Lucas
A laje pulsa como um miocárdio sem dermatologista: irregular, quente, perfeito no erro. Caio segura o grave como quem pastoreia boi bravio; a luz corta a fumaça em diagonais que riscam olhos e promessas. Rafa me dá um copo d’água, bate no meu ombro e aponta a entrada lateral, onde n**o Célio reorganiza o mundo com dois gestos e um “calma, família”.
— Hoje tá redondo — Rafa diz, voz colada à batida.
— Redondo com quinas — respondo. — Mas aprendi a virar sem esbarrar.
O paredão respira, as caixas se inclinam num ângulo perigoso, a multidão abre e fecha por maré. Na terceira música da sequência, vejo um menino — sandália frouxa, camisa do Flamengo — se pendurar no gradil para enxergar o passinho. O corpo dele escorrega numa coreografia que não estava no script. Vai cair dentro do grave.
O tempo, então, rasga. Não penso, entro. Duas passadas, cotovelo baixo, a mão no peito do garoto, giro o eixo, tira da zona do som. Sinto o ar quente das caixas no meu rosto, cheiro de fio aquecido, o grito do DJ contido no microfone. O menino pesa menos que a culpa de quem erraria o passo. Eu o devolvo para a mãe, que chega branca de susto.
— Tá tudo certo — digo, sem heroísmo. — Fica um passo atrás da fita, mãe. Aqui o ar puxa.
Ela me agarra a mão, beija o dorso, olhos d’água.
— Deus te pague, filho.
Sorrio com um canto, sumo sem holofote. O truque é simples: quem entra para ajudar precisa sair antes de virar assunto. Reapareço no bar, peço outra água. O bartender me reconhece com o olhar que lida com ressaca e redenção.
— Respeito chama respeito — ele fala, colocando o copo.
— E barulho chama barulho — devolvo, rindo baixo.
Nego Célio surge à minha esquerda como quem saiu da parede. Não faz cena. Olha. Diz duas palavras que soam como carimbo:
— Sabe entrar e sair.
— Tô aprendendo o dicionário — respondo.
Ele assente milímetros, já de volta à coreografia de abrir caminho. Guardo a frase no bolso de dentro. Há lugares em que isso vale mais que brinde de camarote.
Na “meia-lua” da pista, Caio desce o BPM, deixa espaço para voz antiga por cima do beat — melodia que cheira a cozinha de tia, com a rua batendo palma em volta. A multidão relaxa. Aguço o ouvido: rumor é música sem DJ, e o morro compõe boatos como quem assovia. Dois caras falam rente, encostados na mureta.
— Tu viu que o Caveira tem filha mesmo?
— Dizem que existe, intocável.
— Desce de máscara, quando desce.
— Quem encosta, some do mapa.
O gelo — que o bartender acabou de repor no balde — parece que cai dentro de mim. Filha do Caveira. Intocável. A palavra máscara bate na tábua que eu estava evitando pisar. Máscara de renda. Batom escuro. Cabelo preso. O olhar que travou no meu, a dança que morde e desafia sem humilhar. É ela.
O pensamento vem inteiro, sem vírgulas: a morena que me acertou a respiração é filha do homem que segura esta laje como quem segura a gravidade.
— Lucas? — Rafa percebe quando a cor me troca. — O que foi?
— O boato ganhou rosto — digo, ainda pegando ar. — A ‘intocável’ tem olhos que eu já vi.
Rafa fecha a cara.
— Então guarda a mão no bolso e a vontade no freio.
— Eu não encostei. Não vou encostar. — Falo devagar, para eu mesmo ouvir. — Eu queria o nome. Agora eu entendo o preço.
Ele encosta o copo no meu, seco.
— Olhar é convite. E convite custa caro. — Repete o provérbio do morro como quem carimba meu peito. — E tem convite que não é teu pra enviar.
Fico em silêncio. O som, ironicamente, me ajuda a pensar: grave limpa confusão, melodia traz nuance. A vejo — ela — por dois segundos no meio da roda, junto da amiga que funciona como âncora. O mundo quer me empurrar; eu recuso o empurrão. Respeito é senha, e senha errada vira sentença.
— E aí, surfista? — o bartender provoca, com humor controlado. — Descobriu o que queria?
— Descobri que querer é parte menor da equação — respondo.
Nego Célio reaparece, como se a noite tivesse ouvido nosso diálogo.
