Capítulo 1 — Grades Invisíveis
Isadora
Acordo antes do despertador por causa do chiado dos rádios. Eles nunca dormem. O som entra pelas frestas das portas como vento frio: códigos, apelidos, alertas. “Movimentação na curva do Onze”, “manter posição”, “confere o beco sem saída”. A casa respira regras e segredos, e eu respiro com cuidado para não tropeçar em nenhum.
O teto do meu quarto tem pequenas rachaduras que se cruzam como ruas vistas do alto. Eu as conto quando a ansiedade ameaça roubar o ar. Hoje paro no oito quando alguém bate de leve.
— Menina? — a voz de Dona Nilda é algodão. — Posso?
— Pode, Nilda.
Ela entra com uma bandeja: café preto, pão com manteiga, um pedaço de mamão em fatias. O avental limpo e a correntinha de Santa Rita brilham. Nos olhos, a mesma pergunta de todas as manhãs: “você dormiu bem?”. Eu minto com um sorriso.
— Teu pai já desceu — ela sussurra, como se o nome dele fosse uma senha que pudesse acionar alarmes. — Hoje tem visita. Gente da… logística.
“Logística.” A palavra é bonita, mas por trás dela está o mundo que eu tento não nomear. Sombra dá nomes neutros às tempestades.
— Vou tomar café e desço — digo.
— Toma cuidado com aquilo que você fala, Isa — ela alerta, ajeitando a franja que insiste em cair no meu rosto. — Você é boa, mas às vezes é fogo atiçado.
Sorrio com ternura. Se Nilda é algodão, eu sou fósforo tentando não arranhar a caixa. Assim que ela sai, abro a gaveta e confiro o celular. Duas notificações: “Atualização do sistema” e “Localização compartilhada com S—”. Desligo a tela antes que a letra inteira me olhe nos olhos.
Visto uma calça jeans escura, blusa preta de alças, a jaqueta que Nilda diz que me “dá postura”. Desço as escadas sentindo o cheiro de café se misturar ao de óleo de arma, por mais que tentem esconder com aromatizador. Na sala, dois homens conversam em voz baixa. Reconheço um deles: n**o Célio, segurança veterano, que me cumprimenta com respeito sincero.
— Bom dia, princesinha.
— Bom dia, Célio.
A palavra “princesinha” deveria aquecer, mas nas paredes desta casa ela vira moldura. Sombra me espera no escritório, porta entreaberta. O rádio sobre a mesa lateja luzes. Ele se levanta quando me vê. É um homem de sombras mesmo à luz do dia: ombros largos, barba rala, olhar que pesa.
— Minha filha — fala com uma brandura que só existe quando somos dois. — Senta.
Sento. Ele analisa meu rosto como quem confere um mapa antes de entrar no território inimigo.
— Falaram que você pediu de novo aquele cursinho noturno — começa, direto. — Eu entendo tua vontade, Isadora, e não sou teu inimigo.
Quero dizer que o inimigo não se define pelo que diz, mas pelo que impede. Engulo.
— Eu só quero estudar sem professor particular, pai. Quero andar de ônibus, perder a hora, ter prova surpresa… coisas idiotas de gente normal.
Ele encosta os dedos, formando um triângulo, a aliança batendo discreta.
— Coisas de gente normal não cabem na nossa vida. — A frase cai como sentença. — “Gente nossa cuida da sua matrícula.” Você terá o que é preciso. Em segurança.
— Segurança ou prisão? — A pergunta escapa antes que eu a dome.
Os rádios estalam. Ele me olha mais fundo. Por um momento, vejo passar no seu rosto um relâmpago de cansaço.
— Não me provoca, Isadora.
A voz de Nilda atravessa o corredor:
— Seu Sombra, desculpe interromper… Seu compadre já tá lá embaixo.
Ele suspira e se aproxima. Beija minha testa.
— Eu faço o que faço para te manter viva. A gente conversa depois.
