Capítulo 14 — Senhas de Respeito

1505 Words
Lucas A laje pulsa como um miocárdio sem dermatologista: irregular, quente, perfeito no erro. Caio segura o grave como quem pastoreia boi bravio; a luz corta a fumaça em diagonais que riscam olhos e promessas. Rafa me dá um copo d’água, bate no meu ombro e aponta a entrada lateral, onde n**o Célio reorganiza o mundo com dois gestos e um “calma, família”. — Hoje tá redondo — Rafa diz, voz colada à batida. — Redondo com quinas — respondo. — Mas aprendi a virar sem esbarrar. O paredão respira, as caixas se inclinam num ângulo perigoso, a multidão abre e fecha por maré. Na terceira música da sequência, vejo um menino — sandália frouxa, camisa do Flamengo — se pendurar no gradil para enxergar o passinho. O corpo dele escorrega numa coreografia que não estava no script. Vai cair dentro do grave. O tempo, então, rasga. Não penso, entro. Duas passadas, cotovelo baixo, a mão no peito do garoto, giro o eixo, tira da zona do som. Sinto o ar quente das caixas no meu rosto, cheiro de fio aquecido, o grito do DJ contido no microfone. O menino pesa menos que a culpa de quem erraria o passo. Eu o devolvo para a mãe, que chega branca de susto. — Tá tudo certo — digo, sem heroísmo. — Fica um passo atrás da fita, mãe. Aqui o ar puxa. Ela me agarra a mão, beija o dorso, olhos d’água. — Deus te pague, filho. Sorrio com um canto, sumo sem holofote. O truque é simples: quem entra para ajudar precisa sair antes de virar assunto. Reapareço no bar, peço outra água. O bartender me reconhece com o olhar que lida com ressaca e redenção. — Respeito chama respeito — ele fala, colocando o copo. — E barulho chama barulho — devolvo, rindo baixo. Nego Célio surge à minha esquerda como quem saiu da parede. Não faz cena. Olha. Diz duas palavras que soam como carimbo: — Sabe entrar e sair. — Tô aprendendo o dicionário — respondo. Ele assente milímetros, já de volta à coreografia de abrir caminho. Guardo a frase no bolso de dentro. Há lugares em que isso vale mais que brinde de camarote. Na “meia-lua” da pista, Caio desce o BPM, deixa espaço para voz antiga por cima do beat — melodia que cheira a cozinha de tia, com a rua batendo palma em volta. A multidão relaxa. Aguço o ouvido: rumor é música sem DJ, e o morro compõe boatos como quem assovia. Dois caras falam rente, encostados na mureta. — Tu viu que o Caveira tem filha mesmo? — Dizem que existe, intocável. — Desce de máscara, quando desce. — Quem encosta, some do mapa. O gelo — que o bartender acabou de repor no balde — parece que cai dentro de mim. Filha do Caveira. Intocável. A palavra máscara bate na tábua que eu estava evitando pisar. Máscara de renda. Batom escuro. Cabelo preso. O olhar que travou no meu, a dança que morde e desafia sem humilhar. É ela. O pensamento vem inteiro, sem vírgulas: a morena que me acertou a respiração é filha do homem que segura esta laje como quem segura a gravidade. — Lucas? — Rafa percebe quando a cor me troca. — O que foi? — O boato ganhou rosto — digo, ainda pegando ar. — A ‘intocável’ tem olhos que eu já vi. Rafa fecha a cara. — Então guarda a mão no bolso e a vontade no freio. — Eu não encostei. Não vou encostar. — Falo devagar, para eu mesmo ouvir. — Eu queria o nome. Agora eu entendo o preço. Ele encosta o copo no meu, seco. — Olhar é convite. E convite custa caro. — Repete o provérbio do morro como quem carimba meu peito. — E tem convite que não é teu pra enviar. Fico em silêncio. O som, ironicamente, me ajuda a pensar: grave limpa confusão, melodia traz nuance. A vejo — ela — por dois segundos no meio da roda, junto da amiga que funciona como âncora. O mundo quer me empurrar; eu recuso o empurrão. Respeito é senha, e senha errada vira sentença. — E aí, surfista? — o bartender provoca, com humor controlado. — Descobriu o que queria? — Descobri que querer é parte menor da equação — respondo. Nego Célio reaparece, como se a noite tivesse ouvido nosso diálogo. — Tem palavra que abre porta — ele diz, sem olhar para mim. — E tem palavra que abre