"Quando a lua sangrar, não olhe para o céu.
Olhe para a terra —
pois é dela que nascerá o fim...
ou o começo."
— Fragmento da Profecia Velada,
manuscrito perdido da Ordem de Lysara
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Em 300 a.C., o mundo vivia uma era de ferro e fogo. Homens erguiam impérios com sangue e destruíam reinos por areia. Cada território valia mais do que a vida de mil inocentes. A era das grandes guerras se espalhava como peste, alimentada por medo, cobiça e ignorância. E entre as ruínas dessas batalhas, um outro conflito crescia silenciosamente — uma guerra ancestral contra o que não se compreendia.
As mulheres que herdaram o dom da Essência — que ouviam o sussurrar da terra, sentiam a dança do fogo, moldavam a água e guiavam os ventos — passaram a ser caçadas. Chamadas de amaldiçoadas, tratadas como aberrações, foram decapitadas, queimadas vivas ou enterradas sob o peso da ignorância. O mundo havia esquecido de essência da terra, e renegava suas filhas. Mas o que os homens não sabiam... é que as verdadeiras Filhas da Terra jamais se deixariam exterminar sem lutar.
Enquanto os exércitos dos reis marchavam, em silêncio, nas florestas antigas onde as vozes dos deuses ainda ecoavam, um novo ritual estava prestes a ser selado. Uma bruxa — não, uma filha da Terra — cansada da matança de seu povo, decidiu lançar um feitiço proibido. Um feitiço de p******o, mas também de punição. Acreditava-se que vinha da época dos Primeiros Suspiros de Thérion, quando os deuses caminhavam entre as criaturas e ensinavam sua língua poderosa. Um encantamento que invocava os Vigias do Véu, guardiões criados com a própria dor da terra e alimentados por um sacrifício.
Mas como toda Essência poderosa, ela exigia um preço.
— Anda, Ágata, não temos muito tempo! — Ayanna corria pela trilha de raízes com a bolsa de couro repleta de ervas sagradas e um frasco com o último sangue de sua mentora, Celeste, a Alta-Sacerdotisa morta pelos ditos Purificadores.
— Espere... está escuro demais. — disse Ágata, sua irmã mais nova, ofegante logo atrás.
— A Lua Rubra precisa estar no ápice do céu. O véu entre os mundos está mais fino agora. — Ayanna respondeu, com os olhos fixos na maior lua de sangue já vista desde a Era da Criação.
Ágata hesitava. Mesmo conhecendo o passado de dor, não sabia se aquele era o caminho mais seguro a se fazer. Mas confiava em sua irmã, treinada desde a infância por Celeste, a mais poderosa filha da terra que já se ouviu falar. Agora, restava a ela a coragem de concluir o que Ayanna começara.
— Pegue isto. — Ayanna entregou-lhe o colar com a pedra de Orun, uma relíquia de Essência pura que Celeste havia guardado por toda a vida. Quando a luz da lua atravessava a pedra, ela revelava os véus ocultos entre os mundos.
— Espero que compreenda por que estou fazendo isso, irmã.
— Eu queria que houvesse outro jeito... — Ágata disse, com os olhos úmidos.
— Não há. E se houver... será tarde demais. Só posso confiar em você. Você carregará o legado.
Elas chegaram ao Círculo das Ancestrais, onde jaziam os corpos das Filhas da Terra assassinadas ao longo dos séculos. Um santuário secreto, impregnado de poder primal. Ali, Ayanna chamaria por suas irmãs espirituais.
Com as ervas do ritual preparadas, ela lançou cada uma na tigela ritualística enquanto murmurava na língua esquecida dos deuses.
O ar se tornou denso. A floresta ficou em silêncio. Nem corvos, nem folhas, nem vento. Ayanna pôs os pés no centro do círculo, sentindo a Essência subir por seu corpo. Ágata tremia ao seu lado, uma mera observadora da grandeza que se erguia.
— Irmãs da Terra, suas vozes ecoam sob o solo, seus lamentos atravessam o tempo. Somos perseguidas por levar adiante o que a terra nos deu: o dom da cura, da conexão com a natureza. Hoje, deixo escorrer meu sangue por vocês. Que minha dor seja ponte. Que minha morte seja semente. Que minha alma desperte os Vigias do Véu!
Ayanna cortou os pulsos. Seu sangue escorreu para a tigela. A Essência da relíquia reagiu. A lua iluminou tudo em tons de vermelho, roxo e azul. Um vórtice de luz tomou forma. Os olhos de Ayanna ficaram brancos como neve, e sua pele começou a ressecar — sinal de que o espírito dela era consumido pelo feitiço.
Antes que a vida se esvaísse, olhou para Ágata e assentiu.
Ágata, com as mãos trêmulas, segurou o colar, mergulhou-o na tigela e entoou o encantamento final. O colar brilhou intensamente e canalizou um poder antigo, o poder de todas as Sacerdotisas caídas. Mil vozes sussurravam ao mesmo tempo em seus ouvidos.
— Ka-orun veyra-hael lyth.
O corpo de Ayanna levitou. Com a voz de uma legião, ela proferiu:
— Uma nascerá do sangue e da terra. Sua Essência será inconfundível. Ela trará o fim da escuridão dos homens e a morte aos que resistirem.
E então, ela caiu. Vazia. Silenciosa.
Ágata, tomada pelo desespero e pelo dever, colheu o sangue encantado da tigela e o selou em um frasco de vidro. Enterrou sua irmã ali mesmo, pedindo aos deuses, que a conduzisse à paz.
Naquela noite, cinco homens beberam do sangue da Essência. E tornaram-se os primeiros Vigias do Véu — guerreiros sobrenaturais, protetores das Filhas da Terra.
Na manhã seguinte, a lua havia partido, mas o sol não retornou. Um nevoeiro denso cobria tudo. Os pássaros estavam calados. Nenhum som de espada, nenhum riso de criança.
Ágata sentiu o presságio.
— Que Thérion tenha piedade... — murmurou da janela.
Mas no fundo, sabia: algo havia sido despertado. Algo que se recusaria adormecer novamente.