A porta se fecha e o escritório volta a ser um bunker. Fico alguns segundos parada, com a impressão de que o ar pesa mais quando ele está por perto. No espelho do corredor, minha imagem devolve uma garota em postura ereta que aprendeu a não chorar de portas abertas.
Volto à cozinha. Dona Nilda me espera, percebendo o que não digo.
— E aí?
— A sentença é a de sempre — respondo, tomando o café que já esfriou. — “Segurança”.
Ela se senta de frente para mim, mão quente sobre a minha.
— Tua língua é afiada, mas teu coração é mais. Só não deixa que ele te leve onde teus pés não podem correr.
— Como se eu pudesse correr — ironizo, e imediatamente me arrependo. — Desculpa.
Nilda sorri de canto.
— Teu pai tem olhos no morro inteiro, mas só dois aqui dentro. Um tá cansado. O outro tá com medo. Não cutuca.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, apenas o rádio da sala conversando com outros rádios invisíveis. De repente, vozes do lado de fora, pneus, um portão batendo. A visita. Nilda se levanta para dar ordens sobre o almoço; eu lavo a caneca, gesto sem pressa que me dá a sensação infantil de controlar alguma coisa.
Subo para o quarto. Precisava respirar onde a minha respiração não ecoa. Fecho a porta. O celular vibra no bolso: Tainá.
“Sumida, meu amor. Ainda viva?”
Sorrio. Tainá é a parte do mundo que ainda me chama por um nome que não dói.
“Viva e dentro da caixa.”
“Sábado tem coisa. Te falo.”
“Coisa?”
“Coisa.”
Guardo o aparelho, ainda sorrindo, e decido organizar a estante para fingir movimento. Entre um livro e outro, encontro um envelope dobrado, daqueles simples, papel pardo, preso atrás do volume de “O Cortiço”. Meu coração acelera. Faço o gesto automático de olhar a porta, como se paredes tivessem olhos. Abro.
Dentro, um pedaço de papel de caderno, arrancado com pressa, letras apertadas de quem escreveu fugindo do relógio:
“Baile do Fio, sábado.”
As quatro palavras batem no meu peito como se fossem mais do que um convite — uma brecha. Uma frase curta capaz de deslocar eixos. Sinto o suor na palma das mãos, as costas esquentando como se eu tivesse acabado de correr. O rádio estala de novo, agora distante, e eu imagino a noite: luzes espalhadas pela laje, batidas que sobem do chão, corpos anônimos que existem sem sobrenomes. Uma máscara de renda, talvez. Um nome que não é o meu.
Deito o papel sobre a cama e fecho os olhos. A imagem de Sombra surge como um aviso: “olhar é convite, e convite custa caro”. Eu sei. A vida me treinou para recusar. Ainda assim, há um pulso dentro de mim que não obedece a ordens. O fósforo roça a caixa.
Batem à porta. Endureço os ombros.
— Isa? — n**o Célio. — Teu pai pediu pra você não sair hoje. O movimento lá fora tá… chato.
— Eu sei, Célio. Vou ficar quieta.
Ele hesita.
— Qualquer coisa, grita.
Ouço seus passos se afastando. Abro os olhos. O papel me olha de volta, insolente e promissor. Sento na beira da cama, o coração tropeçando nos próprios passos. Entre a segurança que me sufoca e a vertigem que me chama, uma linha fina e cortante.
— “Sábado” — repito em voz baixa, como quem testa a palavra na boca.
Dobro o bilhete com cuidado e o escondo na capa dura do caderno de biologia. O lugar menos romântico que encontrei para algo que me acende. Depois, fecho a janela, apago a luz, encosto a testa no vidro frio. Lá fora, a Rocinha vive, vibrante e perigosa, o mundo de Sombra. Aqui dentro, eu existo, contida e pulsando, a filha dele.
Eu sei o preço da curiosidade. Eu sei o custo do convite. Ainda assim, uma certeza pequena, teimosa e luminosa se acende como vela no quarto escuro:
Eu quero ir. E, desta vez, talvez eu vá.