Capítulo 4 — Manual do Desapego

1522 Words
Lucas “Não se apegar” não é filosofia; é hábito. Igual escovar os dentes, passar filtro solar, responder com emoji quando a conversa ameaça pedir compromisso. Eu funciono bem assim: coleciono histórias porque elas não cobram mensalidade. Memórias, por outro lado, são boletos com juros. No fim da tarde, vou pegar uma camisa branca básica num shopping da Zona Sul e esbarro em Bruna na vitrine de uma joalheria. O destino tem senso de humor: ela, de vestido verde que realça a coragem, eu, de bermuda e sandália, cara de quem veio comprar meia. — Lucas. — O sorriso vem antes da bronca. Bruna sempre foi boa em iniciar diálogos como quem toca música e puxa o fio. — A gente podia conversar. — A gente sempre pode conversar — respondo, estendendo os braços num abraço sem promessas. — Só não podemos rebobinar fita. A tecnologia não ajuda. Ela ri de leve, mas não recua. — Você some e volta como se o tempo fosse um aplicativo no seu celular. — Às vezes é — digo, e faço cara de quem está apenas constatando física básica. Bruna pega uma pulseira fina, passa no pulso como quem ensaia algemas elegantes. — Eu errei naquilo de te cobrar rotina — admite, sincera. — Você me deu o que disse que podia dar. Eu quis mais. Tentei te transformar no “namorado do domingo”. Você pertence aos sábados. — Não pertenço a dia nenhum — devolvo, gentil. — Eu só passo por eles. — Eu sei. — Ela suspira. — Só queria… passar mais. Fico em silêncio um segundo. Ela merece respeito, não ilusão. — Se eu voltar, volto igual — aviso, com a mesma sinceridade que já nos salvou de brigas feias. — E você merece algo que eu não tenho pra entregar. O que eu tenho é café, risada e fuga coordenada quando o garçom oferece sobremesa. Bruna morde o lábio, desviando o olhar para a vitrine. — Você é charme com manual de instruções — conclui, divertida e um pouco exausta. — E eu sei ler. Só não quero mais esse modelo. — Atualizações saem de três em três anos — brinco, apontando pra mim como se fosse um software duvidoso. — Talvez eu vire assinatura. Ela encosta a cabeça no ombro por dois segundos, um adeus curto que não vira cena, e solta: — Cuida de não confundir liberdade com medo. De vez em quando é a mesma cara. — Obrigado pelo bug report. — Dou um beijo na testa. — E fica linda de verde. Saio dali leve, mas com a frase dela furando alguma bolha. Liberdade e medo, mesma máscara. Guardo o pensamento no bolso de trás, junto da carteira. No quiosque do lado de fora, encontro o Rafa com um mate gelado. Ele me vê de longe e já levanta o copo em saudação. — Te vi com Bruna — ele solta, direto. — Tudo certo? — Tudo adulto — respondo. — O que, por aqui, significa “sem novela”. — Então vamos à novela existencial do dia. — Ele apoia os cotovelos no balcão. — O que você tá procurando, Lucas? — Promoção de camisa branca — respondo, automático. — No atacado da alma. Dou risada. Rafa não compra minhas piadas de estoque. — Tô procurando a próxima história boa — digo, sincero o bastante para não virar pregação. — Eu gosto do instante em que tudo faz sentido sem precisar de relatório. A onda certa, o beat que entra, a risada que encaixa. Depois… depois vira arquivo. — Você não acredita em “depois” — ele diagnostica. — Acha que futuro é marketing. — Futuro é reunião às nove da manhã — retruco. — Já fui, já dormi, não recomendo. Rafa balança a cabeça, um sorriso de canto. — Um dia você vai estar num lugar que não te deixa sair “liso” — ele avisa. — E vai ter que decidir se fica. — Se ficar, não é prisão. É vontade. — Dou de ombros. — Até lá, eu caminho. — Caminha com tênis, por favor — ele lembra. — Fiquei sabendo do plano de sábado. — Informação corre mais rápido que notícia. — Ergo o copo imaginário. — Sim, depois do jantar, Rocinha. Quero ouvir o set do Caio num lugar que respira música por necessidade, não por status. — E respeita regra — Rafa insiste. — Eu confio em você, mas confio mais quando você deixa o relógio no criado-mudo. — Já aprendi a lição. — Sorrio. — Look básico, grana no bolso, medo