04

1217 Words
Maju narrando Eu acordei com o barulho que não sai da cabeça de ninguém do Rio: helicóptero mordendo o céu. Era cedo, mas já parecia tarde dentro de mim. Liguei a TV sem pensar e tava lá: “Operação no Complexo do Alemão e da Penha”. Letreiro correndo, âncora falando rápido, câmera no alto mostrando telhado, poeira, caveirão enfiando a cara na ladeira. Meu estômago virou. O celular ficou virado pra baixo na mesa, mas eu sabia que ele tava ali, feito bicho respirando: nada do Rodrigo. Abri, fechei, abri de novo. Última mensagem dele: “Tô entrando.” Só isso. Sem coração, sem cuidado. Eu digitava “Se cuida” e apagava. Digitava “Eu te amo” e apagava. No fim, só encostei o aparelho na bochecha fria, como se encostar trouxesse ele de volta. — Anda, fala comigo… — sussurrei pro nada. A chaleira apitou. Joguei café no coador, derramei água, o cheiro subiu forte, azedo de preocupação. Meu olho grudado na TV. “Tiros trocados em várias regiões dos complexos”, “moradores relatam pânico”, “equipes da Core, Choque e Bope na ação”. O repórter falava “ação”, mas meu peito traduzia pra “guerra”. A campainha tocou três vezes, aquele código velho da minha irmã. Abri a porta e a Lorena entrou com a cara de sempre: cabelo preso às pressas, cropped, short e uma sacola de besteira na mão. — Cadê o café? — ela já foi falando, como se eu não estivesse andando com a alma pendurada num prego. — Tá na cozinha. — voltei pro sofá, abraçando as pernas. — Ele não me respondeu ainda. — Óbvio que não, Maju. Ele tá no olho do furacão. — Lore encostou a sacola na mesa, tomou a caneca da minha mão e bebeu sem cerimônia. — Respira. Respirar era o que eu mais tava tentando. Só que o ar entrava pouco. A TV cortou pra uma rua que eu reconheci de longe. Eu já fui ali comprar pastel com a minha mãe. Agora tinha soldado, tinha escudo, tinha poeira subindo como se a favela toda tivesse sido varrida de uma vez. — Caraca, olha isso… — Lore se aproximou da tela, sem medo de ver de perto. O repórter falava “suspeitos”, “apreensões”, “prisões”. Eu só ouvia “vida”, “vida”, “vida”. Meu celular vibrou. Eu pulei. Notificação de portal de notícia. O coração despencou de novo. — Ele tá bem, Maju. — Lore se jogou do meu lado, batendo de leve na minha coxa, como quem chama cachorro medroso pra perto. — Esse homem é treinado. Nasceu pra isso aí que ele tá fazendo. Vai chegar cansado, fedorento e cheio de marra, mas vai chegar. Tu sabe. — Sei não. — a voz saiu quebrada. — Eu só… eu só queria ouvir a voz dele. Um segundo de silêncio. Aí a Lore, do nada, soltou: — Pô, mas também… tanto bandido gostoso morto hoje, olha isso, Maju… Eu virei o pescoço devagar, só pra confirmar que eu ouvi certo. Ela apontou pra TV como quem olha vitrine. — Lore, pelo amor de Deus, garota… toma juízo. — Tá, tá, desculpa. — ela riu, meio sem graça, empurrou minha cabeça de leve pro ombro dela. — Tô tentando te distrair. Eu sei que é pesado. — É. — respirei fundo. — É pesado. A gente ficou calada uns segundos, só ouvindo o barulho da TV e dos helicópteros cortando a fresta da janela. Lá fora, o dia tava aquela luz r**m de tempo nublado, um cinza que encosta no osso. Eu lembrei da noite passada, do celular vibrando na sala, da sensação de buraco na barriga. Ele jurando, com aquela lábia dele, que era “de trabalho”, “do amigo”, “coisa de operação”. Eu encostei a testa no joelho e senti vontade de chorar de novo — não por ontem, por hoje. Porque por mais que eu quisesse ter raiva, a verdade é que eu tava com medo dele não voltar. — Maju… — Lore ajeitou minha mecha atrás da orelha. — Se ele te escolheu pra ser mulher dele, ele também te escolheu pra aguentar dia assim. Não é justo, eu sei. Mas é real. — Eu não pedi pra ser heroína de ninguém. — falei de boca mole. — Aí que tá. — ela sorriu de canto. — Tu não é heroína. Tu é braba. E braba aguenta até a hora que ele pisa na sala de novo. Aí tu surta, xinga, fala o que tiver que falar… e depois deita e dorme com a consciência que tu fez o que dava pra fazer: esperar. Meu celular vibrou de novo. Eu quase deixei cair. Mensagem de áudio. Meu coração subiu pela garganta. Abri tremendo. — Tô vivo. — ele falou, a voz seca, barulho de rádio no fundo. — Mais tarde te ligo. Só isso. Duas palavras e uma promessa à toa. Eu segurei a vontade de responder com um textão. Gravei um áudio de dois segundos: — Se cuida. Apaguei. Gravei outro: — Eu te amo. Apaguei também. No fim mandei só: — Ok. Lore revirou os olhos. — Aí também não ajuda, né? — riu. — Manda logo “se cuida” e “tô aqui”. — Depois. — respondi, apertando o aparelho nas duas mãos. — Deixa ele trabalhar. A TV trocou pra um helicóptero que mostrava o caveirão manobrando num beco estreito. Uma senhora fechou a janela com pressa. Um menino puxou o cachorro pra dentro. Eu pensei no Rodrigo andando ali por dentro sem olhar pra trás, corpo no automático, cabeça fria. Pensei no menino que ele foi, correndo no mesmo lugar descalço. E, pela primeira vez naquele dia, senti que o choro vinha limpo — não de raiva, mas de luto pelo que a gente é quando o mundo faz barulho demais. — Vem cá. — Lore abriu os braços, eu entrei. A gente ficou ali, duas irmãs grudadas no sofá, o café esfriando na mesa, a TV falando alto demais, o celular silencioso de novo. — Quando ele chegar, eu saio. Deixo vocês discutirem a relação e depois a gente fofoca. — Tu não presta. — eu ri, ainda molhada por dentro. — Mas te amo. — ela deu um beijo na minha testa. O helicóptero fez outra curva. Eu apertei o celular entre os dedos, como quem segura amuleto. Fechei os olhos e prometi em pensamento: se ele voltar hoje, eu não vou dormir sem dizer o que ficou preso na garganta. Nem o que sobra, nem o que falta. E, se ele não falar… eu falo pelo dois. Abri os olhos de novo. Na tela, a favela parecia menor vista de cima. Aqui de baixo, ela é um universo. E, dentro dele, eu era só uma mulher esperando uma porta abrir, um “cheguei” no w******p, um barulho de chave que diz mais do que qualquer notícia. — Bora fazer outro café? — Lore perguntou. — Bora. — respondi, levantando. — E deixa o açúcar por perto, que hoje o dia tá amargo.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD