outros tempos, bastariam para virar qualquer guerra a meu favor. Gente que me devia vidas, fortunas, favores que não se contam em dinheiro. Mas hoje… cada nome parecia distante. Como se eu estivesse cercado por um muro invisível que ninguém ousava cruzar.
Ou ninguém queria.
Eu apoiei os cotovelos nos joelhos e passei as mãos pelo rosto. Minha barba crescida raspou na palma. Estava exausto, mas não ousava fechar os olhos. Porque quando eu dormia, sonhava com Catarina andando por um corredor que eu não conhecia, grávida, olhando para trás como se soubesse que eu nunca a alcançaria.
Esse era o meu inferno.
E o mais irônico — o que me preocupava não era ela. Nem Adam, preso lá embaixo, quebrado, mas vivo.
Era o silêncio.
O silêncio desses homens que sempre fizeram questão de me lembrar que ninguém estava acima das regras. Que tudo tinha limite, até mesmo o amor.
E eu sabia que eles achavam que eu tinha ultrapassado esse limite quando tomei Catarina de volta. Quando fiz dela minha refém e meu legado.
Me levantei, impaciente, e caminhei até a parede lateral onde um mapa da Itália ocupava o espaço inteiro. Havia marcações em vermelho em Nápoles, Gioia Tauro, Palermo, Milão. Algumas estavam riscadas com tinta preta — zonas neutras, comprometidas, ou sob domínio estrangeiro.
Peguei o marcador e desenhei um ponto em branco no coração de Roma. Ao lado, escrevi: “Silêncio absoluto.”
O que estava acontecendo?
Será que sabiam onde ela estava e optaram por não vir?
Ou estavam esperando que eu a destruísse, para depois recolher os pedaços e me oferecer uma guerra justa?
A guerra que eles querem.
Ouvi um bip. Virei para os monitores e vi que ela se mexia na poltrona. Um movimento pequeno de seus punhos roçando o braço da poltrona. Fechei os olhos por um instante, só para me dar o luxo de imaginar que ela estava procurando a minha mão.
O celular vibrou. Meu coração deu um tranco tão forte que senti a pulsação nos dentes. Mas quando olhei, era apenas uma mensagem automática de um contato antigo: “Disponível para negócios em Marselha.”
Nada a ver com Catarina.
Nada a ver conosco.
Eu larguei o aparelho na mesa de aço e fiquei olhando para o meu reflexo na tela preta. Um homem que parecia mais velho do que lembrava. Olheiras fundas, a expressão tensa. Eu costumava achar que nada me quebraria. Que nada me faria duvidar de quem eu era. Mas a dúvida era como uma rachadura — começa invisível, depois se espalha até consumir tudo.
E eu estava começando a sentir a rachadura crescer.
Passei os olhos pelos monitores. O corredor continuava vazio. O porão, silencioso. Os dois guardas no saguão, imóveis. Tudo parecia em suspensão. Até o relógio na parede, que marcava 4h12, parecia congelado.
Eu me obriguei a pensar racionalmente.
Se Don Miguel não fizera contato em cinco dias, era porque estava calculando. Pesando opções. E o mesmo valia para Mássimo. E para Don Antonio. Eu não era o único que tinha perdido a paciência. Eles também deviam estar se perguntando até onde eu iria.
Mas eu sabia a resposta.
Eu iria até o fim.
Eu iria manter Catarina segura, mesmo que isso me custasse o pouco que restava do meu império. Mesmo que isso me custasse a minha vida.
Puxei um cigarro da caixa aberta sobre a mesa que algum associado deixou por lá. Eu não fumava havia anos, mas precisava de algo que me lembrasse que ainda estava vivo. Risquei o fósforo com mão trêmula. A chama iluminou meu rosto por um instante, como uma confissão.
Eu queria que ela me visse.
Que ela soubesse que tudo aquilo não era só sobre posse ou orgulho.
Era porque eu nunca consegui amar ninguém como amei Catarina. Porque ela sempre foi a única capaz de me fazer sentir algo que não fosse apenas controle.