zero. — Medo zero não existe — ele corrige, sério. — Existe medo sob controle. Melhor amigo do respeito. Guardo a frase próxima do bug report da Bruna. Talvez eu esteja colecionando manuais sem perceber. Em casa, começo os preparativos pro baile. Abro o armário como quem abre um setlist: camisa branca lisa, camiseta preta por baixo para caso a noite peça anonimato; calça escura que aguenta escada e suor; tênis sem marca aparente, solado que não escorrega. Relógio, não. Pulseira de couro, sim. Corrente, não. Carteira no bolso da frente, dinheiro trocado numa doleira simples que vai por dentro. Telefone com bateria cheia, mas modo avião a partir do “partiu”. Documento, sempre; vaidade, nunca. Perfume comedido: quero ser lembrado pela conversa, não pelo rastro. Desde moleque, aprendi que roupa é linguagem. Tem lugar que espera que você grite; tem lugar que espera que você entenda silêncio. A Rocinha, pelo que já vi e pelo que amigos me ensinaram, prefere o segundo idioma. Enquanto separo tudo, o telefone acende. Bianca. “Look de hoje?” “Camisa branca. Clássico. Te combina.” “Ótimo. Oito em ponto.” “Oito em ponto.” Respiro, olho pro espelho. Tem dias em que meu rosto parece uma caricatura de mim mesmo. Hoje não: é só um cara pronto para cumprir um jantar e seguir um som. Passo gel no cabelo para domar a rebeldia que dá charme na praia e problema no asfalto. O interfone toca. Rafa. — Vim verificar inspeção de segurança — ele avisa, entrando com a cara de fiscal da minha maturidade. — Deixa eu ver essa doleira. — Tá aqui. — Mostro o dinheiro trocado, a nota de vinte na carteira para “táxi honesto, caso tudo mais falhe”. — Bravo. — Ele testa o zíper. — E um conselho: se o n**o Célio olhar torto, você vira sombra. — Engraçado você falar “sombra” — respondo, sem saber de nada além do peso da palavra. — Ficar invisível às vezes é tudo que eu quero. Ele me observa um segundo, depois dá dois tapinhas no meu ombro. — Eu te zoei do futuro, mas tem uma coisa nele que você vai gostar: quando finalmente der vontade, você vai reconhecer. — Se der vontade, eu não fujo — garanto. — Você foge de tudo — ele ri. — Menos de você mesmo. E é aí que mora o perigo. Rafa vai embora antes do meu horário com a Bianca, me deixando com meia dúzia de frases que ficam rodando como música de elevador. Pego as chaves, confiro a carteira, desço. O jantar com a Bianca é bom. Ponto. Restaurante bonito, conversa gostosa, vinho na medida. Ela fala de um projeto novo, eu falo do mar como quem descreve um lugar que só eu visito. Quando a sobremesa chega, eu me lembro da minha promessa silenciosa de não sumir; fico. Levo-a em casa sem pressa, beijo a testa dela e o canto da boca num gesto que diz “obrigado” sem dizer “até sempre”. Ela entende. A gente se dá bem porque cada um respeita o terreno do outro. De volta ao carro, ligo o motor. A cidade mudou de tom: menos trânsito, mais possibilidade. Confiro a hora: 1h17. Perfeito para o plano. O telefone vibra. Caio: “Set vai começar 2h. Entra comigo que passa liso.” Sorrio sozinho. Passa liso é senha e aviso. Eu não quero privilégio; quero caminho certo. E, agora, tenho porta de entrada. Respondo: “A caminho.” Jogo o celular no suporte, deixo o som numa base baixa para não atrapalhar a leitura do morro quando chegar. O volante encaixa na mão como se fosse extensão do corpo. Sigo pela orla, cruzo o túnel, a cidade me engole e me devolve do outro lado. Em algum lugar da noite, um DJ prepara um mashup que vai acender a laje inteira. Em algum outro lugar, alguém que eu não conheço veste uma máscara de renda e escolhe um nome para usar por três horas. Eu escolhi o meu papel: entrar calado, ouvir alto, sair inteiro. Aventuras acima do bom senso não são bravatas; são mapas quando você sabe ler. E, por mais que eu diga que não me apego, alguma parte de mim — a parte que entende o que o corpo sabe antes da cabeça — pressente que hoje eu não vou somente colecionar mais uma história. Vou buscar um som que, talvez, fique.
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