Capítulo 13 — Linha de Fuga

1231 Words
Isadora A manhã nasce com aquele cheiro de café requentado que só a Dona Nilda consegue transformar em abraço. Eu desço as escadas escondendo o sorriso, porque a culpa ainda pesa: todo mundo naquela casa acredita que eu já voltei ao modo “filha perfeita”. Mas eu sei — e Nilda sabe — que algo em mim rachou desde o baile. — Dormiu? — ela pergunta, colocando o bule na mesa. — O suficiente pra sonhar acordada. — Dou um gole, fingindo leveza. Ela estreita os olhos, experiente demais para engolir minhas versões editadas. — Sonhar é bonito, Isa. O problema é quando o sonho anda pelas ladeiras do morro. Desvio o olhar, mas ela toca meu pulso com delicadeza. Toco aquele terço que ela me deu ontem. Bate como coragem no bolso. Tainá chega dez minutos depois, com aquela mania de entrar pela cozinha como quem sempre pertence ao lugar. — Hoje é o dia, Dora — ela fala, batendo palmas baixinho. — A gente vai botar você no posto de saúde sem seu pai nem sentir o cheiro. — Meu pai sente cheiro de mentira a quilômetros — retruco, apertando a alça da mochila. — Por isso você vai entrar como Dora. — Ela sorri, atrevida. — E porque a Dona Nilda garantiu que os seguranças vão achar que você tá fazendo revisão de uniforme. Nilda, que finge cortar legumes, não n**a. — Eu só dei cinco minutos de distração. O resto é com vocês. Sinto meu peito abrir e fechar num compasso estranho, metade ansiedade, metade libertação. Linha de fuga não é fuga de verdade, é teste. Eu repito isso para mim mesma. Só pra ver se acredito. *** A rua me recebe com ruído: moto subindo ladeira, rádio chiando, crianças correndo atrás de uma bola torta. Nada do brilho dourado das fotos turísticas. Só vida crua — e por algum motivo, isso me acalma. — Relaxa, Isa — Tainá murmura, puxando meu braço enquanto atravessamos a viela. — Você nasceu aqui. Não é proibida de andar. — Às vezes eu sinto que sou. Ela ri, mas sua mão segura firme a minha. Ninguém nos olha com estranhamento, mas alguns homens das bocas de vigilância levantam o queixo ao nos ver passar. É o suficiente para eu baixar a cabeça. E então vem o pensamento inevitável: o olhar dele. O do rapaz mascarado da laje. O playboy que me viu como mulher, não como filha do Sombra. Meu coração aperta — como se o corpo lembrasse antes que a mente admitisse. — Você tá viajando — Tainá resmunga. — Tá com essa cara desde o baile. — Só pensei… — No cara que te olhou como se fosse pecado? — Tainá! Ela gargalha. — Minha filha, se aquilo não mexeu com você, aí sim eu ficava preocupada. *** Chegamos ao posto de saúde, um prédio pequeno, pintura descascada, mas cheio de movimento. A placa tremida anuncia “Atenção Básica”. Para mim, parece liberdade. A enfermeira que Tainá conhece, Valéria, me recebe rápido. — Então você é a Dora? — ela pergunta, vendo minha identidade falsa. — Ajuda no triagem, na mão de obra e no que aparecer. Nada que comprometa seu… horário. Ela não fala “seu pai”. Mas pensa. Eu também. — Eu faço o que precisarem — digo, sentindo o mundo abrir centímetros. Em menos de uma hora, estou medindo pressão de uma senhora, anotando sintomas, ouvindo histórias que ninguém na minha casa ouviria. Aqui, ninguém me trata como relíquia protegida. Aqui, eu existo. E isso me atravessa de um jeito quase doloroso. Entre uma ficha e outra, sinto um arrepio subir pela nuca. Olho pela pequena janela de ventilação. Nada. Mas a sensação fica presa, como unha na parede do peito. Sombra não anda como homem comum. Ele desliza pelo morro como se tivesse o mapa tatuado na alma. E hoje, ele saiu de casa cedo — silencioso demais. Ele viu a movimentação dos seguranças, percebeu o desvio de olhar de um deles, conectou dois fios que não deveriam ter se encostado. E me seguiu. Sem que eu imaginasse, meu pai estava duas vielas atrás, vestido como qualquer morador comum, boné baixo, rádio no bolso. Ele observava cada passo meu. Cada toque de mão. Cada sorriso breve. Cada respiração fora do ritmo habitual. E viu a porta do posto se fechar atrás de mim. Do lado de dentro, eu ajeito uma caixa com gaze enquanto tento ignorar o peso no ar. — Tá pálida — Tainá comenta. — Sabia que ia ficar nervosa. — Não é isso — digo, mas minha voz falha. — É… como se alguém tivesse me olhando. Ela me cutuca. — Você é filha do Caveira, né? Gente olhando pra você não é novidade. — Tainá, não é isso. É diferente. Quase digo: “igual no baile”. Igual aquele olhar que me viu inteira. Mas guardo para mim. Na rua, Sombra observa a janela do posto com olhos que não piscam. O rádio trinca no seu bolso. — Confirma local. — A voz no rádio chama. — Confirmado. — Ele responde, calmo. — Já sei onde ela está. A raiva não vem quente. Vem gelada. A pior. Ele não invade. Não chama. Não grita. Ele espera. Espera eu sair para entender até onde minha mentira anda antes de quebrar meu mundo de volta. Quando o turno acaba, ajeito a mochila nos ombros e saio com Tainá. O sol da tarde bate no rosto como se brindasse minha pequena vitória. — Deu certo — murmuro, incrédula. — Eu consegui. — Conseguiu porque é inteligente — ela sorri. — E porque a rua gosta de você. Eu rio, leve pela primeira vez em dias. Até ouvir um estalido seco atrás de nós. Um ruído que só eu reconheço. O som da aproximação era inconfundível, uma sinfonia de poder e ameaça que me arrepiava a espinha. O passo do meu pai. Pesado, como se cada pegada quisesse cravar sua autoridade no chão de cimento frio da casa. Preciso, sem desvios, anunciando uma chegada que nunca era por acaso. Letal. Sim, essa era a palavra que definia tudo o que vinha dele, até o jeito de caminhar. A respiração presa no peito me sufocava. Viro devagar, numa lentidão forçada, como se a inércia pudesse adiar o inevitável. Sinto a garganta fechar, um nó apertado de pavor e culpa, que m*l me permite engolir a saliva. Sombra estava parado a três metros. Sua silhueta alta e larga bloqueava a pouca luz que entrava pela janela, transformando-o numa estátua de mármore escura, fria e perigosa. Braços cruzados sobre o peito musculoso, uma barreira impenetrável de julgamento. A expressão era indecifrável, um misto perigoso de nada e tudo. Nenhum músculo facial se movia, mas seus olhos, ah, seus olhos me atravessavam, perfurando a fachada de indiferença que eu tentava desesperadamente manter. O mundo desaba num único pensamento, violento e avassalador, que ecoa na minha mente como um tiro de advertência: Ele viu. Tudo. O beijo roubado, a troca de olhares proibida, a respiração ofegante depois da corrida pela viela. A prova da minha traição silenciosa à única regra inquebrável do meu pai. Ele viu a prova de que a Filha do Traficante ousou se envolver com o Badboy. E agora, o inferno estava prestes a se abrir sob meus pés.
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