vala. Se você não sabe qual é qual, fica quieto até saber. — Tô quieto — afirmo. Ele aponta com o queixo, lá no fundo, para um corredor onde dois curiosos tentam forçar passagem para perto do palco. “Não é por aí”, é o que o gesto diz. Eles entendem, recuam. Eu entendo também; recuo por dentro. Caio sobe a mão e pede luz baixa. A laje obedece, bonita. Ela gira devagar, a máscara recorta o rosto como meia-verdade necessária. Meu corpo inteiro quer o movimento simples de me aproximar, dizer “boa noite” sem invadir. Não vou. Penso em tudo o que ouvi: intocável. Palavras são políticas públicas aqui; errar vocabulário derruba governo interno. — E se você largar disso? — Rafa pergunta, sabendo que a pergunta é insulto e cuidado. — Não largo. — Pego a água, bebo, encontro a frase certa com a teimosia de quem quer caber num mundo que não foi feito para ele. — Não largo de aprender. Posso abrir mão do nome se for o caso. Mas não abro mão do respeito. Ele me mede, decidido entre me chamar de i****a ou de homem. — Então prova na prática. — Ele aponta para a lateral. — O menino que tu tirou do som… a mãe tá te procurando para agradecer direito. Você some outra vez ou aceita e devolve em anonimato? — Eu aceito. E somo. Vou até a mulher. Ela me dá um abraço curto, desses que não viram novela, e um “obrigada” que vale mais que qualquer prêmio. Eu respondo: — Foi sorte de passo. Cuida dele aqui, ó — e mostro a faixa segura desenhada na cabeça, um passo atrás da fita. — A música puxa. Volto para a sombra. Célio viu. Rafa sorri com o queixo. Caio costura outra sequência que dá nova pele à laje. O rumor, no entanto, fica. Filha do Caveira. Intocável. E eu, que entrei achando que queria história, me vejo envolvido em sintaxe: passar liso, falar baixo, entrar certo, sair certo, não cortar caminho, não transformar gente em troféu. A certa altura, dois moleques derrubam um copo e começam a discutir. O som tem essa perversidade: multiplica vaidades. Célio chega primeiro, eu fico um passo atrás, pronto para não atrapalhar. Ele divide o território com uma frase: — Aqui a gente dança junto. Quem quer briga, desce a ladeira. A frase tem a força de lei orgânica. Resolve. Penso que é isso que me encanta — não apenas ela, mas o ordenamento invisível que mantém este cosmos de pé. A senha que faz a porta abrir sem ranger. — Você entendeu? — Rafa pergunta, já sabendo. — Entendi. — Respiro. — Se eu tiver um dia o direito de saber o nome dela, será por mérito de conduta, não por insistência. Até lá, olho e saio. Ele ri, aliviado. — Achei que ia te perder para a arrogância do Leblon. — Hoje não. Olho a pista. Ela me vê, um segundo só. Nenhum de nós avança. Dois sorrisos de canto. Dois recuos. Duas assinaturas no livro invisível da noite. A cidade inteira poderia gritar no meu ouvido agora que eu não ouviria. Ouço só uma frase, a que me dou como ordem: Aprende as senhas. Guarda as mãos. Deixa o nome vir — se vier. Quando a música cai no último acorde, as palmas viram marola. Caio agradece sem discurso. Célio faz a descida fluir. Rafa me empurra a primeira escada. — Bora, Andrade. Entrou certo, sai certo. — Saio certo — confirmo. Na viela, o cheiro de óleo e pastel volta a ser o que sempre foi. Uma moto liga e desliga em silêncio de recado. Sinto que alguém me lê de longe — nem hostil, nem amigo —, apenas leitura. Eu deixo. Quem escolhe ficar inteiro precisa aceitar ser traduzido antes de ser aceito. No fim da ladeira, o céu abre um retângulo de madrugada. A máscara dela já não existe no meu campo de visão; existe em mim, como cláusula de um contrato que eu assinei sem tinta: respeito primeiro, vontade depois. E, se a vontade for contrária ao lugar, respeito sozinho. A chave girou na ignição, e o motor ligou suavemente. Olhei para o retrovisor, para o morro, para a parte de mim que se afeiçoou à linguagem da favela, e prometi: — Eu volto. Com as palavras-chave e o coração protegido, até que este lugar me ofereça algo diferente.
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