Traguei fundo, o cigarro tremendo entre os dedos.
Um plano. Eu precisava de um plano.
Abri o laptop, acionei o protocolo de emergência. Um helicóptero podia chegar em 18 minutos. Um avião, em 30. Mas para onde? Qual lugar no mundo seria seguro o bastante para abrigar Catarina sem que eles a encontrassem?
Talvez... Suíça. Uma das clínicas privadas nos Alpes. Mas seria um erro. Lá os olhos da máfia também enxergavam.
E ela não aceitaria.
Eu a conhecia.
Ela preferia morrer.
Peguei o gravador do monitoramento e rebobinei as últimas seis horas de Catarina. Seus sussurros noturnos. Os pesadelos. Em um momento, ela disse o nome da minha mãe. Depois, de um jeito que partiu o ar da sala ao meio, murmurou meu nome.
— Dante…
Foi tão baixo.
Quase um sussurro de ódio. Ou saudade. Ou ambos.
Encostei a testa contra a tela, os olhos ardendo.
Ela me amava.
Em algum lugar, ainda me amava.
Mas será que esse amor sobreviveria ao que eu fiz?
Se ela descobrisse que Adam estava ali, vários andares abaixo, sem poder andar, sem poder reagir. Se soubesse do que fui capaz para manter ela e o nosso filho a salvo.
O interfone chiou com um estalo metálico. Eu apertei o botão.
— Fala.
A voz do segurança veio baixa, cautelosa:
— Senhor… nenhuma movimentação lá fora. Nenhum veículo suspeito. Tudo calmo.
Calmo.
Essa palavra me dava mais medo do que qualquer sirene.
Eu larguei o interfone sem responder. Passei os olhos pelo laptop. Ali estavam todos os planos que ainda não tinham saído do papel — passaportes falsos, identidades trocadas, um mapa com rotas de fuga para Marselha, Nápoles e Casablanca. Mas eu não podia usá-los ainda. Eu precisava ter certeza de que podia sumir sem deixar rastros. De que podia esconder Catarina e o bebê num lugar onde ninguém — nem Don Miguel, nem Mássimo, nem Contini — pudesse encontrá-los.
E eu ainda não tinha esse plano.
Foi essa constatação que me fez sentir um calafrio na espinha.
Eu sempre tive um plano. Sempre. Desde quando puxei o primeiro gatilho, eu sabia exatamente onde estaria depois de cada passo. Mas agora, cada alternativa parecia tão precária quanto um castelo de cartas.
O que eu sentia não era medo de morrer. Eu já tinha feito as pazes com essa possibilidade.
O medo era outro.
Era de fracassar.
De acordar numa manhã qualquer e descobrir que todos sabiam onde Catarina estava, e matá-la.
Eu esfreguei o rosto outra vez, tentando limpar a ansiedade. Apaguei o cigarro no cinzeiro metálico. No monitor, Catarina se mexia de novo. Levei a mão até o vidro frio da tela, como se pudesse atravessá-lo.
Talvez ela nunca entendesse. Talvez ela passasse a vida me odiando.
Mas pelo menos, estaria viva para me odiar.
E isso, para mim, era mais importante do que qualquer absolvição.
Peguei o celular de novo. Rolei até o nome que eu evitava desde o começo. O único homem em quem eu confiava mais do que confiava em mim mesmo.
Respirei fundo. O silêncio era insuportável.
Mas havia chegado a hora de romper ele.
Toquei no ícone de chamada e esperei.
O sinal demorou três toques antes de ser atendido.
A voz dele veio rouca de sono, mas alerta:
— Dante.
Fechei os olhos, sustentando o telefone junto à têmpora.
— Preciso de você. — Minha voz saiu baixa. — Preciso descobrir o que Don Miguel está tramando. E preciso de um lugar seguro.
Silêncio. Um silêncio que, por fim, não era vazio.
Era só o começo do próximo movimento.
Eu não ia perder ela de novo.
Nem meu filho.
Nem tudo que restava do homem que fui.
Nem que eu tivesse que virar pó antes.