Capítulo 4
Narrado por Cíntia
Meus pais me deixaram com o mundo quando eu tinha nove anos. Não me deram aviso, nem beijo, nem conselho. Só sumiram. Um dia estavam lá, brigando, usando droga, quebrando tudo dentro daquele barraco imundo onde a gente morava. No outro, só sobrou eu e o cheiro de podre no colchão.
Minha mãe era uma tremedeira ambulante. Fumava pedra no canto da laje enquanto meu pai vendia as calcinhas dela pra comprar mais. Não tive infância, tive sobrevivência. Brincar? Nunca soube o que era isso. Cresci escutando gemido vindo da sala, cheiro de sangue no banheiro, e grito de vizinho chamando a polícia.
A única boneca que tive eu achei no lixo. Sem cabeça, com as pernas mordidas de rato. Eu limpei, enrolei num pano sujo e dormia com ela no peito, fingindo que era minha irmã. Quando a fome batia, eu pegava comida do cachorro do vizinho. Quando chorava, era em silêncio. Porque se fizesse barulho, minha mãe me batia com chinelo ou com o que estivesse na mão.
O amor não nasceu comigo. Nem cresceu. Foi sufocado antes mesmo de dar o primeiro choro.
Aos onze, comecei a dormir na calçada. Minha mãe me expulsava toda vez que estava na abstinência. Ela me olhava de um jeito nojento, e eu fingia que não via. Uma vez um cara passou a mão na minha b***a e disse “vai crescer bonita, hein”. Contei pra ela no dia seguinte, e ela me chamou de vagabunda. Disse que eu tava inventando porque era carente. Foi nesse dia que decidi sair de casa.
Saí com o que tinha no corpo. Chinelo furado, short manchado de sangue seco e uma blusa rasgada. Ninguém notou minha ausência. Ninguém procurou. Ninguém deu falta.
Fui morar no centro, dormia no papelão, embaixo de marquise. Dormia com medo, com fome. Aprendi a pedir trocado, a correr quando viatura passava e a esconder faca no sutiã. Vi menina da minha idade vendendo o corpo. Vi menino se enforcando com fio de luz no poste. Vi gente sendo estuprada no beco e ninguém fazendo nada.
Com treze, fiz meu primeiro programa. Um cara de terno, barba branca, sotaque de gringo. Me levou pra um hotel barato, me deu cinquenta reais e disse que eu parecia com a filha dele. Vomitei no banheiro depois. Mas comi um lanche e comprei uma calcinha nova no camelô.
Dali em diante, aprendi a usar o corpo como defesa. Como arma. Como escudo.
A beleza virou minha proteção. Meu rosto bonito, minha b***a firme, minha língua afiada. Comecei a ganhar dinheiro. Dormia em pensão barata, comprava maquiagem roubada, usava perfume de mostruário de farmácia.
Um dia conheci uma menina chamada Luma, que fazia ponto na Lapa. Ela me falou do baile no Morro do Turano. Disse que as minas lá não passavam fome, que os homens protegiam quem era “do bonde” e que o dono do morro — um tal de Marratimah — não deixava ninguém encostar nas garotas sem pagar alto.
— Lá é diferente, Cíntia. Lá, quem é esperta vira rainha.
Rainha.
Esse nome soou como sonho.
Subi o morro com o coração apertado, mas o olhar firme. Sabia que ali em cima era outro jogo. Não dava pra dar mole, nem baixar a cabeça. Vesti meu melhor short, amarrei o cabelo num coque e fui pro baile. Quando pisei no chão batido da quadra, senti que era ali que eu ia crescer.
Vi gente dançando, se esfregando, rindo. Vi arma na cintura, bebida rolando solta, som estourando o ouvido. E vi ela. A Heloá.
Encostada num canto, cigarro na mão, olho de gata e sorriso de quem já sabia o que queria. Fui me aproximando devagar. Ela me analisou dos pés à cabeça e disse:
— Nunca te vi aqui.
— Primeira vez.
— De onde cê veio?
— Do inferno. Respondi
Ela riu. Me estendeu um copo de vodka e disse:
— Então vai se sentir em casa.
Daquele dia em diante, a gente não se largou mais.
Heloá foi minha primeira amiga de verdade. Me ensinou a rebolar do jeito certo, a falar com os caras sem parecer desesperada, a usar o olhar como faca. Me emprestou roupa, me arrumou barraco pra dividir e me protegeu de muito macho escroto que achava que podia tudo.
Moramos juntas desde então. Dividimos tudo: cama, espelho, comida, raiva. Ela sempre foi mais ousada que eu, mais perigosa. Mas a gente se completava. Eu era mais quieta, mais observadora, mais fria. Ela era furacão.
Com o tempo, viramos lenda do baile. Quando a gente entrava, o som parava. Marratimah já tinha comido ela umas vezes, mas nunca assumiu. E ela também nunca implorou. Tinha orgulho demais pra ser segunda opção.
Agora apareceu a novinha. Dandara.
Ela chegou como quem não quer nada. Calada, tímida, vestida de florzinha, com aquele jeito de quem nunca viu um fuzil de perto. Mas bastou uma semana pro Marratimah botar ela debaixo da asa. Novo barraco, roupa cara, comida no prato. Novinha virou princesa.
Heloá odiou de cara. Eu observei.
Vi como ela se vestia tentando agradar. Como olhava pra todo mundo com medo. Como fingia que era forte, mas tremia por dentro. Ela parecia comigo. Lá de trás. Antes de virar gelo.
Mas aqui no morro, a fraqueza atrai sangue.
Hoje, quando deito no colchão ao lado da Heloá, penso em tudo que passei. No abandono, na fome, no medo. E percebo que sobrevivi ao que muita gente não aguentaria um mês. Tenho orgulho da mulher que me tornei, mesmo sendo chamada de p**a, de vagabunda, de lixo.
Essas palavras não me ofendem mais. Porque quem me chamava de filha era quem me largou pra morrer. E quem me acolheu, mesmo sendo no crime, me deu mais abrigo do que a p***a da minha mãe algum dia pensou em dar.
A diferença entre mim e essas novinha que chegam chorando é que eu não espero salvação. Nunca esperei. Eu sou minha própria escapatória.
Sou ferida aberta que aprendeu a cicatrizar com sangue.
Sou Cíntia.
A v***a que o mundo não quis.
Mas que o morro teve que engolir.