— Tem palavra que abre porta — ele diz, sem olhar para mim. — E tem palavra que abre vala. Se você não sabe qual é qual, fica quieto até saber.
— Tô quieto — afirmo.
Ele aponta com o queixo, lá no fundo, para um corredor onde dois curiosos tentam forçar passagem para perto do palco. “Não é por aí”, é o que o gesto diz. Eles entendem, recuam. Eu entendo também; recuo por dentro.
Caio sobe a mão e pede luz baixa. A laje obedece, bonita. Ela gira devagar, a máscara recorta o rosto como meia-verdade necessária. Meu corpo inteiro quer o movimento simples de me aproximar, dizer “boa noite” sem invadir. Não vou. Penso em tudo o que ouvi: intocável. Palavras são políticas públicas aqui; errar vocabulário derruba governo interno.
— E se você largar disso? — Rafa pergunta, sabendo que a pergunta é insulto e cuidado.
— Não largo. — Pego a água, bebo, encontro a frase certa com a teimosia de quem quer caber num mundo que não foi feito para ele. — Não largo de aprender. Posso abrir mão do nome se for o caso. Mas não abro mão do respeito.
Ele me mede, decidido entre me chamar de i****a ou de homem.
— Então prova na prática. — Ele aponta para a lateral. — O menino que tu tirou do som… a mãe tá te procurando para agradecer direito. Você some outra vez ou aceita e devolve em anonimato?
— Eu aceito. E somo.
Vou até a mulher. Ela me dá um abraço curto, desses que não viram novela, e um “obrigada” que vale mais que qualquer prêmio. Eu respondo:
— Foi sorte de passo. Cuida dele aqui, ó — e mostro a faixa segura desenhada na cabeça, um passo atrás da fita. — A música puxa.
Volto para a sombra. Célio viu. Rafa sorri com o queixo. Caio costura outra sequência que dá nova pele à laje. O rumor, no entanto, fica. Filha do Caveira. Intocável. E eu, que entrei achando que queria história, me vejo envolvido em sintaxe: passar liso, falar baixo, entrar certo, sair certo, não cortar caminho, não transformar gente em troféu.
A certa altura, dois moleques derrubam um copo e começam a discutir. O som tem essa perversidade: multiplica vaidades. Célio chega primeiro, eu fico um passo atrás, pronto para não atrapalhar. Ele divide o território com uma frase:
— Aqui a gente dança junto. Quem quer briga, desce a ladeira.
A frase tem a força de lei orgânica. Resolve. Penso que é isso que me encanta — não apenas ela, mas o ordenamento invisível que mantém este cosmos de pé. A senha que faz a porta abrir sem ranger.
— Você entendeu? — Rafa pergunta, já sabendo.
— Entendi. — Respiro. — Se eu tiver um dia o direito de saber o nome dela, será por mérito de conduta, não por insistência. Até lá, olho e saio.
Ele ri, aliviado.
— Achei que ia te perder para a arrogância do Leblon.
— Hoje não.
Olho a pista. Ela me vê, um segundo só. Nenhum de nós avança. Dois sorrisos de canto. Dois recuos. Duas assinaturas no livro invisível da noite.
A cidade inteira poderia gritar no meu ouvido agora que eu não ouviria. Ouço só uma frase, a que me dou como ordem:
Aprende as senhas.
Guarda as mãos.
Deixa o nome vir — se vier.
Quando a música cai no último acorde, as palmas viram marola. Caio agradece sem discurso. Célio faz a descida fluir. Rafa me empurra a primeira escada.
— Bora, Andrade. Entrou certo, sai certo.
— Saio certo — confirmo.
Na viela, o cheiro de óleo e pastel volta a ser o que sempre foi. Uma moto liga e desliga em silêncio de recado. Sinto que alguém me lê de longe — nem hostil, nem amigo —, apenas leitura. Eu deixo. Quem escolhe ficar inteiro precisa aceitar ser traduzido antes de ser aceito.
No fim da ladeira, o céu abre um retângulo de madrugada. A máscara dela já não existe no meu campo de visão; existe em mim, como cláusula de um contrato que eu assinei sem tinta: respeito primeiro, vontade depois. E, se a vontade for contrária ao lugar, respeito sozinho.
A chave girou na ignição, e o motor ligou suavemente. Olhei para o retrovisor, para o morro, para a parte de mim que se afeiçoou à linguagem da favela, e prometi:
— Eu volto. Com as palavras-chave e o coração protegido, até que este lugar me ofereça algo diferente.